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junho 20, 2016
Assalto da Arte!!! por Movimento Casa das Onze Janelas
ASSALTO DA ARTE!!!
#porquenaoaqui?, #acasafica! #arteealimento!
Post originalmente publicado no blog Movimento Casa das Onze Janelas em 16 de junho de 2016.
"a última palavra do poder é que a resistência é a primeira"
(Deleuze, 1988)
A notícia de que a extinção do Museu Casa das Onze Janelas é um fato definitivo, chegou hoje muito cedo, por intermédio e fontes seguras e fidedignas. Esse tem sido a atitude do governador do Estado do Pará Simão Jatene, que está usando um equipamento em plena atuação como moeda de troca em um projeto de poder orquestrado de forma silenciosa e acintosa em relação ao direito da população à transparência, de participar das decisões dos seus lugares da arte, de conhecer sobre as decisões de desarticulação de um dos equipamentos mais representativos de atuação na área da cultura, sob o prisma da arte.
Esta atitude autoritária vem se apresentando na imposição da presença dos Srs. Alex Atala representando o Instituto Atá, da Sra. Joana Martins do Instituto Paulo Martins, do Sr. Roberto Smeraldi do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, e diretor da Oscip Amigos da Amazônia, nas dependências do Museu Casa das Onze Janelas desde fevereiro de 2016.
O grupo vem se reunindo em torno de ideias de desarticulação da arte atuante nesse espaço, e ideias de assalto não só do prédio, e do seu entorno, mas do nome, que sintetiza a relação de afeto, de reconhecimento de território constituído no tempo-espaço de 14 anos de atuação com a arte contemporânea. Esses conchavos na surdina, revelam atitudes autoritárias, colonialistas, de assalto à nossa cultura da complexidade, dos muitos que somos. E sempre soubemos nos relacionar, como em qualquer cultura mestiça, com o que está na riqueza da mistura.
Este grupo chega silencioso, com atitudes arrogantes como os novos donos, mensuram com suas réguas e escritos um futuro traçado pela mão de poucos, no apagar das luzes de um governo à beira de uma eleição, reeleição? O que não é dito nessa atitude tão poderosa? Arrogância? Ou algo mais pragmático que pode envolver um ato que passa por cima de todo tipo de lógica. E imputam a si todo o poder em decidir qual o projeto político, artístico e cultural deve ser implantado na cidade de Belém do Pará, sob o pretexto fortalecimento da cultura local.
Se isso fosse verdadeiro, esse grupo poderia pensar em ampliar os espaços e equipamentos culturais. Como por exemplo, por que não o Palacete Pinho? O discurso de que se quer fortalecer a cultura local com o fortalecimento da gastronomia não deveria se apresentar em ações imperialistas. E com certeza não deveria prevalecer a ideia de supressão do discurso da arte como território do sensível e do conhecimento por intermédio da arte contemporânea. O Museu Casa das Onze Janelas tem um poderoso acervo que revela o território da arte brasileira como uma trincheira aberta no norte do país, garantindo as nossas fronteiras, e tomadas de posições. A atitude do governador Simão Jatene e do conluio dos membros do grupo silencioso, fere, desrespeita, nos assalta, assalta nossas conquistas!
O Movimento Casa das Onze Janelas exige em nome desse território constituído que venha imediatamente a público o projeto, o que move esse projeto de poder, que quer tomar de assalto nossa cultura, nosso lugar, naquilo que temos de mais autêntico e nos caracteriza como indivíduos com culturas complexas. A atitude desse grupo e do governador Simão Jatene é de "passar a régua" nas nossas conquistas, em nome de algo que se revela em suas atitudes silenciosas, como colonialistas e destruidor da cultura da arte demarcada em 14 anos de atuação.
Será que vivemos dias extraordinários? Ou esse tipo de atitude autoritária, sempre aconteceu? Mas não de forma tão acintosa! Estamos cegos, mudos e surdos a elas??? A desativação do Museu Casa das Onze Janelas é a ponta do iceberg, de um grande projeto de tomada de território dos espaços da cidade a partir da mancomunação de poucos, das trocas de favores... O que pode estar por detrás dessas atitudes sorrateiras?
Temos no governador Simão Jatene uma verdadeira demonstração de poder e não de autoridade que deveria ser a postura de um gestor de um Estado rico culturalmente, do ambiente, da biologia, complexo, diverso. Precisamos defender a nossa liberdade de decidir ser o que quisermos ser! Essa é nossa causa: a liberdade da manutenção do território da arte que construímos numa comunidade brasileira. Esta, nos termos de Foucault, "não é uma luta para alcançar o que efetivamente somos, mas um esforço de desprendimento da identidade a nós imposta."
A hora é essa! Precisamos resistir, precisamos reagir!!
Posicione-se! Assine a petição! Compartilhe!
Movimento Casa das Onze Janelas
16/06/2016 – Belém – Pará
Francisco Bosco escreve sobre a cultura dividida e o vaivém do MinC, Folha de S. Paulo
Francisco Bosco escreve sobre a cultura dividida e o vaivém do MinC
Artigo de Francisco Bosco originalmente publicado no caderno Ilustríssima do jornal Folha de S. Paulo em 12 de junho de 2016.
RESUMO O ex-presidente da Funarte, exonerado do cargo pelo presidente interino Michel Temer, escreve sobre diferentes ações para a cultura na história do país e a atual divisão da classe artística. Há aqueles que reconhecem a recriação do Ministério da Cultura e os que, como ele, não querem diálogo com a direção da pasta.
De um presidente sem votos, chefe de um partido especializado na realidade das relações de força do Congresso, e não na da sociedade, dificilmente se poderia esperar outra coisa: sem fazer a menor ideia de onde pisava, extinguiu logo o Ministério da Cultura –aquele antro de petistas mamadores da Lei Rouanet– e acabou por se deparar com o mais barulhento foco de resistência a seu governo em suas semanas iniciais.
Primeiro, o setor cultural inteiro se manifestou contra o remake do fim do MinC (a versão original foi obra de Fernando Collor). O novo ministro da Educação e Cultura, Mendonça Filho, já na chegada teve que encarar um protesto humilhante dos servidores. Em um primeiro recuo, Temer anunciou que a Secretaria de Cultura sairia da Educação e seria ligada à Presidência. Procurando o que para ele seria unir o inútil ao desagradável, buscou uma mulher para o cargo. Bateu de frente com a recusa pública de ao menos cinco delas.
Forçado a retornar ao ponto de partida, decretou a volta do MinC e nomeou um novo ministro, mas as sedes do ministério em todas as capitais do país permaneceram ocupadas, e diversas associações, como a Frente Nacional do Teatro, além de diversos artistas, mais e menos conhecidos, declararam não reconhecer o novo MinC. Para essa parte do setor, não há qualquer diálogo possível com o novo ministério. A reivindicação é única e posta nos mesmos termos do vício de origem de todo esse processo: #foratemer.
Ao mesmo tempo e por outro lado, associações como o Procure Saber, o GAP (Grupo de Ação Parlamentar da música) e a APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) manifestaram contentamento com a recriação do MinC e apoiaram o novo ministro. O diretor de teatro e realizador cultural Marcus Faustini o saudou como "primeiro ministro pós-participante da geração de resistência à ditadura, pós-tropicalismo, pós-hegemonia de sociólogos no comando da cultura". E viu nisso "uma mudança importante" (que importância, não se sabe).
É preciso, portanto, primeiramente assinalar a oposição entre essas duas vertentes e, em seguida, compreender o que está em jogo em sua diferença. Se o setor cultural está dividido, é porque há dois projetos de cultura fundamentalmente diferentes sendo disputados. Como costuma ser a regra, ao status quo interessa dissolver a diferença. Com efeito, tem sido essa a estratégia do novo ministro da Cultura –mas isso, como procurarei demonstrar, só acaba por revelar com clareza maior a distinção. Para compreendê-la, precisamos recuar no tempo.
RECENTE
A história das políticas públicas do Estado brasileiro para a cultura, enquanto conjunto de ações articuladas e sistemáticas, é relativamente recente e pode ser em larga medida sintetizada, como identifica Albino Rubim, pelas palavras "ausência, autoritarismo e instabilidade".
Foi na década de 1930, durante o governo Vargas, que ocorreram as primeiras experiências mais conscientes e consequentes de políticas públicas para a cultura, por meio das figuras de Mário de Andrade e Gustavo Capanema.
O primeiro, embora gestor municipal –diretor do Departamento de Cultura de São Paulo–, avançou formulações e práticas inaugurais de vocação e interesse nacionais: afirmou a cultura como instância central ("algo tão vital como o pão"); estabeleceu uma intervenção estatal sistemática, articulando diferentes áreas da cultura; realizou pesquisas sobre o folclore em diversos Estados, recusando identificar cultura e belas-artes; formulou um ambicioso e criterioso programa de proteção ao patrimônio; entre outras ações.
Seu contemporâneo Gustavo Capanema, ministro da Saúde e Educação de Vargas, realizou também um conjunto articulado de intervenções, estabelecendo legislações para as diversas artes e criando instituições culturais, entre elas o Instituto Nacional do Livro e o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, instituição mais forte da cultura no país até os anos 1970. "Esteticamente modernista e politicamente conservador", como o define Rubim, sob a gestão Capanema estavam tanto o Departamento de Informação e Propaganda, órgão de controle e censura da cultura, quanto alguns dos mais importantes artistas modernistas, como Drummond, seu chefe de gabinete, Portinari e Niemeyer.
Acelerando a história, o período de 45 a 60 é marcado por um desenvolvimento forte da indústria cultural, desacompanhado de intervenções sistemáticas por parte do Estado. Já durante a ditadura, após a fase de brutalidade máxima, a partir de Geisel, com o começo da distensão do regime, ocorre um intenso investimento do Estado na cultura, com ampliação de orçamento para a área e criação de diversos organismos, entre eles a Funarte.
Nesse momento, sob a gestão do ministro da Educação e Cultura Ney Braga, o governo incentiva um conjunto de atividades culturais no meio universitário, abrangendo 21 universidades. Como observa Lia Calabre, "a perseguição e o desmantelamento dos trabalhos realizados pela UNE, por meio dos CPCs [Centro Popular de Cultura], deixou espaço para projetos institucionais artísticos no campo universitário". Essa situação tem caráter exemplar.
Com a Nova República, começa a se formar uma mentalidade liberal na relação entre Estado e cultura. Apesar da própria criação do MinC, o sentido do período é sobretudo de enfraquecimento das ações estatais: Lei Sarney de incentivo fiscal, o desmonte institucional da cultura por Collor, a Lei Rouanet e a gestão de Francisco Weffort nos oito anos de FHC se dão sob essa égide.
Durante todo o governo FHC quase não há políticas culturais, a não ser alterações na Lei Rouanet. Para pior, distorcendo seu correto espírito original e produzindo um desequilíbrio no ecossistema cultural que permanece até hoje, apesar dos esforços de retificação do governo seguinte.
Foi na gestão de Gilberto Gil (2003-08), seguida pela de Juca Ferreira (2008-10), que o Ministério da Cultura viveu um processo inédito de engrandecimento. Substituiu uma ideia restritiva de cultura por outra abrangente, capaz de abarcar a complexidade e heterogeneidade do país.
Criou mecanismos de gestão participativa, fortalecendo o CNPC (Conselho Nacional de Políticas Culturais) e realizando as Conferências Nacionais de Cultura. Identificou a necessidade de um Sistema Nacional de Cultura, baseado no fortalecimento institucional de Estados e municípios e de sua articulação com a União, com o objetivo de produzir uma relação mais eficiente entre os entes federados.
Criou o programa Pontos de Cultura, efetivando uma compreensão contemporânea e descentralizada da cultura brasileira. Assegurou transparência e republicanismo aos mecanismos do ministério. E, sobretudo, propôs a cultura como uma instância indissociável de um projeto geral de sociedade brasileira mais democrática. Como observa Isaura Botelho, esse MinC considera "fundamental a articulação entre cultura e cidadania". Pois bem, esse é o ponto.
KAFKA
Se estivesse vivo e observando a conjuntura brasileira, Kafka escreveria a seguinte sucinta parábola: um homem invade a sua casa de madrugada, rouba seus pertences, em seguida o acorda e o convida a dialogar para ajudá-lo a decidir o que fazer com eles. Pois bem, para todos da cultura que consideram o governo Temer fruto de um golpe, o homem da história é o seu ministro da Cultura Marcelo Calero.
Não reconhecer sua legitimidade significa recusar a armadilha do paradigma proposto: dialogar ou não dialogar. Ora, ninguém precisa ser leitor da dialética do senhor e do escravo para perceber que dialogar já implica reconhecimento. E reconhecer esse ministro da Cultura implica necessariamente reconhecer o presidente Michel Temer (chamado por Calero, aliás, de "grande líder"). Não há interesse particular mal disfarçado de malabarismo retórico capaz de desconstruir essa lógica.
Calero fez uma boa gestão como secretário municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Tudo indica que ele manterá programas importantes oriundos da gestão Gil e Juca e insistirá na tecla do diálogo. O problema é que, no fundo, o que está em jogo é precisamente a dissociação entre cultura e cidadania, que é, no limite, o maior legado de Gil e Juca.
Há uma contradição lógica entre a manutenção dessas políticas culturais e a compreensão da cultura como uma instância que pode e deve ser tratada isoladamente da situação geral do país, uma vez que essas políticas culturais têm como ponto de partida justamente a compreensão da cultura como uma instância na qual se pensa e se experimenta um projeto de sociedade mais profundamente democrática. Ou seja, precisamente o que se compromete com o golpe que esse novo MinC reconhece e perpetua.
Trata-se, portanto, de uma falsificação decisiva. Dissociar a cultura de um projeto de sociedade brasileira é um retrocesso. Os setores da cultura que se recusam a dialogar com esse MinC o fazem porque estão cientes disso; porque pensam a cultura como cidadania, para muito além de obras de arte, editais e espetáculos.
Há aqueles que defendem o diálogo com esse MinC lembrando que na ditadura se deu a institucionalização da cultura de maneira intensa, com um importante legado. Sério? O que é o legado da Funarte em comparação ao legado da própria ditadura? Volto aqui à referência aos CPCs, à perseguição a eles, e depois à reativação de um circuito universitário. Destruir ilegitimamente para reconstruir à base de um "semblant" de diálogo. É esse o programa, que se filia, desse modo, ao da ditadura.
Os que o recusam se filiam a outra tradição. No projeto cultural sonhado por Mário de Andrade havia não apenas bibliotecas públicas, mas parques infantis, com atividades esportivas e serviço de nutrição. Isso mesmo, a cultura mobilizada para combater o então grave problema da desnutrição infantil. É a essa tradição que se filia o MinC de Gilberto Gil e Juca Ferreira – o MinC de todos os ocupantes, de todos os artistas, produtores e cidadãos que desejam uma sociedade brasileira mais democrática e estão lutando por ela.
FRANCISCO BOSCO, 39, é ensaísta e ex-presidente da Funarte.
Artistas planejam exposição e leilão contra o ‘golpe’ por Silas Martí, blog Plástico
Artistas planejam exposição e leilão contra o ‘golpe’
Post de Silas Martí originalmente publicado no blog Plástico em 14 de junho de 2016.
Lourival Cuquinha, Ligue os pontos
Em paralelo às ocupações de prédios públicos que pressionam contra o fim do governo do presidente interino Michel Temer, artistas planejam uma exposição seguida de um leilão na sede paulistana da Funarte, ocupada há um mês.
A ideia de “Aparelhamento”, como batizaram o evento, é vender obras por até um quarto do preço praticado pelas galerias para financiar uma série de ações artísticas em protesto contra o que chamam de “golpe”, que afastou a presidente Dilma Rousseff.
Entre os artistas envolvidos no manifesto estão nomes de peso no cenário artístico do país, como Bárbara Wagner, Beto Shwafaty, Lourival Cuquinha, Marcelo Cidade, Mônica Nador, Pablo Lobato, Thiago Martins de Melo e Virginia de Medeiros.
Eles vêm debatendo ações em assembleias e pelas redes sociais sobre o que fazer para deixar claro o descontentamento da classe artística com o caos em Brasília.
Na lista de ideias, está fazer projeções com frases como “fora Temer” em fachadas e até alugar um helicóptero que despejaria quilos de farinha sobre a cidade, em alusão à cocaína encontrada na aeronave de um político.
Ligue os pontos Pelo menos cinco colecionadores preferiram não comprar esta obra de Lourival Cuquinha, que escreveu a palavra “golpe” com pilhas de moedas na parede.
Luto Morto há uma semana, Tunga é um dos destaques da maior feira de arte do mundo, a Art Basel, nesta semana na cidade suíça de Basileia. Sua instalação “Eu, Você e a Lua” está à venda no evento por cerca de R$ 2,1 milhões.
Luto 2 Enquanto isso, a Millan, galeria do artista em São Paulo, suspendeu por enquanto vendas de suas obras em respeito à morte muito recente.
Luta Artistas de Belém protestaram no domingo contra o que pode ser o fim da Casa das Onze Janelas. O principal espaço de arte contemporânea do Pará pode ser despejado para virar uma escola de gastronomia com restaurante. (abaixo-assinado ao IPHAN - Pará)
junho 14, 2016
A artista Ana Paula Oliveira une o improvável em suas peças por Camila Molina, Estado de S. Paulo
A artista Ana Paula Oliveira une o improvável em suas peças
Matéria de Camila Molina originalmente publicada no jornal Estado de S. Paulo em 12 de junho de 2016.
Escultora apresenta obras realizadas entre 2014 e 2016 na mostra 'Círculo de Giz e Um Pouco Sobre Sólidos'
Os pássaros estão a ponto de alçar voo, mas, fundidos em bronze, os sanhaços da obra Um Pouco Sobre Sólidos (2014), de Ana Paula Oliveira, simbolizam apenas “impulso” da ação. O trabalho da artista, exposto agora na Galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, tem uma estranha leveza, uma beleza triste com as esculturas dos pequenos bichos instaladas sobre placas de vidro – e mesmo as peças geométricas de ferro que sustentam a estrutura daquela criação não parecem pesadas, repousadas entre os planos transparentes.
Diante de sua mostra, a escultora, que realizou sua última individual na cidade em 2013, afirma que gostaria de fazer com suas obras o que o diretor japonês Akira Kurosawa consegue com os filmes: ser ao mesmo tempo “tão forte e tão leve”, ser contundente, firme, falando com delicadeza. “Aquilo que sinto quando assisto a ele é o que queria passar”, resume a artista, que já usou grandes dormentes de madeira para suspender sacos de plásticos com água e peixinhos (como esquisitas aliterações dos globos com peixes dourados das pinturas de Matisse) – na instalação Ainda Não (2010) – e jabuticabeiras – em Meu Chapéu tá no Alto do Céu (2012).
Na semana em que a arte brasileira perde um de seus maiores criadores, Tunga, morto na última segunda-feira, 6, aos 64 anos, vale a pena resgatar uma fala do escultor – “Percebi que arte não era outra coisa senão juntar coisas; fazer com que, ao juntar coisas, apareçam coisas que nos surpreendam, coisas que estão ali, mas estão veladas”. A força dos trabalhos de Ana Paula Oliveira também está no exercício desse “artifício”, o de juntar o que é improvável.
Veja conversa da artista Ana Paula Oliveira com Laura Vinci e Douglas de Freitas
No caso da exposição Círculo de Giz e Um Pouco Sobre Sólidos, em cartaz até 16 de julho na Galeria Marcelo Guarnieri, pássaros (sanhaços fundidos em bronze ou pequenos manons taxidermizados) pertencem a trabalhos feitos também com peças de ferro e vidros. Ou, por exemplo, uma estátua de alumínio, réplica do histórico Discóbolo, do grego Míron, tem partes compostas com plantas (popularmente conhecidas como espadas de São Jorge). “Se você coloca coisas opostas juntas, você acentua cada uma delas”, define Ana Paula Oliveira, nascida em 1969, em Uberaba. “Não é 8 ou 80, é encontrar no meio a polarização”, diz.
A própria criadora identifica uma nova e surpreendente “elaboração” em suas obras – os elementos de suas criações não são mais “mal acabados” como antes e os materiais não mais se juntam como “atletas correndo provas separadas numa mesma raia”, fruto de “um arbítrio distraído, estético”, já escreveu o artista Nuno Ramos em 2009 sobre a escultora.
Sendo assim, na série Vistaña (2016), os desenhos dos voos “predestinados” de manons taxidermizados são cortados, por meio de jatos d’água, em placas de vidro. Nas peças entre o bidimensional e o tridimensional, com formas geométricas traçadas e pássaros mortos embutidos, coexistem "a prática manual, primária; a industrial, reta e até agressiva; e o passarinho, que simboliza um costume de muito tempo atrás”, explica Ana Paula Oliveira.
Mais ainda, o Círculo de Giz que aparece no título da mostra é uma menção, por meio de Vistaña, aos “desenhos que você faz e que se apagam” – e os voos, etéreos, estão representados por linhas duras, geométricas.
Mas é Vetores (2016), a réplica “meio cafona” do Discóbolo com as espadas de São Jorge a peça que, afinal, “está causando”. A inusitada imagem retoma a história da escultura ao remeter à estátua grega datada de mais de 400 anos a.C. e que representa o atleta na iminência de lançar um disco.
O homem (ideal) representado “sugere movimento” e indica uma “tensão” que Ana Paula Oliveira também relaciona como uma característica presente em sua produção artística. A réplica, entretanto, foi feita em alumínio, “material chulé”, nada tradicional. “O (escultor) Amilcar (de Castro) dizia que o alumínio não tem caráter”, conta a artista, que surpreende o espectador ao materializar as linhas da ação do atleta (os vetores) com as espadas de São Jorge. Essas plantas, ela lembra, “quer queira ou não, têm uma simbologia forte” e evocam nossos antepassados. É uma escultura sobre a junção de distinta tradições.
Mostra de Alfredo Volpi em Londres questiona o título de naïf do pintor por Lucas Neves, Folha de S. Paulo
Mostra de Alfredo Volpi em Londres questiona o título de naïf do pintor
Matéria de Lucas Neves originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 11 de junho de 2016.
Celebrizado por suas séries de bandeirinhas e fachadas que aliam formas simples e cores vibrantes, o pintor Alfredo Volpi (1896-1988) foi classificado por um filão da crítica como artista naïf. Ou seja: mais intuitivo do que técnico, e não inserido no circuito tradicional de formação (escolas de arte) e divulgação (galerias, museus, leilões).
Uma exposição a ser aberta neste sábado (11), em Londres, busca justamente questionar essa caracterização. É a primeira mostra no Reino Unido dedicada exclusivamente à obra de Volpi, italiano radicado em São Paulo desde os dois anos. No espaço expositivo da Cecilia Brunson Projects, 17 telas percorrem as seis décadas de atividade do pintor, entre os anos 1930 e 1980.
Para o curador Michael Asbury, "a grande contribuição dele foi mostrar que um homem de origem simples podia ser um grande artista". Morador do Cambuci (bairro na região central de São Paulo com expressiva fixação de imigrantes italianos), Volpi abandonou a escola no começo da adolescência e trabalhou como tipógrafo e pintor de interiores antes de passar às telas.
Veja as fotos da exposição de Alfredo Volpi em Londres
"O rótulo de naïf é resultado de um preconceito classista, constitui uma forma de relegá-lo ao segundo plano", avalia Asbury. "O Brasil não admite isso [que uma pessoa de origem pobre alcance amplo reconhecimento]. Até hoje, no país, há poucos artistas negros ou que não vêm de família da classe alta."
Ironicamente, dois grandes admiradores da produção do italiano estão entre os que contribuíram para o que o curador vê como uma estigmatização. O crítico Mário Pedrosa (1900-1981) organizou uma retrospectiva do artista em 1957, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Na Bienal de 1961, da qual foi curador, dedicou a ele uma sala. Oito anos antes, havia integrado o júri da Bienal que dera a Volpi o prêmio nacional de pintura –empatado com Di Cavalcanti (1897-1976).
Ocorre que, em seus escritos, Pedrosa costumava sublinhar o caráter "outsider" de Volpi, a sua não filiação a círculos de artistas e ao "mundo da arte" de uma forma geral, lembrando que ele não recebera treinamento formal. Tratar-se-ia, assim, de um naïf.
Já o crítico inglês Herbert Read foi peça-chave para a atribuição da distinção ao pintor na Bienal de 1951 –segundo Décio Pignatari contou à Folha em 2001, havia um acerto entre os membros da comissão julgadora para conceder o prêmio a Di Cavalcanti, mas Read se opôs e ameaçou dedurar a armação à imprensa, conseguindo por essa via emplacar o seu preferido, Volpi.
O britânico tinha apreço pela obra do naïf Alfred Wallis (1855-1942), natural de uma vila de pescadores da Cornualha, e o paralelo com Volpi tornou-se quase inevitável.
O certo é que a pintura de Volpi efetivamente mudou a partir do fim dos anos 1930, depois de ele conhecer o trabalho do naïf Emigliano de Souza, de Intanhaém, no litoral paulista: adeus à perspectiva, fachadas retratadas sob outra mirada, e logo a introdução das bandeirinhas como motivo recorrente.
Mas trata-se de uma progressão consciente, não intuitiva, destaca Asbury. Além disso, Volpi tinha entrada no "grand monde" das artes. Admirava o alemão Joseph Albers e o francês Paul Cézanne; sofreu influência do expressionista Oswaldo Goeldi; frequentava nomes como Tarsila do Amaral e Lasar Segall.
A exposição, organizada com o apoio da galeria paulista Almeida e Dale, fica em cartaz até 29 de julho.
junho 9, 2016
Morre o artista alagoano Euzebio Zloccowick, O Povo
Morre o artista alagoano Euzebio Zloccowick
Matéria originalmente publicada no jornal O Povo em 9 de junho de 2016.
O ator e diretor estava no município de Marechal Deodoro, em Alagoas, onde mora a mãe. O enterro foi na manhã desta quinta, 9, em sua cidade natal
Morreu o artista alagoano Euzebio Zloccowick, aos 56 anos, nesta quinta-feira, 8, por volta das 9 horas. Conforme informações preliminares, o ator e produtor tratava uma bactéria nos pés que se alastrou para o pulmão, resultando em problemas respiratórios. Pessoas próximas a Euzebio comentam que ele havia apresentado "grande melhora" antes de piorar na última semana. Ele faleceu na Praia do Francês, no município de Marechal Deodoro, em Alagoas, onde mora a mãe. O enterro foi na manhã desta quinta, 9, em sua cidade natal.
A pesquisadora sonora Vivi Rocha, com quem Euzebio trabalhou no coletivo audiovisual Caratapa, diz que o artista "modificou a vida das pessoas" com quem se relacionou. "Foi um baque pra todos nós. Eu acho que poderia descrevê-lo, como um amigo falou, como uma pessoa que ultrapassou e modificou a vida de muitas pessoas", comenta. "Ele foi um profissional muito maravilhoso, muito dedicado. Fazia um trabalho muito minimalista".
Zloccowick morava em Fortaleza há cerca de 20 anos.
Armadilhas de Tunga criadas entre realidade e ficção, drama e loucura por Maria Hirszman, Estado de S. Paulo
Armadilhas de Tunga criadas entre realidade e ficção, drama e loucura
Texto de Maria Hirszman originalmente publicado no jornal Estado de S. Paulo em 18 de novembro de 2007.
É no aparentemente caótico, que obedece às leis insondáveis da filosofia, da ciência e da psique, que artista, morto aos 64 anos, funda sua ordem
Releia o texto que o Estado publicou em 18/11/2007 sobre o artista Tunga
Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão é um nome e tanto. Parece já conter nas circunvoluções sonoras algumas pistas capazes de auxiliar na árdua tarefa de definir a obra do artista nascido em Pernambuco e que se tornou nacional e internacionalmente conhecido por Tunga. Assim como no jogo aparentemente contraditório entre extensão e síntese protagonizados por seu nome e apelido, o artista tem como marca central a permanente exploração do contraditório, a capacidade de condensar numa mesma ação elementos absolutamente díspares e potentes.
Quer nas "instaurações" (como costuma chamar suas instalações-performances), quer nos desenhos ou nos livros, Tunga realiza um duplo processo mobilizador: ao mesmo tempo em que se situa no campo do eterno retorno, da repetição mântrica de um conjunto restrito de elementos de forte carga simbólica, ele coloca em ação uma série de estratégias para romper com os padrões institucionais, formais da arte. Nega o estatuto da obra, ao construí-la em parceria com o público e até mesmo com as moscas que atrai e aprisiona em armadilhas de melado; nega a ideia de autor, ao confundir-se com sua própria obra. Esfacela os limites entre realidade e ficção, entre drama e loucura.
Mito e realidade se associam, numa trama que vai muito além do suporte material de cada experiência individual e que também extrapola o significado fechado de cada construção poética para integrar-se no conjunto de sua produção. Nesse processo de integração - que remete à importância do ímã nos trabalhos de Tunga -, as várias experimentações ressignificam-se a si próprias e também agregam novos caminhos de leitura e interpretação à toda sua obra. Assim, a potência sensível da arte vai muito além de estado físico, tangível e fetichista da matéria, tornando-se um amálgama no qual a criação e a recepção se aproximam.
Segundo Suely Rolnik, é por meio da palavra que isso se torna ainda mais evidente. "Nestes textos, onde ficção se entrelaça com dados objetivos e biográficos, obra e vida tornam-se inseparáveis - a vida se mostra obra, e a obra, cartografia da vida", escreve ela em ensaio publicado por ocasião da exposição Tunga: 1977-1997.
As armadilhas de Tunga para seduzir e envolver o espectador lembram a já citada armadilha de luz e melado para atrair os insetos. Os símbolos a que recorre para construir sua poética (ossos, tranças, cabelos, animais, vidros...) constroem não apenas estruturas visuais a serem apreendidas pelo olhar e elaboradas racionalmente. Atuam também corroendo a razão, agindo no inconsciente e mobilizando outras formas de percepção. "Como toda grande arte, engaja corpo e alma, matéria e espírito", sintetiza com precisão Paulo Sergio Duarte.
É como se ele buscasse nesse processo tocar um nervo exposto, dolorido, que possui dimensões ao mesmo tempo universais, sociais e individuais. Exemplos não faltam, como a fascinante experiência de semear sereias, criada para a Bienal de São Paulo de 1987, o livro Barroco de Lírios, lançado uma década depois pela Cosac Naify, e no antológico filme feito por ele em parceria com Arthur Omar, intitulado Nervo de Prata.
É naquilo que aparentemente é caótico, que obedece às leis insondáveis da filosofia, da ciência e da psique que Tunga funda sua ordem. E é num processo de continua repetição, de fluxo permanente e sinuoso (seja o fio de cabelo, o traço do desenho ou a linha tênue que conduz raciocínio e emoção paradoxalmente para uma mesma direção) que ele está permanentemente rompendo paradigmas. Apóia-se na tradição, busca referência nos arquétipos, mas não se prende a eles. Como diz o próprio artista na abertura de Barroco de Lírios, ele reencontra "o novo no velho": "Sempre gostei de bagunça. Não de ordem nem desordem. Bagunça. O que tenho à mão vou mexendo até perder, pra depois achar de novo. Achando o que perdi acho o novo de novo, reencontro o novo no velho - é como a luz, a velha luz, descansada e sempre nova de novo", escreve.
Obra de Tunga não ficava restrita ao discurso autorreferente da arte por Fabio Cypriano, Folha de S. Paulo
Obra de Tunga não ficava restrita ao discurso autorreferente da arte
Análise de Fabio Cypriano originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 6 de junho de 2016.
O percurso de Tunga é singular na arte brasileira. Por um lado, ele deu continuidade às propostas mais radicais de Lygia Clark e Hélio Oiticica, valorizando a presença do espectador, questionando os suportes tradicionais, usando o corpo como território de expressão.
Contudo, de forma muito distinta da performance, Tunga utilizou em suas obras, ou "instaurações", como ele preferia chamá-las, uma encenação que se distanciou de forma bastante radical da espontaneidade que os artistas dos anos 1960 e 1970 buscavam.
Em "Xipófagas Capilares", por exemplo, exibida pela primeira vez em uma galeria comercial, em 1985, Tunga apresentou duas adolescentes loiras semelhantes unidas por uma vasta cabeleira, que percorriam o espaço de mãos dadas.
A ação foi refeita algumas vezes. A estranheza do confronto com as meninas é um tanto semelhante às estratégias surrealistas de provocar o espectador a partir da união de elementos conhecidos, mas que não costumam estar juntos —como o "Telefone-lagosta", criado por Salvador Dalí, em 1936.
No entanto, Tunga visava mais que a provocação e o choque, mesmo que trabalhasse muito bem nessa condição. Em toda a sua obra se percebe, contudo, uma profunda reflexão sobre a condição humana.
No caso de "Xifópagas Capilares", a problemática do duplo, tema recorrente em sua obra, sobressai. Há quatro anos essa "instauração" pode ser revista, desde quando o Inhotim inaugurou o pavilhão dedicado ao artista.
Em um cenário onde os museus de arte do Brasil não dão conta de apresentar de forma decente a produção atual, Tunga se tornou um dos poucos privilegiados a ter no Inhotim um local onde seu trabalho pode ser visto de forma abrangente e completa —com pelo menos dez obras de grande porte.
Esta lá, por exemplo, "À Luz de Dois Mundos", criada para ser exibida no Museu do Louvre, em Paris, em 2005. Nela, Tunga expõe uma caveira em uma imensa rede metálica, referência ao processo civilizador nos trópicos, que dizimou milhões de indígenas em todo continente americano.
Em "À Luz de Dois Mundos", o comentário de Tunga não é literal como pode parecer em uma descrição de poucas palavras. A obra é complexa, cheia de mistérios e metáforas, como em toda sua produção.
Outro trabalho exibido no Inhotim é "Teresa", que em 1999 foi apresentado com cem desempregados em Buenos Aires, na Argentina. Na inauguração de seu pavilhão no Inhotim, em 2012, cem jardineiros tomaram parte da encenação de trançar lençóis, como fazem os detentos para escapar dos presídios, daí o nome "Teresa".
Essa "instauração" representa outro elemento essencial na obra de Tunga: não fica restrito ao discurso sobre a arte. Sua "Teresa" simboliza a necessidade da fuga do circuito, do rompimento com as certezas institucionais, a busca pela liberdade.
A radicalidade da obra de Tunga comprova que é possível ser experimental e, ao mesmo tempo, conseguir inserção sem comprometimento. Assim ele participou das mostras mais importantes, como a Documenta de Kassel, em 1997, a Bienal de Veneza, em 1982, e várias vezes a Bienal de São Paulo.
Assim Tunga será lembrado. Como poucos, ele afinal assumiu a máxima de Mário Pedrosa: "A arte é o exercício experimental da liberdade".
Tunga construía sua poesia calcado em universos distintos por Miguel de Almeida, Folha de S. Paulo
Tunga construía sua poesia calcado em universos distintos
Artigo de Miguel de Almeida originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em 6 de junho de 2016.
Ali por meados dos anos 1980, Tunga apareceu na ampla sala do apartamento de seu pai, em Copacabana. Seus cabelos, lisos e compridos, mais ou menos divididos no meio da cabeça, caíam nos ombros e lhe davam um ar de cherokee digital. Magro, olhos escuros estalados no meio da noite, vestia algo assemelhado a uma bata, de gola careca; falava rápido e num tom baixo: "Então, você é o amigo de que meu pai tanto fala", disse, e me abraçou. Nunca mais deixamos de ser amigos.
Seu pai era o lendário poeta Gerardo Mello Mourão. Naquela época, voltava da China, onde fora correspondente da Folha. Os despachos de Gerardo brilhavam ao lado de textos de Paulo Francis, de Nova York; Claudio Abramo, de Paris e Londres; e Osvaldo Peralva, de Tóquio. Sacou a briga de estrelas? Gerardo logo me adotou e me transformou em seu cicerone na Pauliceia. Minha tarefa era descobrir novos restaurantes japoneses pela cidade, e contar causos.
Casado com Léa, filha do poderoso senador Antônio de Barros Carvalho, Gerardo, nascido no sertão cearense, fora deputado federal, fundador de vários jornais e se transformara por conta de sua obra e militância política em cidadão do mundo. Estabelecera uma imensa rede de amigos poetas e políticos ao redor do planeta. Cultivava também bons adversários. Aquilo tudo me fascinava: tinha segredos de polichinelo de personagens distintos como Michel Deguy, Pablo Neruda e Leonel Brizola.
Por vários anos, o senador Antônio Barros dera abrigo (casa, comida e roupa lavada) ao amigo Alberto da Veiga Guignard. Em agradecimento, o doce artista mineiro tratou de pintar o casarão da família, na rua România, no bairro carioca de Laranjeiras. Tetos, portas e algumas paredes foram cobertas por suas cores amenas e cenas cotidianas. Também registrou as filhas do senador numa tela clássica, as gêmeas Maura e Lea, mãe de Tunga, que vai citar o caso na sua série, hilária, "Xipófogas Capilares", da década de 1980.
Então, embaixo do prosaico apelido de Tunga escondia-se o nome heráldico de Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão. Um disfarce. Tanta política, arte brasileira e funda tradição nordestina, vinda da colônia, mais certa distinção próxima ao rapapé, soavam a ele peso desproporcional diante de seu projeto em construir uma obra desterritorializada, não imbricada com regionalismos ou cepas nacionalistas. De Gerardo herdou um fino humor, sofisticado, ao qual acrescentou um gosto pelo chiste e a construção permanente de irrealidades.
Isso no Brasil? Um país jovem mas talhado pela desigualdade social na falsa sisudez da república de doutores? É demais para essa terra um artista que se recusa a tecer um trabalho que não tenha por base a realidade imediata e azeda. Como ousa?
No DNA estético-ideológico pátrio se encontra o desenho da arte como registro, reprodução e, muitas vezes, acentos regionais. Se fosse assento seria mais útil. Assim o que possui caráter internacionalista, no Brasil, é posto sob suspeição. É pau, é pedra, é o fim do caminho.
Talvez venha daí a maior repercussão da obra de Tunga em terras estrangeiras: nos últimos anos foram várias as mostras dele em cidades europeias e americanas. Ele sempre fez um trabalho pertencente ao mundo, a partir de referências colhidas na especificidade dos materiais, por vezes em suas próprias excentricidades (cabelo, ossos, barro etc.), no lúdico, e solidamente amparado numa visão filosófica da arte. Porque sempre teve uma sede exuberante pela vida.
Aí que está. Nestes últimos tempos, trocando ideias para o nosso documentário, percebi como Tunga construía sua poesia calcado em universos distintos, quase intangíveis, e num diálogo com a natureza primeva. Numa imagem, o osso que sobe em "2001" de Kubrick e sob Wagner se transforma numa espaçonave. De primatas a astronautas, glosando Mlodinow.
Na construção do roteiro do nosso filme, senti como Tunga sacava conceitos oriundos da física, da química, de fenômenos geofísicos, da linguística e da filosofia para alicerçar seu pensamento. A todo esse coquetel adicione-se ainda sua picardia e sobretudo sua elegância ao desprezar os temas pedestres do cotidiano. É só olhar em volta e cotejar como ele fará falta.
Tunga 1952-2016: Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Tunga 1952-2016: Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 6 de junho de 2016.
Um dos maiores nomes da arte do país, Tunga morre aos 64, no Rio
Um dos nomes mais celebrados e relevantes das artes visuais do país, Tunga morreu nesta segunda, aos 64. Ele sofria de câncer e estava internado no hospital Samaritano, no Rio, havia três semanas. Seu corpo será enterrado no cemitério São João Batista.
Em quase meio século de carreira, Tunga construiu uma obra plástica incontornável na arte contemporânea, mesclando referências sutis à herança construtiva que dominou as vanguardas nacionais a um universo simbólico único.
Seu mundo de tranças de aço e cobre atravessando pentes, ímãs ultrapotentes, caveiras, esqueletos, sereias, pérolas e sementes foi ao longo dos anos chamado de surrealista, delírios orquestrados como parte de uma mesma sinfonia.
Nascido em Pernambuco e radicado no Rio desde os anos 1970, Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão era filho de um poeta —Gerardo Mello Mourão. jornalista morto aos 90, em 2007, que foi correspondente da Folha em Pequim no início dos anos 1980.
Desde seus primeiros desenhos, Tunga dizia que suas obras partiam de reflexões a meio caminho entre versos e teorias filosóficas e científicas, “nunca demonstráveis nem refutáveis”, ele frisava.
No campo da escultura, maior parte de sua obra que surgiu sempre aliada à performance, usava materiais como cobre, aço e ímãs em construções que lembram o corpo humano, tecidos, pele, cartilagens e esqueletos, revestindo de dimensão carnal tudo que parece surgir como algo de natureza robusta, industrial.
É nesse sentido, falando em “construção rigorosa do imaginário”, que Tunga juntou duas pontas irreconciliáveis do espectro da arte contemporânea —o minimalismo obcecado pela força bruta da matéria, de Richard Serra a José Resende, e a sensualidade sanguínea de obras sobre o desejo, lembrando a dor dos corpos incomuns de Louise Bourgeois.
Esse erotismo, enquanto forma de manifestação do instinto e do desejo, parece guiar grande parte de suas pesquisas estéticas. Em um filme pornográfico que realizou, cristais e pedras surgem como transmutação de fluidos corporais, saliva, urina e fezes —o artista apontava ali uma espécie de alquimia latente na própria existência, de corpos em transformação.
DÂNDI TROPICAL
Sempre vestindo ternos de cores extravagantes, Tunga era um dândi tropical, lembrando às vezes Flávio de Carvalho, um artista de rigor absoluto em sua obra plástica que sabia ao mesmo tempo desafiar a atmosfera espessa que pesa sobre o mundo da arte.
Numa de suas primeiras séries de desenhos, “Museu da Masturbação Infantil”, dos anos 1970, Tunga já indicava esse caminho dúbio.
É uma dualidade que também transparece em “Ão”, filme que rodou em preto e branco num túnel, nos anos 1980, contrastando luz e escuridão.
Suas tranças de chumbo com laços coloridos criadas na mesma década parecem ter sido o primeiro passo de um arco narrativo que atingiu seu auge nas obras mais recentes, em que peças de argila moldadas à mão se equilibram sobre hastes metálicas.
Tunga morreu num momento de transformação em sua obra. Desde o começo da década de 1980, quando representou o Brasil na Bienal de Veneza, e depois de quatro passagens pela Bienal de São Paulo e mostras no MoMA, em Nova York, na Whitechapel, em Londres, no Jeu de Paume, em Paris, entre outras instituições de peso, ele se firmou como o menos solar e mais soturno dos artistas do país.
O esqueleto que pendurou numa espécie de rede debaixo da pirâmide do Louvre, em Paris, coroava essa descida ao inferno. Seu boneco tétrico se equilibrava tendo como contrapeso outras bolsas cheias de caveiras, uma versão fossilizada de obras que fez ao longo da vida em que frágeis objetos surgem suspensos por redes esgarçadas.
“True Rouge”, de 1997, uma de suas obras mais famosas agora no Instituto Inhotim, é uma dessas peças içadas, com frascos e ampolas de vidro cheias de um líquido vermelho, como se fosse sangue.
Nos últimos anos, depois de cicatrizadas as feridas e tendo sobrado só os ossos, talvez um indício do que ele chamava de um “reencontro com o arcaico”, Tunga foi abrindo mais o traço de seus desenhos e ampliando sua paleta de cores para incluir também tons mais solares, talvez, como dizia, lembrando sua vida à beira do mar.
Sua morte coincide com um momento em que ele afirmava ver “mais mistério na luz do que no escuro, na morte”.
Morre aos 64 anos no Rio o artista plástico Tunga, Jornal Nacional
Morre aos 64 anos no Rio o artista plástico Tunga
Matéria originalmente exibida no Jornal Nacional em 6 de junho de 2016.
Com 22 anos, Tunga realizou a sua primeira exposição individual, no Rio. Artista que morreu e câncer era conhecido por ser inquieto e provocador.
Morreu nesta segunda-feira (6), aos 64 anos, o artista plástico Tunga, um dos brasileiros mais prestigiados no cenário internacional. Ele estava internado, no Rio, combatendo um câncer.
Ossos, tranças e tantos outros objetos unidos ganham força e poesia em um espaço no Museu de Inhotim, em Minas. As obras ocupam duas grandes galerias, onde a gente percebe a potência e a dimensão da arte de Tunga.
Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão, filho do jornalista e poeta Geraldo Mello Mourão, nasceu em 1952, em Pernambuco. Descobriu a escultura na infância.
“As primeiras esculturas foram meus primeiros gestos, do excremento ao alimento. Foi biscoito, mel, chupeta, leite, justamente um modo diferente de olhar o mundo”, disse o artista.
Mas foi no Rio que ele cresceu e se descobriu como artista. Em 1974, com 22 anos de idade, Tunga realizou a sua primeira exposição individual, no Museu de Arte Moderna.
Tunga era um artista inquieto, provocador. Transformava tudo em arte. Um verdadeiro bombardeio visual.
“A minha principal função é ser um poeta. Não há intenção de ser um especialista, porque a especialidade de um poeta, de um artista, é ser exatamente ser aquele sujeito que está à disposição de todos os especialistas”, destacou Tunga.
Fez esculturas, desenhos, performances e escreveu livros. A poesia, o jeito transgressor e a criatividade das obras de Tunga acabaram chamando atenção das galerias e expositores de várias partes do mundo. Foi o primeiro artista contemporâneo a ter uma obra exposta do Museu do Louvre, em Paris.
“Com certeza a obra dele já entrou para a história importante da arte brasileira e da arte internacional. Ele foi extremamente inovador no desenvolvimento de suas esculturas, utilizando sempre pessoas, o corpo fisicamente, numa espécie de alquimia e ciência, que isso acabava se transformando em objetos”, elogia a artista plástica Beatriz Milhazes.
“Ele é um dos maiores artistas contemporâneos brasileiros e é uma perda irreparável, um artista que tem uma obra que você não pode filiar ou aparentar com nenhuma outra. É uma obra muito própria, muito interessante, e é uma perda para a arte brasileira”, curador do MAM-RJ, Fernando Cocchiarale.