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abril 28, 2021

Ivan Serpa e o mundo: várias paisagens, múltiplas respostas por Marcus de Lontra Costa

Ivan Serpa e o mundo: várias paisagens, múltiplas respostas

Quadro nenhum está acabado,
disse certo pintor;
se pode sem fim continuá-lo,
primeiro, ao além do outro quadro

que, feito a partir de tal forma,
tem na tela, oculta, uma porta
que dá a um corredor
que leva a outra e a muitas outras.

Joao Cabral de Melo Neto, “A lição de pintura” (In: Museu de tudo, 1966/1974)

O mundo do pós-guerra era assim: construtivo, por exigência, e humanista por necessidade. Após o conflito, surgiu uma nova etapa na história da arte: aceitar métodos e ações de caráter racional, oriundos das metodologias dos processos de seriação industrial, e acrescentar a eles uma sensibilidade humanista, doses consideráveis de romantismo e de defesa de valores éticos. A partir de então, a obra de arte absorve influências externas, contaminando-se de vida e de verdade.

No Brasil, uma valente e talentosa geração surge no cenário artístico nacional, junto com iniciativas institucionais, como a criação dos Museus de Arte Moderna, de São Paulo e Rio de Janeiro, e da realização da Bienal Internacional de São Paulo. País jovem e de diversos matizes étnicos e culturais, ressurge, nos anos 1950, a ideia de se estabelecer projetos de identidade nacional, dessa vez mais embasados teoricamente e tendo como referencial algumas obras de arquitetura moderna, em especial o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, que desafia o autoritarismo formalista e valoriza aspectos regionais e simbólicos.

Entre diversos talentos, destaca-se, desde o início, o nome de Ivan Serpa, oriundo de uma classe média carioca urbana, herdeira direta dos valores culturais de intelectuais que valorizavam o serviço público e algumas propostas nacionalistas.

É exatamente essa busca de integração entre os movimentos internacionais e os aspectos específicos da realidade brasileira que faz surgir, entre nós, um movimento concretista peculiar e inusitado. Nele, a ideia utópica cede lugar a uma urgência, de fundo cinético e imediatista, entendendo os métodos construtivos como essência de um processo criativo, introduzindo cores e volumes inesperados e articulando um vocabulário poético, que valoriza aspectos de origem popular e de vocação libertária.

A arte de Ivan Serpa é assim: desde sempre, um grito de liberdade, uma busca de síntese, ímpar, arrojada e original, de construir uma estética comprometida com a vida e com o sentimento brasileiro. Por isso, ele jamais se preocupou com a construção de um estilo, determinado por forças externas, em coerência com o professor exemplar que era e que exigia de seus alunos um constante exercício de pesquisa e reflexão.

Alguns fatos, de origens diversas, foram essenciais para a formação artística de Ivan Serpa e moldaram a personalidade do artista. A sua sólida formação cultural, adquirida com uma tia francesa, que o integrou, desde cedo, ao mundo estético, e a sua saúde frágil, provocada por uma cardiopatia congênita, desenvolvem no artista um sentimento vital de urgência e a permanente percepção de que a sua sofisticação intelectual sempre haveria de conviver com a simplicidade de seu cotidiano e com a sua autêntica personalidade humanista. Homem de olhar e de pensamento universais, ele jamais abdicou de suas raízes brasileiras: carioca, morador do Méier, na padaria, no ônibus, rubro-negro e mangueirense, entre os seus livros, seus alunos, sua gente, Ivan Serpa, de maneira contundente, sintetiza, em sua personalidade, a essência poética de uma nova estética modernista e tropical, sensível, veloz, construindo paisagens nas quais a geometria é a ferramenta essencial, gesto primeiro, o espaço artístico entendido como elemento organizador do caos da percepção, a ordem, o método, o kósmos.

A década de 1950 marca um processo de reconstrução do mundo após a hecatombe da Segunda Guerra Mundial. Mas a humanidade tinha em mãos, então, uma nova tecnologia bélica, capaz de destruir todo o planeta, o que exigia um engajamento maior da arte em defesa de um movimento modernista que fosse capaz de dar ética e sentido às tecnologias, resultantes dos processos de pesquisa científica e industrial do período.

No Brasil, o jovem Ivan Serpa, desde suas aulas iniciais com o professor austríaco Axl Leskoschek, demonstrou interesse nos processos artesanais da criação artística e fez despertar nele a primazia da linha, do elemento gráfico, como estruturador da composição artística.

Essa busca pela simplicidade e pela clareza encontrou o seu rumo a partir do contato com Mário Pedrosa, que fez surgir no artista um interesse acentuado pelo concretismo, traduzido, aqui, por um vocabulário menos rígido, sem as imposições cromáticas de matriz europeia, e buscando paisagens horizontalizadas, linhas de cor de delicada poética cromática, muitas vezes tangenciando novos ritmos e musicalidades. É dessa época – mais precisamente, de 1953 – a formação do Grupo Frente, do qual participavam o próprio Ivan Serpa, Aluísio Carvão, Eric Baruch, Abraham Palatnik, Lygia Pape, Décio Vieira, Lygia Clark, Vincent Iberson, João José da Silva Costa, Carlos Val, Rubem Ludolf, César Oiticica, Hélio Oiticica, Elisa Martins da Silveira e Franz Weissmann.

Dentre os artistas da sua geração, talvez Ivan Serpa e Aluísio Carvão tenham sido as principais vozes românticas e líricas de uma geometria que se recusava a ser autoritária e impositiva. Essa visão, de caráter “antropofágico”, cria as bases de uma arte de circulação e de diálogo universais, porém com tonalidades e interpretações brasileiras, que refletem a peculiaridade das nossas raízes culturais. As pinturas de Serpa nesse período revelam uma paisagem construída por linhas e cores articuladas num discurso sensível e inteligente. Elas são, ao mesmo tempo, sofisticadas e populares, e parecem buscar, na rigidez do espaço pictórico, o movimento e o ritmo do vento na paisagem. “Deu o vento, eis o pó levantado: esses são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos.”1

Após um período de grande repercussão das suas obras, Serpa viaja para a Europa e trava contato direto com os grandes mestres da pintura. E percebe que lhe faltavam conhecimentos técnicos na arte de pintar. Mais uma vez a técnica e as práticas artesanais constituem o ponto-chave de suas inquietações, atitude compreensível por sua função de restaurador de obras raras da Biblioteca Nacional. “Quando termino um quadro, poderão dizer que é um mau quadro, mas dirão, ao mesmo tempo, que é um quadro bem realizado. O artesanato é para mim, hoje, algo consciente; convenci-me de que há um ponto em que ele é criação… Artesanato, portanto, é o sentido daquilo que é bem-feito; é, em última análise, percepção da forma”, explica o artista, em 1965, num texto para a exposição comemorativa do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, organizada por Clarival do Prado Valladares, no MAM-RJ.

Em seu retorno ao Brasil, Serpa se desilude dos movimentos relacionados com a abstração geométrica. Na Europa, percebeu que o caminho inexorável desses movimentos levaria a uma ortodoxia formal, à elaboração de conceitos e à ausência total da práxis artística, que a ele tanto agradava. Por isso buscou, inicialmente, uma síntese entre elementos reais e criatividade poética, produzindo obras que, em certa medida, estabeleciam contato com os movimentos da abstração informal; deles, porém, distanciando-se, porque partiam de elementos formais, que ele identificava nos livros antigos com os quais trabalhava na Biblioteca Nacional, como restaurador. Como sempre, o artista agindo como elo entre realidades e mundos aparentemente antagônicos e entendendo a arte como elemento primordial da essência humana. “O homem é uma corda estendida entre o animal e o Super-Homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar. O que é de grande valor no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um ocaso.”2

No Brasil, os sonhos costumam acordar pesadelos. A liberdade criativa e inovadora proposta por JK e a construção de uma capital moderna, em pleno planalto central brasileiro, reuniu uma geração de artistas repletos de coragem e ousadia. Mas o regime implantado a partir de 1964 destruiu alvoradas e direcionou o país para uma noite moralista, repressora e violenta. Ao mesmo tempo nascia o compromisso com a liberdade e com a necessidade de preparar uma nação para os desafios do futuro, para o enfrentamento com as estruturas oligárquicas implantadas, responsáveis pela desigualdade, pelos privilégios e pela exploração popular. “É um bicho que avoa feito um avião / é um pássaro malvado / tem o bico volteado que nem gavião / Carcará / pega mata e come.”3

No início dos anos 1960, as grandes redes de comunicação transformavam o mundo “numa grande aldeia global”. Surgiam imagens da fome e da miséria pelo mundo. O ideário modernista ruía diante de olhares incrédulos e diante das imagens de crianças esquálidas. No campo das artes visuais, no Brasil, nenhuma produção sintetizou esse momento, de maneira tão contundente, como a série de pinturas de Ivan Serpa, chamadas de Negras, mas que o artista preferia denominar, poeticamente, de Crepusculares. Essas obras, de forte apelo expressionista, reafirmam a liberdade criativa, que Serpa sempre defendeu, e revelam um artista com amplo domínio de seus meios de expressão. Em qualquer dimensão, essa série de pinturas e desenhos reflete o drama e o pavor de um mundo moderno, falido em suas promessas não realizadas, e acaba por se identificar com a questão conjuntural brasileira.

A industrialização ampliou desigualdades e transformou a violência e a morte em elementos do cotidiano. A utópica ideia de uma sociedade mais justa, através da democratização dos meios de produção, não resistiu a um sistema essencialmente injusto e dominado pelo capital. Mas a arte supera os dilemas temporais: uma verdadeira obra de arte revela novas realidades e amplia as descobertas. Da miséria existencial humana, passando pela decadência de uma utopia não concretizada, até o prenúncio de anos de chumbo na vida brasileira, a arte será sempre o oráculo, a bússola, o espelho. Esse é, sem dúvida nenhuma, o caso dessas pinturas Crepuscularesde Serpa, que se afirmam substantivamente no cenário das imagens expressionistas brasileiras, apenas comparáveis às gravuras fantasmagóricas de Goeldi, às pinturas dramáticas de Iberê Camargo e à série de desenhos de Flávio de Carvalho, registrando a morte de sua própria mãe.

Mais uma vez Ivan Serpa surpreende por sua extrema sensibilidade, pelo seu permanente compromisso com a liberdade que alimenta a verdadeira criação artística. Enquanto críticos e teóricos cobravam do artista uma coerência estética, veiculando-a a uma determinada escola artística, Serpa respondia com a ousadia e o desprendimento característico dos verdadeiros criadores. Entre tantos ensinamentos, a lição que Serpa nos lega são essa ânsia e esse compromisso permanente com a liberdade e a ousadia que fazem da aventura humana algo sublime e transformador. Por isso, hoje e sempre, é preciso manter contato com a produção desse artista exemplar que converte formas e cores em um caleidoscópio mágico, múltiplo e íntegro, de linguagem expressiva. A cada olhar, a cada movimento, a cada instante a arte encanta, revela-nos novas equações poéticas, novas maneiras de interpretar e transformar o real visível.

Os movimentos da pop art reverberaram intensamente por todo o mundo, valorizando as chamadas vanguardas negativas, como o surrealismo e o dadaísmo. No Brasil, eles adquirem um caráter político mais intenso, e uma nova geração de artistas surge no cenário da arte com imagens contundentes, repletas de violência e sensualidade. Serpa, homem de seu tempo, capta esse novo cenário e dele se apropria à sua maneira.

Artista com pleno domínio de sua linguagem, na sua obra, o drama existencial da fase Negra cede lugar a uma sensualidade tensa, na qual o corpo feminino é o abrigo de uma alma barroca, repleta de curvas, dobras, movimentos circulares, que encontram origem em trabalhos realizados anos antes, quando o artista, restaurador de obras raras em papel, observava atentamente a ação dos anóbios (térmitas, cupins) e suas trajetórias microscópicas, delicadas filigranas, pequenos labirintos recriados pelo artista.

As estratégias da pop art atuam no artista como afirmação da liberdade e como instrumento essencial da criação artística, mas foi através de certos processos, oriundos da op art, que Serpa reencontra, ainda na década de 1960, a imposição da ordem, do ritmo, da modulação e da gráfica que marcam a estética da arte geométrica. Assim, as Arcas construídas pelo artista adquirem um caráter simbólico, como se o artista estivesse, com elas, abrindo os seus arquivos mentais, os seus processos construtivos, a sua essência, na busca de refazer o mundo, através da ordem e da simetria.

Depois de tantas imagens, tantos trabalhos, tantas paisagens e tantos mundos que o artista criou em apenas duas décadas, Serpa retorna parabolicamente ao seu princípio, à sua essência. Mas não se trata, em momento algum, de reencontro com princípios racionais rígidos que acabaram por transformar a arte numa cidadela elitista e distanciada do mundo e dos homens, representações amarguradas de um tempo que não volta mais, de uma modernidade já devidamente direcionada para a história.

A geometria, em Ivan Serpa, é ferramenta para organizar a paisagem, arar e fazer germinar o terreno da arte, entendendo-a como ação essencial da espécie humana: criar, inventar e transformar. A paisagem do mundo que surge dessa poética geométrica do artista é tropical, repleta de rosas, de verdes e marrons amazônicos, de artesanato e de cultura popular, sentimentos genuínos: fala Mangueira! “Mangueira teu cenário é uma beleza / que a natureza criou!”4 E assim são as telas do artista, sem nenhum apelo saudosista. Ao contrário, em seu comprometimento com o sentimento e a estética popular, o artista cria um novo significado para a ação construtiva, dando-lhe direcionamento prospectivo, quase premonitório.

Ao falecer, no início da década de 1970, um mundo novo começa a surgir; a ciência e a indústria da comunicação apresentam novos e instigantes desafios para a arte contemporânea.

Hoje, quase meio século depois da morte do artista, o mundo se transformou. A materialidade da arte é, hoje, transmutada, podendo ser agora high tech, digital e mesmo virtual. A própria figura do artista como criador é posta em questão. Estratégias como sample e remix concebem colagens ou ambientes manipuláveis e experiências estéticas multissensoriais. Essas novas tecnologias trouxeram designers, videomakers, matemáticos, cientistas da computação e diversos outros profissionais para o universo da arte. Nas grandes exposições e nas feiras de arte, a fotografia e o vídeo são consumidos por um número cada vez mais expressivo de pessoas, criando, assim, um mercado em expansão, que comercializa inclusive imagens virtuais através do universo cibernético. Hélio Oiticica proclamava “que o museu é o mundo”, questionando os limites físicos das instituições “protetoras” da arte. O que ele pensaria hoje desses mundos infinitos que cabem em nossos tablets ou celulares? O que ele pensaria do nível de interação num portal de notícias ou quando acessamos acervos de vídeos on-line? Nesse universo desafiador, a arte contemporânea necessita de novas ferramentas de ação, para que o ser humano possa ser sujeito dessas novas formas de comunicação e não apenas repassador de detritos digitais.

Trajetórias corajosas como as de Ivan Serpa acentuam a importância da ação artística como instrumento que define identidades culturais comuns, mas, também, como agente de pesquisa, questionamento e subversão. O fenômeno artístico interfere nos mecanismos da tecnologia, levando-os ao limite e direcionando-os para novas vertentes. Ivan Serpa respondia com ousadia e liberdade. Nas várias paisagens que percorreu – geométricas, informais, figurativas –, em várias técnicas e vários suportes, há uma inteligência natural do artista que entende a arte como instância, como agente essencial em qualquer processo humano, em qualquer campo da atividade criativa que necessita de pesquisa e de poesia para permitir que o homem seja sempre o sujeito de suas próprias construções.

A arte é assim: bela para muitos, perigosa para alguns... No mundo contemporâneo, é preciso sempre estar atento e forte e se alimentar de saberes oriundos do passado recente para que possamos enfrentar os dilemas e desafios propostos. Apenas a instância artística, que embasa e justifica a vida de Ivan Serpa, garante a ação criativa e semântica do homem contemporâneo, impedindo que as grandes redes, algumas comprometidas com outras instâncias, façam de cada usuário um títere, uma figura incapaz de descobrir e escapar de jogos de significados de uma trama virtual e global. Por isso o desafio maior da arte contemporânea é o enfrentamento: exemplos como o de Ivan Serpa nos dão a régua e o compasso e nos ensinam a superar e vencer os dragões da maldade.

Marcus de Lontra Costa
São Paulo, janeiro de 2020
Ivan Serpa - A expressão do concreto

1 Padre Antonio Vieira, “Sermão da quarta-feira de cinzas”.
2 Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra.
3 João do Vale e José Cândido, “Carcará”.
4 Enéas Brites da Silva e Aloísio A. da Costa, “Exaltação à Mangueira”.

Posted by Patricia Canetti at 12:42 PM

abril 27, 2021

O tempo é agora, tempo de espera por Laura Belém

O tempo é agora, tempo de espera

LAURA BELÉM

O que o passado, o presente e o futuro compartilham é um substrato, uma base de atemporalidade. A linguagem da arte pictórica, por ser estática, é a linguagem dessa atemporalidade. Mas o que ela aborda – ao contrário da geometria – é o sensual, o particular e o efêmero. [1]
John Berger
O trabalho de arte deve possibilitar o contato com o desconhecido e consigo mesmo, com nossas próprias questões e com a imaginação. [2]
Cao Guimarães

Na praça onde moro, bandos de maritacas cantam em algazarra, celebrando o início e o fim de cada dia. O céu de outono vai aos poucos revelando um azul mais profundo que o do verão, apesar do calor que paira no ar, turvando-o, e dos rumores da chuva que ainda não caiu. A cidade é menos ruidosa que São Paulo, e ao escalar a Serra do Curral, a 1.300 metros de altitude do nível do mar, ouvem-se menos ruídos ainda, o que dá a impressão de que o tempo está em suspensão.

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Desde o começo dos anos 2000, venho trabalhando com uma série de linguagens, incluindo a instalação, a escultura, o desenho, a colagem, a fotografia, o som e o vídeo. Os materiais e técnicas variam de acordo com a intenção e o conceito de cada projeto. Minha prática é guiada pela observação, experimentação, e diálogo com entorno, o que com frequência leva a trabalhos que podemos chamar de ‘context responsive’. O trabalho nasce dessa mescla do mundo exterior com o mundo interior – sentimentos, sensações, e uma ponte entre o visível e o invisível. Por outro lado, intenciono sensibilizar um aumento da consciência do que está ao nosso redor, da forma como nos relacionamos com o mundo, e da minha própria consciência.

Comecei com uma pequena colina, um pouco acima e ao norte de um campo onde eu estava juntando palha. Nesta colina havia três pereiras negligenciadas, duas plenamente verdes e uma acinzentada, sem folhas e morta.

Atrás delas, o céu azul com grandes nuvens brancas.
Esse pequeno canto da paisagem – que até então eu nunca tinha reparado – me chamou a atenção e me encantou. Encantou-me como um rosto que vemos passando por nós na rua, desconhecido, e até mesmo esquecível, mas por algum motivo encantador, ao sugerir uma vida que está sendo vivida. [3]
John Berger

Os trabalhos reunidos nesta exposição foram produzidos entre 2017 e 2020, e o seu suporte é o papel. Há também um vídeo que traz uma folha de papel sendo perfurada por um incenso. Todos eles dialogam com a natureza, o tempo, a transiência, e um espaço entre as coisas. A natureza não é uma temática em si em minha poética, mas uma ponte com o mundo, e por isso considero que os trabalhos são criados a partir da natureza, em diálogo com ela, e não sobre ela.

Qual o lugar essas obras ocupam na minha criação? A fotografia, o desenho, a colagem, a monotipia, e mesmo o vídeo em questão, são como notas silenciosas num papel. Esses trabalhos não são da esfera do espetáculo, não revelam tudo, mas sugerem histórias e relações com o mundo. São motivados por algo que me atravessou, por uma impressão que ficou no canto do olhar, ou por sentimentos que pedem para ser revisitados.

Colhi uma folha de todas as espécies diferentes nesse pequeno jardim e as montei na superfície de um papel.
Uma infinidade de formas se tornou visível em ‘formas do jardim’. [4]
Herman de Vries

A superfície do papel e o frame do vídeo são muito diferentes do espaço real e tridimensional. Compor nesses planos é sempre uma incógnita, um pouco como um exercício experimental. O movimento presente em algumas composições (ainda que sejam estáticas) quase sempre começa fora do atelier, com caminhadas que colocam o corpo e o olhar em movimento e instigam a percepção do espaço, a coleta de elementos, e a criação de novas narrativas. Não é um exercício de representação, mas de deslocamento e de relação com as coisas. Esses trabalhos não partem de um roteiro prévio, e por isso mesmo são potencializados pelo acaso.

Vivências com a dança contemporânea, com a improvisação do movimento e jam sessions com bailarinos, músicos e outros artistas durante os anos 1990 criaram impressões que até hoje influenciam não apenas a minha percepção espacial, mas também o meu olhar e processo de criação - a experimentação e a improvisação são desde então solos férteis em minha poética.

Em meu trabalho, me preocupo em não repetir algo já feito. Minhas declarações são sempre anti- estilísticas. A repetição forçada de um estilo leva à destruição da arte. [5]
Jannis Kounellis

O tempo é agora não descarta a memória do passado, presente em nosso âmago e na formação da sociedade, e nem tão pouco o sonho por um futuro melhor. Mas afirma a potência do instante, do momento, e lembra o pulso e a efemeridade da vida. Tempo de espera indica a importância da pausa. A pausa que guarda outra dimensão temporal e é necessária para se adentrar o silêncio do desenho, da linha que dança, da textura monocromática, do rastro negro, da luz que penetra, da forma informe que dialoga com o ponto, e do conjunto que gera outro movimento.

Tudo se transformava. As três pereiras, a colina, o outro lado do vale, os campos de colheita, as florestas. As montanhas ficavam mais altas, cada árvore e os campos, mais próximos.

Tudo o que era visível se aproximava de mim. Melhor, tudo se aproximava do lugar onde eu havia estado, pois eu já não estava mais ali. [6]
John Berger

De fato, Steve Paxton e Nancy Smith se preocuparam com a sinergia do movimento ao criarem a modalidade de dança. Eles promoveram um aumento da consciência da energia ki ou chi entre os bailarinos, pois essa seria a base para que os corpos se movimentassem com leveza entre si e não se machucassem ao se chocar. Eles consideraram o momentum, a dimensão da presença e a consciência do movimento, o toque e a improvisação, como vias alternativas à normalização e como caminhos para o auto-conhecimento.

As reflexões sobre o tempo, a natureza, o movimento e a existência sempre me acompanharam e estiveram presentes em meus trabalhos. E ainda que os trabalhos aqui reunidos derivem dessa fonte de inspiração comum, isso não ocorre de uma forma racional ou deliberada. Cada um deles é motivado por situações distintas, e o que eles comungam é uma relação entre o campo estrutural e o sensível. Não cabe explicá-los individualmente, pois isso poderia encerrá-los num só ponto de vista, roubando-lhes o seu frescor e mistério. Além disso, acredito que o trabalho de arte não carece de justificativas. O que talvez caiba é passear por alguns de seus elementos.

A arte não é definível. Toda definição sobre ela é uma limitação. mas, para mim, tem a ver com a formulação da consciência ou com o processo de me tornar consciente. [7]
Herman de Vries

As cascas douradas que naturalmente se desprendem do tronco da árvore ‘sete-casacas’ são finas como um pergaminho e motivam composições com confetes verdes e pretos no trabalho “Transmutação” (2018). Nessas colagens, as cascas foram rasgadas à mão, pele a pele. Os confetes flutuam ou dançam em contrapeso com cada uma das formas marrom-douradas, encontrando apoios em seus corpos, como na dança do contato-improvisação.

Nos desenhos da série “Sopro” (2018), essa dança sugere um espaço mais caótico, instável, ou em desconstrução. A fuligem da cidade, a casca de bambu que repousava no chão do parque. O elementos se entrecruzam, deixam rastro, se chocam e se esvaem. Uma paisagem em sobressalto, um corpo em moção, lanças, montanhas e cumes que perderam a sua estabilidade.

Andar por aí e ao acaso encontrar uma casca de palmeira que se soltou; ela agora ganha outro sopro de vida ao cruzar a superfície de água verde-azulada na fotografia “Travessia” (2020). As folhas amarelas da cerejeira almejam o fluxo de ar na vidraça e comunicam o dentro e o fora em “Catavento” (2020) – um samurai em ataque, a asa da borboleta que encontramos no caminho, um deus que dança, um anjo exterminador, sua saliva, um jogo. Espaços de passagem e de transição, a potência do banal, do ordinário e do divino nas coisas.

Antes de serem cortados, os fícus centenários sempre me abraçavam quando eu passava por ali. A luz do sol lhes ativava um verde brilhante. O que restou foram troncos decapitados e que não voltaram a brotar. Essa cena dolorosa, a impotência diante desse ato brutal e a tentativa de uma cura simbólica motivaram a série “Reconstrução” (2017). Sobre imagens P & B impressas, compus com as pedras e cristais, e então fotografei novamente. A foto da foto: o procedimento é analógico e se aproxima ao da colagem dadá e surrealista. Cada pedra guarda a sua tridimensionalidade na imagem final impressa, o que me conduz a um pensamento sobre a escultura. Visito Kassel em 2002 com um antigo amor: conversamos em torno dos 7.000 carvalhos do Beuys, que ele ajudou a plantar, e dos basaltos que acompanham cada uma das árvores. Na avenida em Belo Horizonte, curiosamente uma pedra também se assenta ao lado de cada árvore.

Voa a folha áspera do Cerrado e, coberta por minério de ferro preto, deixa o seu rastro no papel Sumie amarelado. O peso do minério de ferro contrapõe-se à leveza do papel e nele imprime uma marca. As formas de papel carbono, amassadas e rasgadas à mão, pontuam essa escritura. “Entreato” (2020), como o título indica, sugere um intervalo, estado de suspensão, ou matéria que se desvanece e que se transforma.

A mesma sinergia que existe entre os corpos que dançam pode existir entre as três mãos do vídeo “Entre as estrelas e seus olhos” (2018). A folha do papel agora flutua contra o firmamento azul. O dia se veste de noite, o fogo queima o papel, tudo o que nos separa e nos aproxima das estrelas, a folha cai como um véu.

As citações neste texto ressoam com o meu pensamento e poética; são como duetos numa existência efêmera. As referências vêm do mundo real, do som do trovão, do canto dos pássaros que por hora cessou, da poeira do minério, do farfalhar das folhas, do apito das cigarras e do barulho dos carros, da incerteza das coisas, da impressão que ficou de uma notícia de jornal, de uma anedota, da imaginação, do sonho, da dança silenciosa, e de tudo o que eu não sei.

Laura Belém

Citações
1. Once in a painting. In: BERGER, John. And our faces, my heart, brief as photos. New York: Pantheon Books, 1984. P. 28.
2. Cao Guimarães, em vídeo-conferência realizada em agosto de 2020.
3. Once in a lifetime. In: BERGER, John. And our faces, my heart, brief as photos. New York: Pantheon Books, 1984. P. 29.
4. Herman de vries, ‘the world we live in is a revelation’. In: Documents of Contemporary Art: Nature. London: Whitechapel
Gallery, Massachusetts: The MIT Press, 2012. P. 163.
5. Depoimento de Jannis Kounellis, visto em a sua exposição individual na Fondazione Prada, em Veneza, em junho de 2019.
6. Once in a lifetime. In: BERGER, John. And our faces, my heart, brief as photos. New York: Pantheon Books, 1984. P. 29.
7. Herman de Vries, ‘the world we live in is a revelation’. In: Documents of Contemporary Art: Nature. London: Whitechapel
Gallery, Massachusetts: The MIT Press, 2012. P. 164.


Time is now, time of waiting

LAURA BELÉM

What the past, the present and the future share is a substratum, a ground of timelessness. The language of pictorial art, because it is static, is the language of such timelessness. Yet what it speaks about – unlike geometry – is the sensuous, the particular, and the ephemeral. [1]
John Berger
The work of art should allow contact with the unknown and with oneself, with our own questions and with the imagination. [2]
Cao Guimarães

In the square in front of my home, flocks of scaly-headed parrots sing lustily, celebrating the beginning and end of each day. The autumn sky slowly reveals a deeper blue than that of summer, despite the heat that hangs in the air and turns it hazy, and the rumors of rain yet to fall. The city is quieter than Sao Paulo, and when climbing the Serra do Curral hills, 1,300 meters above sea level, even less noise can be heard, giving the impression of time suspended.

Since the early 2000s, I have been working in a variety of media, including installation, sculpture, drawing, collage, photography, sound and video. The materials and techniques vary in accordance with the aim and concept of each project. My practice is guided by observation, experimentation, and dialogue with the surroundings, which often lead to works we might call ‘context responsive’. The work is born from this mixture of the outside and the inside world – feelings, sensations, and a bridge between the visible and the invisible. At the same time, I seek to raise awareness of what is around us, of the way we relate to the world, and of my own conscience.

I started with a small hillock, a little above and to the north of a field where I was raking hay. On this hillock were three neglected pear trees, two in full leaf and one with its grey wood, leafless and dead.
Behind them, the blue sky with large white clouds.
This small corner of the landscape – which I had never particularly noticed before – caught my eye and pleased me. Pleased me like a particular face one may see passing in the street, unknown, even unremarkable, but for some reason pleasing because of what it suggests of a life being lived.[3]
John Berger

The works gathered in this exhibition were created between 2017 and 2020, using the medium of paper. The show also includes a video that features a sheet of paper pierced by an incense stick. They all dialogue with nature, time, transience, and a space in between things. Nature is not a theme in itself in my poetics, but a bridge with the world, which is why I consider the works to be created from nature, in dialogue with it, and not about it.

What place do these works occupy within my creative practice? Photography, drawing, collage, monotype, and even the video in question, are like silent notes on paper. These works do not come from the realm of the spectacle, they do not reveal everything, but suggest stories and relationships with the world. They are motivated by something that passed through me, an impression that lingered in the corner of the eye, or by feelings that ask to be revisited.

I collected from all the dierent species in this little garden one leaf and mounted them on the surface of paper. A multitude of forms became visible in ‘forms from the garden’.[4]
Herman de Vries

The surface of the paper and the frame of the video are very dierent from the real and three-dimensional space. Composing in a flat space is always an unknown process, a little like an experimental exercise. The movement present in some compositions (despite being static) almost always begins outside the studio, with walks that place the body and the gaze in motion and instigate the perception of space, the collection of elements, and the creation of new narratives. It is not an exercise in representation, but in displacement and in relation to things. These works do not start from a preconceived script, and for that very reason they are given power by chance.

Experiences with contemporary dance, with the improvisation of movement and jam sessions with dancers, musicians and other artists in the 1990s, created impressions that even today influence not only my spatial perception, but also my gaze and creative process – experimentation and improvisation have been fertile grounds in my poetics ever since.

In my work, I am concerned about not repeating something already done. My statements are always anti-stylistic.The forced repetition of a style leads to the destruction of art.[5]
Jannis Kounellis

Time is now does not reject the memory of the past, present at our core and in the formation of our society, and not even the dream of a better future. But it arms the power of the instant, of the moment, and recalls the pulse and ephemerality of life. Time of waiting indicates the importance of the pause. The pause that contains anothertemporal dimension and is essential for entering the silence of the drawing, of the dancing line, of the monochromatic texture, of the black trace, of the light that penetrates, of the shape that dialogues with the point, and of the set of works that generate another movement.

Everything was shifting. The three pear trees, their hillock, the other side of the valley, the harvest fields, the forests. The mountains were higher, every tree and fields nearer.
Everything visible approached me. Rather, everything approached the place I had been, for I was no longer in that place.[6]
John Berger

Indeed, Steve Paxton and Nancy Smith were interested in the synergy of movement when they created the modality of dance. They encouraged a greater awareness of ki or chi energy among the dancers, which would become the basis through which their bodies moved easily amongst each other, and how injury was avoided upon impact. They considered momentum, the dimension of presence and awareness of movement, touch and improvisation, as alternatives to standardization and as paths to self-knowledge.

Reflections on time, nature, movement and existence have always followed me and been present in my work. And while the works gathered here emerge from this common source of inspiration, this process does not occur in a rational or deliberate manner. Each one of them is motivated by dierent situations, and what they share is a relationship between the structural field and that of the senses. Explaining them individually could reduce them to a single point of view, robbing them of their freshness and mystery. In addition, I believe that artworks require no such justification. One possible approach is to take a journey through some of their elements.

Art is not definable. every definition of it is a limitation. But for me it has to do with the formulation of consciousness or with the process of becoming conscious. [7]
Herman de Vries

The golden bark that naturally works itself loose from the trunk of the 'sete-casacas', or “seven coats”, tree is as thin as parchment and is the motivation behind the compositions with green and black confetti in “Transmutation” (2018). In these collages, the bark was torn by hand, skin by skin. Confetti floats or dances in balance with each of the golden-brown shapes, finding shelves in their bodies, as in contact-improvisation dance.

In the drawings of the series “Breath” (2018), this dance suggests a more chaotic, unstable, or deconstructed space. The grime of the city, the bamboo bark that lies on the ground in the park. The elements intertwine, leave a trail, collide and fade away. A landscape in turmoil, a body in motion, lances, mountains and ridges that have become unstable.

Walk around, by chance you’ll come across a palm bark that has come loose; now it gains a fresh breath of life as it crosses the blue-green surface of the water in the photograph “Crossing” (2020). The yellow leaves of the cherry tree seek the flow of air through the window and communicate with both indoors and outdoors in “Wind Vane” (2020) - a samurai on the attack, the wing of the butterfly that we come across on our way, a dancing god, an exterminating angel, your saliva, a game. Spaces of passage and transition, the power of the banal, the ordinary and the divine in everyday things.

Before being cut down, the 100-year-old Ficus trees always embraced me as I walked beneath them. The sunlight turned them a brilliant green. Left behind are decapitated trunks that never grew again. This painful scene, the impotence when faced with this act of brutality and an attempt at a symbolic cure motivated the series “Reconstruction” (2017). I composed these with stones and crystals upon printed black and white images, and photographed them again. A photo of the photo: the procedure is analogue and comes close to that of a Dadaist or Surrealist collage. Each stone retains its three-dimensionality in the final printed image, which leads me to thoughts of sculpture. I visit Kassel in 2002 with an old lover: we talk amidst Beuys’s 7,000 Oaks, which he helped to plant, and around the basalts that accompany each tree. On the avenue in Belo Horizonte, curiously, a stone also sits next to each tree.

The rough Cerrado leaf flies and, covered with black iron ore, leaves its trail on the yellow Sumi-e paper. The weight of the iron ore contrasts with the lightness of the paper and prints a mark upon it. The shapes made from carbon paper, crumpled and torn by hand, punctuate this writing. “Entr'acte” (2020), as the title indicates, suggests an interval, state of suspension, or matter that fades and is transformed.The same synergy that exists between the dancing bodies can exist between the three hands in the video “Between The Stars and Your Eyes” (2018). The leaf of paper now floats against the blue sky. Day is dressed as night, fire burns the paper, everything that separates us and brings us closer to the stars, the leaf falls like a veil.

The quotes in this text resonate with my thoughts and poetics; they are like duets in an ephemeral existence. The references come from the real world, from the sound of thunder, from the singing of birds that for now has ceased, from the dust from the ore, the rustle of leaves, the whistle of cicadas and the noise of cars, the uncertainty of things, the impression that remains from a news story, an anecdote, the imagination, a dream, a silent dance, and everything I do not know.

Laura Belém

Quotes
1. Once in a painting. In: BERGER, John. And our faces, my heart, brief as photos. New York: Pantheon Books, 1984. P. 28.
2. Cao Guimarães, in a video-conference in August 2020.
3. Once in a lifetime. In: BERGER, John. And our faces, my heart, brief as photos. New York: Pantheon Books, 1984. P. 29.
4. Herman de vries, ‘the world we live in is a revelation’. In: Documents of Contemporary Art: Nature. London: Whitechapel
Gallery, Massachusetts: The MIT Press, 2012. P. 163.
5. Statement by Jannis Kounellis, seen in his solo exhibition at the Fondazione Prada, in Venice, in June 2019.
6. Once in a lifetime. In: BERGER, John. And our faces, my heart, brief as photos. New York: Pantheon Books, 1984. P. 29.
7. Herman de vries, ‘the world we live in is a revelation’. In: Documents of Contemporary Art: Nature. London: Whitechapel
Gallery, Massachusetts: The MIT Press, 2012. P. 164.

Posted by Patricia Canetti at 1:05 PM

abril 21, 2021

Descompasso Atlântico, de Negro Oceano por Paulo Miyada

Descompasso Atlântico

A Gentil Carioca tem o prazer de apresentar a segunda individual de Arjan Martins na galeria. Descompasso Atlântico reitera a navegação do artista por uma história de resistências e refluxos simbólicos, políticos, culturais e existenciais dos negros de ascendência africana transplantados pela escravidão colonial. Martins se interessa pela representação dos rostos dissolvidos, quase líquidos. Como lavados pelas águas do Atlântico, que se tornou por mais de três séculos e meio um grande cemitério de pessoas escravizadas. O trânsito por essas águas negras, perpassa histórias das mais íntimas até a ressignificação cultural macro dessa transposição. São retratos que se completam apenas com a presença e a imaginação do espectador. Não por acaso, 22 de abril, a data de lançamento da exposição, é a mesma data da chegada dos colonizadores por essas terras.

Fruto de pinceladas ágeis, largas e movimentadas, as obras se impõem como uma reflexão sobre identidade e representação. Segundo Paulo Miyada [1] "O artista coaduna o que pode ser lido como um retrato multitemporal e pluri geográfico da negritude enquanto memória, presença, luta e imaginação – tendo o Brasil e, mais especificamente, o Rio de Janeiro como endereço, de onde se olha para o oceano Atlântico e para todos os continentes por ele banhado".

Nas obras desta exposição, Martins retoma o uso dos espaços vazios no interior da pintura, abundantes em suas obras de referência cartográfica. Esses espaços emergem da textura e da coloração da tela, que "fazem papel de mais uma cor entre as outras aplicadas pelo artista, sendo o mais explícito sinal da incompletude como fator ativo no seu pintar."

Um peculiar cruzamento entre figuração e incorporalidade, em jogo a sua produção, aparece na representação dos rostos dissolvidos, quase líquidos. Este oceano só se completa com a presença e a imaginação do espectador. Dessa forma, "não é possível dizer se choram ou sorriem, mas se intui que habitam o cotidiano, caminham, trabalham, estudam, lembram e sonham. Na construção destas figuras, brasileiros, norte-americanos ou europeus, são igualmente filhos da diáspora, e o modo como o artista os representa aponta para esse vínculo, enquanto reconhece que suas existências vão além da tarefa de se lembrar do trauma da violência colonial."

Assim, Arjan Martins perpassa campos semânticos diversos e deixa equações simbólicas em suspensão para serem interpretadas e reinterpretadas. Miyada atesta, "há uma sabedoria implícita em seu trabalho cujo projeto poético prevê a ampla navegação das águas do oceano negro, seja transitando entre períodos históricos, seja viajando entre diferentes latitudes e longitudes banhadas pelo tráfico escravagista."

1 - Parte de trechos extraídos do texto Negro Oceano de Paulo Miyada escrito para o livro Arjan Martins da editora Cobogó


A Gentil Carioca is pleased to present Arjan Martins' second solo show at the gallery. Descompasso Atlântico, reiterate the artist's navigation through a history of symbolic, political, cultural and existential resistance and reflux of blacks of African descent transplanted by colonial slavery. Martins is interested in the representation of dissolved, almost liquid faces. As cleaned by the waters of the Atlantic, which became for more than three and a half centuries a great cemetery for enslaved people. The transit of these black waters goes through stories from the most intimate to the macro cultural significance of this transposition. These are portraits that are completed only with the presence and imagination of the spectator. Not by chance, April 22nd, the exhibition's launch date, is the same date of the colonizers' arrival in these lands.

Issue of agile, wide and busy brushstrokes, the works impose themselves as a reflection on identity and representation. According to Paulo Miyada [1] "The artist joins together what may be read as a multi- temporal and multi-geographical portrait of blackness as memory, presence, struggle and imagination – located in Brazil and, more specifically, in Rio de Janeiro, whence one gazes at the Atlantic ocean and at all the continents bathed by it.”

In the works exhibited in the show, Martins goes on making use of empty spaces inside the painting, which are abundant in his cartography referenced works. These spaces emerge from the texture and coloring of the canvas, “which are ;occasionally playing the part of one color among others applied by the artist – the most explicit sign of incompleteness as an active factor in his painting.”

A peculiar intersection between figuration and intangible, implicated in his production, appears in the representation of dissolved, almost liquid faces. This ocean is only completed in the viewer's presence and imagination. In such a way, "It is impossible to say whether they cry or smile, but one intuits the fact that they inhabit everyday life; they walk, they work, they study, they remember, and they dream. Whether Brazilian, North American or European, they are all children of the diaspora, and the way that Arjan Martins represents them points to this connection even as it recognizes that their existence goes beyond the task of remembering the trauma of colonial violence."

Thus, Arjan Martins crosses through different semantic fields and leaves us with symbolic equations in suspension to be interpreted and reinterpreted. Miyada attests,"This also intensifies the wisdom implicit in the work of Arjan Martins, whose poetic project envisions the unrestricted navigation of the waters of the black ocean, whether traveling between historical periods or journeying between different latitudes and longitudes bathed by slave traffic."

1 - Excerpts from Negro Oceano by Paulo Miyada, written for the book Arjan Martins published by Cobogó.

Posted by Patricia Canetti at 10:44 AM

abril 4, 2021

Flávio Cerqueira, um escultor de significados por Lilia Moritz Schwarcz

Flávio Cerqueira, um escultor de significados

LILIA MORITZ SCHWARCZ

Introdução: O mármore e a murta ou como moldar e tornar sólido

O jesuíta Antônio Vieira (1608–1697), que chegou no Brasil em 1614, dedicou sua vida à tarefa de catequizar os gentios desta nova terra: uma América portuguesa. Num momento em que a Igreja passava por dificuldades na Europa, expandir a fé cristã entre os indígenas do Novo Mundo, e assim revitalizar o catolicismo, era um dos objetivos desse religioso, que estabeleceu contato direto com as populações nativas do Brasil. Padre Vieira converteu-se, aos poucos, num combatente da exploração e da escravização dos indígenas, e passou, ademais, a duvidar da obra do colonizador europeu. Por isso, no “Fragmento do Sermão do Espírito Santo” (1657), em vez de louvar o sucesso da colonização, o jesuíta reconhece o oposto: como era árdua e difícil a tarefa de “trazer a verdadeira fé” para esses dispersos Brasis. 1

Há uma passagem especialmente significativa desse sermão, em que o religioso dedica-se a descrever as dissemelhanças existentes entre dois materiais – o mármore e a murta. A partir deles, estabelece, então, paralelos entre o convívio e o choque de duas culturas distintas: a dos colonos e aquela dos indígenas. O sermão inicia-se com Vieira fazendo uma diferenciação entre cristãos-novos e cristãos-velhos. Na sequência, explora outro regime de diferenças: entre a fé sólida e inquebrantável dos europeus e a pretensa pacificidade e maleabilidade dos povos nativos do Brasil. Evangelizar os pagãos na Europa era tarefa árdua, dolorosa e custosa; no entanto, o resultado desse trabalho ficava para sempre, duro e rijo como o mármore branco. Já catequizar as “gentes desses Brasis” era trabalho em tudo distinto. Era como domar uma murta, um arbusto de porte médio e maleável, que aceitava logo a poda, tomava imediatamente a forma que se queria, mas, ao primeiro descuido, voltava ao desenho original.

Essa era e ainda é uma imagem forte para pensar e definir os povos ameríndios, que pareciam fáceis de catequizar, mas que logo voltavam ao seu então chamado “estado original e primitivo”. O certo é que índios tupinambás resistiam à aprendizagem promovida pelos jesuítas e ao recrutamento que os ‘karaibas” lhes impunham, dando um sentido particular à nova fé – “traduzindo” o que lhes fora ensinado para seus próprios termos. Essa era, na feliz expressão de Arcadio Dias-Quinones, uma forma de “brega”: 2 diante da vantagem militar dos colonos, o importante era negociar o possível e não abrir mão do que era, de fato, inegociável. Por isso, e como mostra o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a inconstância dos índios “obrigava” os religiosos a promover uma constante reevangelização. Sendo assim, a inconstância se converteu no que havia de mais constante no relacionamento com essas populações. 3

Mas há outras comparações a estabelecer. Estátuas de mármore são feitas de um material caro, por suposto eterno, e, não por coincidência, foram particularmente utilizadas para exaltar a memória de grandes estadistas e nobres, em geral homens, ou membros da Igreja e do Papado. Difíceis de esculpir, as obras viravam eternas na forma que finalmente recebiam. Já com a murta tudo parecia funcionar ao revés – ela era facilmente moldável, mas seu aspecto durava pouco; logo voltava à forma inicial.

A contraposição virou uma metáfora fácil para se pensar na empresa da colonização. De um lado, a suposta superioridade do europeu representada pelo mármore; um material entendido como nobre, digno e perene, como deveria ser a civilização ocidental. De outro, a insubmissão dos povos nativos que, apesar de muitas vezes não se oporem diretamente à colonização, também não se conformavam passivamente diante da anulação de seus conhecimentos, suas filosofias e sua fé: mostravam na prática que não eram homens de murta. Por isso, adaptavam-se como e sempre que podiam. Nesse caso, “adaptar” significava reagir e se rebelar, ou não adotar cegamente a fé alheia – o que já indica como não houve nada de pacífico e tranquilo no contato entre o europeu e o gentio americano.

O Sermão do Padre Vieira, tantos séculos depois, ainda serve para introduzir mais uma possível torção de conceitos. No nosso caso, ajuda não só a esmiuçar o regime de diferenças entre o mármore e a murta, mas também a refletir sobre a arte de esculpir. Qual o labor envolvido na arte de dar forma à matéria bruta? Qual é o engenho presente na seleção do material necessário e na temperatura ideal para dar vida a um espaço até então vazio de significados?

Quer me parecer que Flávio Cerqueira, com sua bela e consistente obra escultórica, expressa por, com e sobre o bronze, também inverte sentidos prévios, os quais, de tão naturalizados, provocam estranhamento ao serem manuseados de maneira tão particular – escapam da norma ou da convenção construída ao longo do tempo. Sendo assim, em vez de referendar divisões canônicas da história da arte, o artista as subverte, já na escolha dos personagens que esculpe. Em primeiro lugar, retoma o complexo gênero escultórico, pouco explorado pelas novas gerações, que parecem reagir não só ao alto preço do material, como ao processo de trabalho especializado que a técnica demanda. Em segundo, é preciso destacar que o bronze, desde o final do século XIX, tem sido pouco utilizado nos trabalhos figurativos brasileiros. Saiu de voga.

Mas há mais outra inversão digna de nota: Flávio seleciona o bronze não para representar protagonistas oficiais da história brasileira – reis, príncipes, imperadores, arcebispos ou governadores. Prefere os protagonistas do dia a dia e, no caso desta exposição, mulheres, elevadas em seus gestos cotidianos.

As figuras de Flávio também não trazem qualquer registro verista ou reproduzem as dimensões originais dos personagens nos quais se inspiraram. Não há, pois, sentido de cópia do real; trata-se sempre de produto da imaginação. Arte com arte.

Além do mais, se o bronze, quando pronto, é um material sólido e rijo, durante o processo de elaboração ele é tremendamente moldável. Por isso, e com suas opções escultóricas coerentes, Flávio Cerqueira destrói a dicotomia entre duro e mole, o que nasce para se eternizar ou o que fica para se adaptar, e cria uma arte a um só tempo adaptável e duradoura; resistente e tesa, mas também flexível. Mármore e murta.

Essa equação – jogada entre a solidez e a adaptabilidade – faz da obra de Flávio Cerqueira uma conversa entabulada entre o mármore com a murta; não sua polarização ou dicotomia. No processo de confecção das obras, o móvel vai virando rígido, eterno, com o artista se convertendo num escultor de significados.

O processo: da cor do bronze novo

Diferente das demais exposições de Flávio Cerqueira, nesta o espaço figurativo volta-se definitivamente para o universo feminino. Representadas a partir de diferentes idades e nas mais variadas situações, mulheres, meninas, moças, senhoras exercem um direito que lhes é fundamental: a liberdade. Liberdade para voar, para escutar, para brincar, para pichar, para olhar as estrelas, para estarem sozinhas ou em companhia. Liberdade de dizer sim, mas também de ecoar um sonoro não.

O material já era conhecido de Flávio Cerqueira: o bronze – uma série de ligas metálicas que tem como base o cobre e o estanho, bem como proporções variáveis de elementos como zinco, alumínio, antimônio, níquel, fósforo, chumbo, entre outros, que cumprem a função de assegurar características superiores às do cobre.

O processo funciona como se a junção de várias ligas disfarçasse, de alguma maneira, aquela que é a sua origem comum: o cobre. Os ferreiros logo notaram que a utilização do cobre era inviável, devido à alta procura e ao decorrente preço elevado do produto. Já a mistura com o estanho aumentava o volume do material, tornando maior a oferta, e, consequentemente, a sua viabilidade comercial.

Não à toa, o termo “bronze” vem do persa biring, que quer dizer “cobre”. A descoberta dessa liga metálica – que resulta da mistura do cobre com o estanho – foi tão fundamental que deu origem a um período da história conhecido como “Idade do Bronze”, que teria se iniciado no Oriente Médio, em torno de 3300 a.C. As armas e as ferramentas eram feitas de bronze, assim como as estátuas dos dirigentes. Também se aproveitava das diferentes cores do material, que, quando polido, chegava até o amarelo ouro, tonalidade muito usada nas esculturas da época.

Mas a popularidade veio mesmo da resistência estrutural que essa liga alcançava, não sendo sujeita à corrosão atmosférica. Também a facilidade de fundição, as potencialidades e a capacidade de acabamento permitiram não só uma evolução na técnica do polimento, como também uma grande riqueza de cores.

Como vimos, durante o processo de fundição, o material é maleável. Na verdade, o bronze só é fluido quando aquecido a 1.300 graus. Ou seja, até que a obra esteja finalizada, o trabalhador e o artista procuram pela forma ideal. A escultura se faz, portanto, no flagrante da ação. A escultura é o resultado de um processo significativo e não expressa, tão somente, a matéria final.

O bronze é nobre como o mármore. Mas enquanto no mármore vai-se extraindo matéria, no bronze se adiciona, como se o metal fosse, de alguma maneira, estabilizado a partir da sua combinação com outros elementos, inclusive as mãos do artista. A partir daí, e depois de resfriado, ele entra em “estado de múmia”: não se altera mais, mesmo com o passar do tempo. E se na Europa a técnica serviu para “mumificar” a nobreza e as autoridades – para assim eternizá-las –, já por aqui ela foi pouco utilizada, por conta do alto preço e das dificuldades presentes na sua produção. Mesmo assim, compôs peças que ornaram nossas igrejas barrocas ou os bustos dos nossos imperadores.

Já Flávio, influenciado pelo barroco e pelas possibilidades da técnica, tirou o bronze “do pedestal”, para aplicá-lo às cenas mais cotidianas, cheias de beleza e afeto. Seus objetos têm uma escala menor e reduzida. Crescem, porém, nas situações que apresentam e representam.

A arte não tem compromisso com o verismo; só consigo mesma. Por isso, cada obra que compõe esta exposição mais se parece com um conto. Isto é, cada uma carrega sua própria história, que começa e termina com ela. É certo que todo conto se encerra em si mesmo. Nesta exposição, todavia, por conta da conversa que as esculturas estabelecem entre si, é possível dizer que existe uma certa estrutura interna, comum às diferentes obras, que convida ao diálogo. Elas se abrem e não se fecham.

Macunaíma, personagem de Mario de Andrade e do modernismo paulistano, dizia que os nativos tinham a “cor do bronze novo”. Eram escuros, mas podiam ser claros também. Eram maleáveis, pois faziam a guerra, mas realizavam alianças também. Comiam, mas também podiam ser comidos. Nesse sentido, nesta exposição, cada um é convocado na condição de coautor, pois as histórias aqui narradas não se encerram; encontram-se em diálogo com outras narrativas dos tantos “outros e outras” que vivem em cada um de nós.

As obras: atalhos para a liberdade

Diz a mitologia indiana que o mundo foi criado muitas vezes. E a cada vez tomou uma forma diferente. Mais: logo que terminado, o novo mundo se acomodava nas costas de uma tartaruga. E dessa forma seguia o processo contínuo e ininterrupto: a cada novo mundo, uma nova “tartaruga mais profunda” surgia e apoiava mais um novo mundo. Sendo assim, cada mundo ficou diverso na sua semelhança, pois relacionado, mas também profundamente separado, na diferença que estabelecia com os demais.

“Liberdade” era palavra muito preciosa no Brasil escravista, que manteve durante quase quatro séculos o sistema intocado e, ademais, naturalizado. A liberdade era, portanto, um bem difícil de conquistar e ainda mais complicado de manter. Com a República, regime pautado em basicamente dois conceitos – igualdade e liberdade –, a realidade não se alterou substancialmente por aqui.

Ao contrário. Com a Abolição, em maio de 1888 – que veio com uma lei curta, conservadora e não inclusiva –, as populações negras tiveram de construir seus próprios arranjos e formas de emancipação. Jornais negros, ativismo, escolas, mobilizações, movimentos políticos representaram formas de fazer da liberdade uma realidade mais ampla, e de qualificar a democracia. Sabemos, porém, que estamos longe dessa utopia, num país que ainda pratica um genocídio negro e onde mulheres negras são as maiores vítimas da violência e do estupro.

Mas em “Atalho para a Liberdade”, Flávio Cerqueira, como é de seu costume, inverte caminhos e percursos mais óbvios. Para começar, o artista revoluciona nossa lógica visual. O bronze, um material tão pesado, parece tênue, pois está supostamente suspenso por três balões. Leve, a moça/menina fecha seus olhos, eleva os dois braços, como se estivesse flutuando – aliás, como há de ser o caminho para a liberdade. Com ela tudo parece voar, com o bronze se revelando, inesperadamente, rarefeito.

A ponte que liga os balões ao corpo da personagem é o seu cabelo, elevado para se transformar numa espécie de elo ou corda resistente. Por debaixo só se podem ver os sapatos, os tênis, numa versão contemporânea desse tipo de símbolo máximo da liberdade no Brasil. Como se sabe, durante o período da escravidão, uma das maneiras de se distinguir os senhores de seus serviçais era olhar para os pés: só os primeiros estariam calçados. Por isso mesmo, com a chegada da liberdade formal, tardia no Brasil, muitos ex-escravizados e ex-escravizadas compraram sapatos e, quando não conseguiam calçá-los, pela falta de hábito de uso, usavam-nos como uma espécie de troféu, e a tiracolo.

Também nessa escultura eles se parecem com troféus. Afinal, sua base é a que mais se vê por debaixo da obra. Assim, se em geral as solas dos sapatos são basicamente feitas para serem invisíveis – para não serem vistas –, nesse caso elas ganham primeira importância. São elas que tocam a realidade.

Nesse mundo, são eles, os sapatos, o “atalho”, o caminho mais curto “para a liberdade”. De resto, tudo é bronze: os três balões, os cabelos espessos, mas afunilados em cone, o rosto elevado como o de um anjo barroco, as vestes que flutuam, os braços como asas. Leveza feita do peso.

Como se o silêncio dissesse tudo

Um meio corpo de mulher se destaca nessa escultura, e de forma enigmática. Cabelos detidamente desenhados, sobrancelhas espessas, olhos fechados e voltados para baixo revelam alguém que se concentra em seu ofício. A expressão é serena, com as aberturas de dois copos voltados para seus ouvidos. O que tanto escuta a nossa protagonista?

Olhando de forma cuidadosa, mais outro enigma se delineia. Na cena, vislumbramos um jogo tradicional, no qual se procura ouvir por entre copos. O problema é que não sabemos o que pergunta a nossa protagonista e muito menos a resposta que deseja ouvir. Essa é, assim, uma escuta difícil, interrompida e com muitos ruídos.

Quem sabe ela queira se evadir deste mundo; concentrar-se num outro, no seu imaginário. Mais não sabemos, pois não nos é dado saber. Resta a dúvida, que muitas vezes é muito mais produtiva do que uma assertiva.

Na nossa frente, uma mulher negra carrega seu segredo. Toda obra carrega o seu segredo – aquele que insiste em não se revelar ao primeiro olhar. Ou talvez essa seja a escultura que mais se assemelha à estrutura aberta de um conto. Cabe ao observador encontrar o seu sentido e fechar a história.

Já ela parece absorta demais no seu segredo. Quem sabe ela esteja escutando o tremendo som do silêncio?

Cansei de aceitar assim

Uma moça, com as formas de seu belo corpo bem delineadas, recosta-se numa vistosa placa onde se lê a palavra STOP. O sentido contido na palavra é suficientemente forte e convencional para não legar qualquer tipo de dúvida. Trata-se de um aviso, de um alerta, de uma ordem para que não se avance. Não é preciso ler e tampouco traduzir para ter certeza da mensagem ali contida. Altiva, ela parece segura com seu corpo ereto, cabelos amarrados, perna direita levemente dobrada e olhar que parece perscrutar o futuro.

Flávio conta que essa foi a única obra que realizou com a ajuda de modelo vivo. Há, pois, questões da própria história da arte presentes nesse trabalho. Mas, nesse caso, ao invés da posição submissa, passiva, de quem se deixa ver, a moça tem um papel ativo e incontornável na obra. Ela é, nesse sentido, também autora dessa escultura.

“Cansei de aceitar assim” subverte, propositadamente, as convenções do gênero. Na produção escultórica há uma grande predominância na representação de homens, que são em geral conhecidos e cuidadosamente destacados. Já no caso das mulheres, não só existem menos trabalhos a elas dedicados, como esses, normalmente, trazem moças nuas, anônimas e desconhecidas; são só e tão somente modelos.

Por isso, a postura aqui é política – dado que pode ser referendado a partir do título da obra. Num país como o Brasil, em que durante muito tempo a existência de verdadeiras culturas do estupro e da violência sexual contra mulheres, sobretudo negras, não era reconhecida e nem sequer notificada, pela beleza da arte, o trabalho duplica a sua função: alerta, desafia, convida, mas encanta também.

Esse é um corpo pleno, mas “não disponível”. Um corpo orgulhoso e que decide se expor; não é incitado a isso.

Mas essa é igualmente uma história de limites. De pare, stop, aqui não mais. Uma obra feita por um homem artista, mas que denuncia agressões neste país em que misoginia é linguagem e forma recorrente de admoestação, e onde o próprio termo “feminicídio” só foi dicionarizado em 2015.

“Pare aqui”, pois esse é o limite, como modelo e realidade; modelo feito realidade.

Better together (ou “two is a double”)

Uma espécie de trave delimita um campo de possibilidades. Ereta, uma mulher/menina, de traços menos feminilizados, sustenta outra em seus ombros. Ela está de pé num caixote que, sendo de bronze, parece feito de madeira. Como num teatro de absurdos, a segunda moça apoia a mão na parede e com a tinta marca a superfície branca com a frase “Better together”. Nas suas mãos um rolo igualmente de bronze, mas que parece feito também de madeira e esponja, desafia o espaço. Espaço feito de liberdade: da força que surge em dobro, em duas.

A situação e a sentença iluminam o contexto que então se projeta: em duas é sempre melhor. Colocada no ambiente desta exposição, em que são tantas as mulheres fortes, juntas, a frase é ainda mais significativa: juntas somos muito mais fortes e lutamos pela liberdade.

A cena é quase uma síntese dos tantos sentidos presentes nesta mostra. “A união faz a força”, diria o dito popular. Ou então, “ninguém larga a mão de ninguém”, frase entoada pela ativista e vereadora Marielle Franco, assassinada friamente em março de 2018.

Para dar nome às coisas

Tudo começou com uma frase antes contida neste texto: “estudar é dar nome às coisas”. A frase ressoava a um dito do etnólogo Claude Lévi-Strauss, que certa vez afirmou que as coisas são antes classificadas, para então ganharem significado, e não o contrário. 4 O conceito também está presente no famoso livro de Michel Foucault, As palavras e as coisas, quando o filósofo procura examinar o sentido das classificações. 5

Pessoas humanas são seres classificadores, que pretendem tudo nomear e assim entender. E é esse o impulso que tomou forma na obra chamada por Flávio Cerqueira de “Para dar nome às coisas”.

Nessa escultura, comovente, vemos uma adolescente com o corpo levemente inclinado, apenas o suficiente para que possa melhor utilizar o objeto que traz nas mãos: uma luneta. Absorta, ela se perde de si, tentando observar um mundo que não conhece; fora desse lugar. O telescópio leva a outras galáxias, a lugares distantes, e revela o desejo pela procura do diferente, do desconhecido.

Revela também a atividade do cientista que, a partir do seu conhecimento, e reconhecimento, pretende nomear – e assim inventar – estrelas, cometas e planetas. Esse impulso faz parte da própria humanidade, que se dá ao luxo de “descobrir” o que muitas vezes já existe, muito antes dela. Faz parte também da atitude curiosa da garota que escapa do seu contexto a partir do gesto de inaugurar algo novo: uma forma de liberdade. Um esconderijo, uma forma de escapar.

Como cantou Paulinho da Viola: “as coisas estão no mundo só que eu preciso aprender”.

Um mundo de cada vez

Cada uma das esculturas expostas nesta mostra traz “um mundo de cada vez”. Como nos bons contos, essas pequenas histórias não carregam consigo bula ou solução fácil, mas é como se as encontrássemos encerradas nos seus próprios delírios significativos.

Esta é uma exposição que carrega, a partir da maestria de Flávio Cerqueira, muitas histórias em uma só. Uma história muito bem entabulada entre o mármore e o bronze, entre mulheres unidas em seu protagonismo, na luta pela liberdade. Essa é uma utopia forte neste país que ainda luta pela igualdade e procura por sua democracia.

Liberdade é o tema que aglutina todas as obras presentes nesta exposição. Uma menina que escapa de seu mundo munida apenas de seus balões que a levam para o espaço; uma adolescente que sonha com um lugar que extrapola as fronteiras por ela conhecidas; duas moças que encontram um espaço de expressão, unidas, e revelam que a boa mudança precisa ser coletiva; uma garota que traz um símbolo de “pare” nas mãos, mas que, paradoxalmente, ganha sentido de autonomia; uma senhora que escuta seus copos e assim conquista a sua liberdade, longe de tudo e de todos.

Impossível deixar de fazer um paralelo com o período em que hoje vivemos. Todas essas personagens femininas parecem estar mirando algum tipo de fuga, a busca de uma hipotética mudança, uma situação nova, uma saída para essa fase de reclusão e de distanciamento social.

Se são muitos os “contos” variados e embutidos nas esculturas, em comum elas trazem esse desejo indisfarçado de uma liberdade que extrapola os contextos particulares: liberdade em relação a uma determinada situação; liberdade na procura de um outro espaço físico.

Em um Brasil sufocado, e que cria uma espécie de cinturão de esquecimento e de invisibilidade, sobretudo no que se refere às pessoas negras, as esculturas de Flávio Cerqueira clamam por liberdade. Juntas, mas diferentes, elas são expressão de um contexto opressivo, mas também a representação e projeção da miragem de um mundo melhor, para onde se possa escapar.

Nesse sentido, elas se convertem também em símbolos deste país que pode parecer maleável como o processo de produção do bronze, mas rígido como as esculturas finalizadas. São assim símbolos diletos dessa nação que precisa ser refundada, renascer “a cada vez”, de maneira a expurgar o racismo que, sendo uma prática naturalizada no Brasil, acaba por inviabilizar sua forma republicana.

NOTAS

1 VIEIRA, Antônio. “Fragmento do Sermão do Espírito Santo” (1657). Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16396
2 DIAS-QUINONES, Arcadio. A arte de bregar e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
3 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
4 LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2016.
5 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

Posted by Patricia Canetti at 11:02 AM