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Como atiçar a brasa

 


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março 13, 2013

A arte de provocar ruínas: especulações na Zona Portuária por Cristina Laranja, Global Brasil

A arte de provocar ruínas: especulações na Zona Portuária

Artigo de Cristina Laranja originalmente publicado em Maquinações, na revista Global Brasil, edição 14, em 2011.

“O caráter destrutivo transforma o existente em ruínas, não pelas ruínas em si, mas pelo caminho que passa através delas” – Walter Benjamin

Como parte das ações que implementam o projeto de sucesso “Porto Maravilha” na região portuária do Rio de Janeiro, a produção cultural vem sendo invocada como parte do projeto de dinamização do turismo na região. Dizer “região” ou Zona Portuária pouco qualifica esse terreno/território e, para colaborar na porosidade da percepção desse espaço podemos pensar que modos de vida, que narrativas fugidias, que histórias percorrem as ruas, que resistências, quais são os registros de que dispomos… e como isso tudo constitui esse terreno? Nosso objetivo com este artigo é especular sobre o modelo econômico e de gestão que utilizam dois museus em construção na área e compreender até que ponto eles contrastam com ações que poderiam fomentar, mais diretamente, a produção cultural já existente ali. Isso ocorre não sem trazer enfrentamentos para a própria produção, ou seja: para a(s) arte(s).

O projeto Porto Maravilha [1] vem sendo realizado por uma Operação Urbana Consorciada (OUC), um modelo de negócio do tipo Parceria Público Privada (PPP). Até o momento os projetos e as intervenções já realizadas não apóiam a manutenção da população na área e induzem à remoção dessa população – seja por remoção direta ou por especulação imobiliária. Contudo, organizações sociais têm resistido ao modelo que vem sendo implementado, criando diversos comitês, grupos, e fóruns de discussão para garantir os direitos dos moradores e trabalhadores.

A revitalização da região, prevista há mais de duas décadas por uma série de projetos urbanos não realizados, finalmente parece ganhar lastro e produzir suas ruínas. O consórcio formado como uma PPP criou a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), que se torna a empresa gestora desde os serviços públicos à comercialização de terrenos, certificados de construção e unidades habitacionais a serem construídas. Um fator mais do que evidente mostra o interesse desse consórcio: a valorização econômica da região, cujas ações já forçaram primeiro a desestruturação, seguida de expulsão de duas ocupações de moradores – entre elas a Zumbi dos Palmares, maior ocupação da cidade do Rio de Janeiro. Mesmo que a habitação seja defendida como direito desde a constituição de 1988 (a função social da propriedade) e os próprios moradores deveriam ser os prioritários beneficiários das alterações da região, o fato desperta para um processo de “gentrificação” já muito conhecido em países ditos desenvolvidos. A gentrificação significa a supervalorização de uma determinada região e a conseqüente subida do custo de vida forçando moradores tradicionais a saírem. O termo aponta para um processo mal gerido de desenvolvimento urbano, que poderia ser pensado em termos de um desenvolvimento transformativo, agregando incentivo às iniciativas locais.

Mas o que a produção cultural tem a ver com isso?

Ela tem sido usada nos discursos da macropolítica como ferramenta de apaziguamento de diferenças, de porta de entrada para empreendimentos econômicos e tem sido promovida como elemento neutralizador indireto das ações severas da prefeitura do Rio de Janeiro, em sua maioria levadas a cabo pelas forças policiais do estado (como a remoção de casas para a construção do teleférico no Morro da Providência). Precisamos compreender melhor o que se tem por produção cultural, e aqui aportamos um conceito que abarca a diversidade social e cultural de um território (os modos de vida, os costumes, as falas, as músicas, o modo de construir as ladeiras…), aquele mesmo que seria foco de interesse dos promotores do turismo na região. Ou seja, por “cultura” não se compreende só os produtos culturais ou equipamentos culturais existentes, nem aqueles que se pretende ofertar aos turistas, mas aquilo que se compreende por patrimônio imaterial.

Na região portuária, já podem ser vistos os traços dos dois grandes museus que, em fase de construção, conduziriam para a região uma população de consumidores de cultura, entretenimento e informação. A implantação desse projeto toma corpo com outras ações acopladas, como a realização de grandes eventos como o Fórum Urbano Mundial (março de 2010, organizado pela ONU-Habitat), e shows de música e teatro que já acontecem nos galpões das Docas, da Feira Internacional de Arte Contemporânea e da conferência Cúpula dos Povos, ou Rio + 20 (que deverá acontecer na Zona Portuária). A construção de grandes equipamentos culturais como esses elevam o custo dos serviços nos arredores dos Museus, aumentam o controle do uso do espaço público e inibem práticas sociais e culturais que caracterizam a região. Um dos mais recentes “equipamentos” culturais da área é a Fábrica Bhering (ex-fábrica de chocolates), que está sendo alugada para diversos fotógrafos, artistas e artesãos (que não residem na área) como espaço de estúdio e atelier. Em vídeo difundido pela Prefeitura do Rio, a Fábrica como espaço para a arte “reativa uma vocação da região da Saúde”, onde está implantada, “uma vocação de futuro” (?), mas que deixa em aberto a maneira como a (nova) fábrica se relaciona com o entorno. Um discurso que promove a visão da cultura como apaziguadora, ao que gostaria de confrontar uma sensibilidade fina, um saber de cartógrafo…

Atuar no “terreno” parece ser uma tarefa das práticas artísticas, constituintes da produção cultural. Isso se assemelha sem dúvida à ação do geógrafo ou do sociólogo que, reanimados na figura contemporânea do cartógrafo, nos potencializam não só a observar, mas a interagir e compor. Ou seja, se no discurso macropolítico há pouco espaço para averiguar e promover que especificidades tal arte/cultura pode requerer em determinadas áreas, em nosso foco especulativo torna-se necessário afirmar que a produção cultural local deveria ser valorizada criando-se instrumentos de incentivo direto, cuja gestão de recursos seja feita pelos próprios produtores culturais. Na região portuária pode fazer parte dessa tarefa ativar a produção de diferentes olhares e quebrar o discurso uníssono de que a degradação da região ocorre por conta dos seus próprios atuais moradores e trabalhadores. Para tal, na “revitalização da região”, o reconhecimento da produção cultural local poderia ser um dos motores primeiros. [2]

Contudo, o abandono sistemático de áreas pontuais da cidade do Rio de Janeiro, há décadas, cinde a cidade em duas, três, e mais. A implantação dos museus parece refletir isso. Sabe-se que, de maneira geral, a complexidade da metrópole é afirmada majoritária e autoritariamente por ser de apenas duas cidades: uma do asfalto, e outra do morro, a primeira oprimindo a segunda e forçando-a a se transformar nela. A inclusão na cidade do asfalto foi, por muito tempo, pensada como sendo o único modo de acesso aos direitos e aos serviços. Sabemos, contudo, que são as singulares periferias que adensam a metrópole. São elas que precisam afirmar, por si e por suas próprias vozes, a heterogeneidade e a riqueza não reconhecidas pelos projetos urbanísticos governamentais.

A implantação do Porto Maravilha realiza uma privatização deste terreno e agrega, em uma onda atrasada e não vanguardista, investimentos tanto de empresas públicas como de construtoras privadas e de empresas que se beneficiam sem qualquer compromisso social dos investimentos por meio de incentivo fiscal (no caso dos dois museus, a Fundação Roberto Marinho). Dizemos “não vanguardista” porque se pauta sobre projetos de revitalização como das docas do sul do Rio Tamisa, em Londres, o Puerto Madero, em Buenos Aires, e o Porto Olímpico em Barcelona: todos terrenos de batalhas sociais travadas pelas classes operárias que habitavam as regiões e que foram expulsas pelos planos de revitalização. Contraditoriamente, tais planos também apagaram qualquer vestígio dessas vidas, ainda que afirmem seu valor de “consumo” sobre a tradição destas histórias e práticas. Nesse jogo de produzir produtos para consumo no pacote da regeneração, o modo de viver do estivador se torna a flexibilidade do yuppie do trabalho imaterial contemporâneo – como em Londres. Porém, o yuppie está conectado a uma rede de valoração capitalizada em cifras internacionais, e o estivador foi deslocado por discrepâncias econômicas a bairros periféricos.

A venda das CEPACs

Em livro publicado recentemente pela Prefeitura para publicizar o Porto Maravilha, um dos projetos citados como referência é a iniciativa de Baltimore, nos Estados Unidos. Percebe-se que este modelo, contudo, não está sendo seguido pela gestão carioca do projeto. Aqui não há cuidado na proporcionalidade entre iniciativas locais e investidores, empreendedores e empreiteiros externos à área e emprego de trabalhadores locais. Isso que em Baltimore se chamou de “desenvolvimento transformativo” aqui não foi de maneira alguma mencionado nem está sendo aplicado.

A região, cuja atividade principal sempre foi de porto da cidade, área de estocagem e distribuição, além de moradia, é agora recuperada com ares de “necessidade” – a mesma escassez que justifica a expansão do capitalismo imperialista. A queda do número de moradores da área nos últimos 20 anos (inserida dentro da AP1) poderia ser uma justificativa para “retomar” a construção civil na área. Só que o investimento na região se faz forçando um público consumidor por vir (fictício e projetado como o capital especulativo), de poder aquisitivo maior do que os atuais moradores, conforme aponta recente “Relatório de Violação de Direitos e Reivindicações” [3], realizado pelo Fórum Comunitário do Porto (um dos grupos mistos que organiza a resistência na região, formados por moradores, líderes comunitários, associações, ONGs, pesquisadores e membros da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro).

O investimento no mercado imobiliário, que ocorre de forma autoritária desapropriando terrenos, é um negócio de risco, que nos faz pensar que, se os investidores desejam um projeto arrojado, de lucro imediato, porque não fizeram uma doca fake na Zona Sul? Idéias como aumentar a Pedra do Arpoador, emendar ao Pontal da Barra (pós Dubai já não se duvida das construções sobre as águas!). Contudo, parece que especular na área da Zona Portuária tratando a área com o discurso uníssono de degradação parece ser o que de fato interessa: o prefeito Eduardo Paes acaba de vender os Certificados de Potencial Adicional Construtivo (CEPACs) (permissão de construção além da altura média dos edifícios previstas no Plano Diretor) com o dinheiro do contribuinte do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). [4] Ou seja, os anunciados “investidores” na região não apareceram para comprar as ações, mas sim a Caixa Econômica Federal que administra o FGTS, foi a grande compradora, assumindo a responsabilidade de um investimento que beneficia prioritariamente o capital privado e as empresas ligadas ao turismo. Nessa mesma política de privatização, os serviços públicos da região passarão a ser oferecidos pela CDURP.

(O insucesso d)A cultura como negócio criativo

O surgimento das “indústrias criativas” no pós-guerra europeu aconteceu em territórios com características sociais, culturais, históricas e econômicas distintas de nossa realidade. Mesmo assim são essas indústrias com discurso (e capital) renovado que vem sendo induzidas nas economias emergentes, explícita no fato de que a intensificação do capitalismo global se torna a venda e compra dos megaeventos. A “ruína” eleita para a construção do projeto “maravilha” é, contudo, diferente, por exemplo, daquela inglesa: aqui não tivemos um bombardeio e a destruição de bairros inteiros, como na Segunda Guerra, nem depressões sociais ou literais buracos abertos também na economia.

Em Londres, o processo foi analisado minuciosamente no artigo “Sem lugar para mover-se: arte radical e a cidade regenerada”, de Anthony Iles e Josephine Slater. [5] Nos anos 50, um dos grandes centros culturais da cidade com cinco blocos de apartamentos caríssimos, o Barbican, surgiu sobre os escombros da destruição de quarteirões inteiros na região do centro da cidade (City of London). Segundo os autores, além da destruição física dos espaços pelos bombardeios, havia uma população que exigia, após os anos difíceis da guerra, “modos de habitação privilegiados, acomodações modernas e cidades mais limpas”. As populações de trabalhadores foram, contudo, movidas para cidades periféricas ou mesmo para cidades criadas para tal, um estágio ainda inicial de uma sociedade orientada para o lazer após o trabalho nos anos 60 (leisure), anunciando o processo posterior de gentrificação que viria com a economia pós-fordista nos anos 70.

No Rio de Janeiro, em um capítulo anterior do processo de revitalização da região do porto, um grupo mobilizado de artistas e profissionais da área, em meados de 2002, protestou veementemente contra a instalação de uma franquia do Museu Guggenheim, quando corria mundo a notícia da falência da brand e o do trabalho escravo aplicado na construção de uma das franquias em implantação. [6] Construída e ainda não finalizada, a Cidade da Música, na Barra da Tijuca, dizem ter sido o local de escoamento do investimento perdido no primeiro projeto. Em Londres, a implantação da Tate Modern, em 2000, na costa sul do Rio Tamisa, ainda provoca alterações significativas, estéticas e estruturais, criando verdadeiras batalhas entre populações locais, turistas e yuppies (estes últimos que procuram casas artificialmente construídas sobre um terreno histórico varrido de pistas e traços, onde redes de supermercado e comidas rápidas se acumulam nas calçadas retificadas para o passante, criando uma estranha sociabilidade).

Hoje, enquanto as políticas públicas federais para a cultura nos apresentam uma maneira mais enraizada de proliferar e distribuir renda – como os bem sucedidos Pontos de Cultura [7], os dois projetos em plena implantação nos arredores da Praça Mauá não seguem a mesma linha. O Museu de Arte do Rio (MAR), que ocupa um prédio recuperado da Polícia Federal e um palacete renomeado “Dom João VI”, e o Museu do Amanhã, no píer Mauá. Ambos os Museus fazem parte do megaprojeto do porto, do qual a revitalização do Terminal Marítimo de passageiros já é uma realidade. Os cerca de 170 milhões investidos nos Museus por renúncia fiscal são um valor discrepante frente a qualquer investimento na região que de fato colabore na manutenção do cotidiano das comunidades afetadas também na área da cultura – considerando a diversidade de iniciativas e produtores culturais que polinizam a região. [8] Um mapeamento feito recentemente por um grupo de pesquisadores criou o “Guia do cidadão da Zona Portuária”, com uma listagem de instituições culturais e religiosas, serviços públicos, escolas, etc. realizado sob coordenação da socióloga e urbanista Maria Lobo.

Ao contrário do que se pode pensar em relação a financiamento e produção – que não podem ser reduzidos ao modelo mercado e comercialização –, o fomento em modelos sociais politizados da produção cultural gera modos de sustentabilidade e parcerias em redes mais horizontais de produção. Ou seja, elimina-se a separação entre o programador cultural e o público consumidor, estreitando criação e fruição, o que no modelo do mercado cai geralmente numa estratificação da elite pensante que designa a oferta de produção cultural com símbolos, códigos, realidades sociais simplificados. A liberdade conquistada pelo trabalhador contemporâneo é exatamente esta: capacidade de criar laços produtivos, e, isso se estende também ao artista.

Não se pode trocar uma possibilidade em detrimento de outra (que engessa), sobretudo porque a nova onda de produção cultural pauta-se numa captura de conceitos automatizados dentro da criatividade econômica, com isso tornados vazios. Os governos locais e nacionais têm investido em empresas de economia criativa criando editais para incubadoras que são ainda não significativos, em termos de escala de aplicação. Segundo Iles e Slater, o modelo da economia criativa marca um ataque a outros modos de subsistência, que fizeram ser possível sobreviver como um produtor cultural na ausência desses modelos de “compra e venda”. Dessa maneira, “o modelo do trabalho (workfare) substitui o de bem estar social (welfare)”, no qual no âmbito da moradia “contratos de curto prazo para aluguel foram disseminados e zonas baratas e dilapidadas caíram no ciclo de demolição do desenvolvimento.” Criação de ruínas…

Alucinações e enfrentamentos da arte

Sem dúvida, as paixões e os delírios que conduzem a produção artística e mobilizam acontecimentos precisam ser equacionados com os modos de sustentabilidade econômica. Desafio sempre na dimensão de arruinar-se… Possível de ser vista nos modos de uma intermitência entre o trabalho e o não-trabalho, a produção artística precisa cuidar para não entrar num modelo forçado de capital/cultura que se realiza por meio de uma artificialidade, apartando as contradições de uma paixão, e caindo muitas vezes em práticas e discursos apaziguadores e neutralizadores. O modelo da economia criativa está totalmente associado a um novo modo de urbanizar: abrir espaço para o comércio em um shopping center a céu aberto, controlado e vigiado, como ocorre em diversas cidades européias e centros urbanos históricos que são reprogramados para o consumo (como caso crítico de Liverpool na Inglaterra). A arte, neste contexto, perde muito do seu potencial desprogramador. Ou como diria Gordon Matta-Clark: potencial de ser não arquitetura, mas “anarquitetura”.

No Rio de Janeiro precisamos atentar para os eventos de arte que vão fazer uso da região portuária, e de que maneira eles se utilizam (sem qualquer comprometimento) de uma estrutura que vem sendo aberta num terreno social diverso, de práticas culturais centenárias, invisíveis, algumas das quais a porção “turística” do porto já ocorre. A prostituição na região deve ser reconhecida como uma das práticas que a constituem. Com a descaracterização do espaço, onde vão trabalhar essas mulheres?

O MAR é um museu dedicado à exposição da paisagem carioca (com curadoria de Leonel Katz). Abrigará também coleções privadas e ainda não se sabe se receberá exposições de arte atual. Compreender a relação que se deseja provocar entre visitantes e a cidade do Rio de Janeiro, a partir da noção de paisagem, requer a continuidade desta pesquisa, em contato com os gestores, pesquisadores, historiadores e curadores que o planejam. Será uma noção de paisagem que incorpora a noção de paisagem cultural? Como a Escola do olhar que faz parte do projeto poderá ativar a participação crítica e criativa dos visitantes em relação não só a essa noção de paisagem? Terá espaço para aportar a diversidade cultural da região portuária e os processos (contraditórios) que implantaram o museu? Provocará neles alucinações produtivas?

Uma das alucinações (bloqueadoras) das artes visuais ou da arte contemporânea é separar-se da cultura. Apresento essa idéia sem tempo de desenvolvê-la… É talvez por isso que se diz “contemporânea”. Essa distinção marca em grande parte um modo de valoração e acumulação, ou seja, determina um circuito (situações, lugares, espaços, instituições) ao diferenciar-se das outras práticas e fazer-se especial: um meio exclusivo. Posso arriscar que hoje denominar algo “arte contemporânea” corre o risco de, antes de abrir um campo, paisagem ou horizonte relativo de significação, transferir o acontecimento para uma dimensão de captura de valor.

Na membrana da arte em relação com a cultura se abrem possibilidades de produção sígnica, de intercâmbio de linguagem e modos de acontecimento mais ricos – permeabilidade que depende da disponibilidade do cartógrafo entremetido no terreno. O encontro com o terreno constitui o(s) território(s) onde passam a fazer sentido as singularidades e as diferenças, as lutas pelos direitos e os modos próprios de manifestar-se. Cito brevemente três iniciativas que parece que atuam desse modo: o projeto “O museu das vistas” de Carla Zaccagnini, realizado a partir de meados de 2002, em que as pessoas eram convidadas a descrever paisagens representadas por retratistas policiais (em duas vias: uma do participante e uma do acervo do Museu). O projeto realizado por João Modé para o Morro da Conceição em 2008: uma maquete que apresentava a Pedra do Sal em sua dimensão total, “destruindo” o prédio da CEDAE construído na década de 40 sobre parte da Pedra. E o coletivo Catadores de Histórias, formado por Fabiane Borges e Rafael Adaime, que acompanhou a luta pela moradia e os moradores de rua no centro de São Paulo no auge das ações para limpar o terreno e revitalizar o centro entre 2002 e 2005. [9] Fabiane Borges descreve no seu livro “Domínios do demasiado” que ela mesma começa a ver-se e transformar-se numa moradora de rua que “não tem funcionalidade social, que atrapalha, que atravanca os canais internos do corpo citadino colossal como se fosse uma merda trancada no reto, para depois ser escoada nos canos subterrâneos.” A cidade é feita, então, desses corpos que são, para ela “o negativo do corpo incluído”.

Na execução de obras de saneamento na região portuária (pelo consórcio “Saúde Gamboa” que inclui empresas como a Odebrecht), descobriu-se o já sabido: o Cais do Valongo, antigo cais do porto do Rio na Bahia de Guanabara anterior à extensão que criou o cais da Praça XV. A aparição do traçado do cais exposta nas pedras de largas dimensões e o paralelepípedo do calçamento mais abaixo que a rua atual inviabiliza a circulação nas ruas movimentadas no dia a dia do porto do Rio. Um projeto de exposição deste sítio arqueológico está em curso, para que parte do cais esteja permanentemente à vista e seja dispositivo direto, reativador de narrativas sobre os modos de vida naquele local. [10] Essa memória parece mostrar-se à força, porque se antes se reivindicava como imagem (a vocação do porto do Rio, como metáfora das trocas comerciais que hoje se quer dinamizar), ela cria um atravanco real nas velocidades da cidade reprogramada.

Gostaria de analisar a ruína provocada pela destruição do existente (a expulsão, a demolição) para projetar o novo pela imagem do “Caráter destrutivo”, de Walter Benjamin (1931). Como seus tantos conceitos severa e inteligentemente complexos “o caráter destrutivo conhece apenas uma divisa: criar espaço; conhece apenas uma atividade: abrir caminho.” Essa energia invocada “maior que qualquer ódio” parece ser um pouco do que temos nesta cidade, porque “o caráter destrutivo é jovem e sereno. Pois destruir rejuvenesce, porque afasta as marcas de nossa própria idade; reanima, pois toda eliminação significa, para o destruidor, uma completa redução (…).” Poderia ser como Fabiane Borges percebe: a presença de corpos antiatropocêntricos que desafiam o signo máximo do pensamento antropocêntrico: “a cidade, que outrora contraiu o sentido de ambições civilizatórias, mas hoje escancara os significantes da sua impotência.”

No entanto a ação do estado é essa que se disfarça de “harmonia”, como expõe Benjamin, e não a que permite a exposição das contradições. “O que leva a esta imagem apolínea do destruidor é, antes de mais nada, o reconhecimento de que o mundo se simplifica terrivelmente quando se testa o quanto ele merece ser destruído. Este é o grande vínculo que envolve, na mesma atmosfera, tudo o que existe. É uma visão que proporciona ao caráter destrutivo um espetáculo da mais profunda harmonia.” Aplicando ao nosso terreno, o que os movimentos e produtores culturais da região não precisam é desta harmonia que se constrói por cima da destruição. E sim do reconhecimento do seu próprio “legado”, de sua história e de sua resistência. Pode a arte corroborar nesse processo? Não sem aportar à sua maneira as alucinações que a permitem ser o elemento desprogramador, dialógico, revolucionário à sua maneira, enfrentando os mesmos desafios que a população local enfrenta, e não entrando na lavada “maravilha” que se cria como imagem, na verdade, insuportável.

NOTAS

[1] Página http://portomaravilhario.com.br/
[2] Recomendo a leitura de “Maravilha pra quem?”, de Laura Burocco e Rossana Tavares. Em: Democracia Viva n. 46, abril 2011. www.ibase.br http://pelamoradia.wordpress.com/2011/04/22/maravilha-para-quem-rj/
[3] Para baixar o relatório http://www.fase.org.br/UserFiles/1/File/RELAT%C3%B3RIO%20MPF%20FCP.pdf
[4] “Porto Maravilha, CEPACS, e a segregação na cidade”, em http://www.cidadespossiveis.com/day/2011/06/20
[5] Livro e artigo homônimos: “No Room to move: Radical Art and the Regenerate City”, Londres, 2010, disponível em http://www.metamute.org/en/pod/no_room_to_move_radical_art_and_the_regenerate_city
[6] Surge nesse momento o bloco carnavalesco Vá de Retro, que desfila de dois em dois anos (Bloco Bienal) do Arpoador ao posto 9, em Ipanema. Os temas dos sambas são sempre críticas às políticas culturais no Brasil e no mundo.
[7] Mapa da rede [link] http://mapasdarede.ipso.org.br/mapa/
[8] “Dois projetos para uma cidade do conhecimento”, de Barbara Szaniecki e Gerardo Silva. http://www.outraspalavras.net/2010/09/28/rio-dois-projetos-para-uma-metropole-conhecimento/
[9] http://catadoresdehistorias.wordpress.com/ e “Domínios do demasiado: por uma ontologia sem cabimento”, São Paulo, Editora Hucitec, 2010.
[10] No galpão Utopia está sendo desenvolvido um projeto organizado pela companhia de teatro Ensaio Aberto, chamado “Porto aberto à memória viva”.

Posted by Patricia Canetti at 9:54 AM