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agosto 23, 2015

Do lugar do cowladyboy, entre nov[elos] e nov[ilhas] por Marília Panitz

Do lugar do cowladyboy, entre nov[elos] e nov[ilhas]

MARÍLIA PANITZ

Gê Orthof - Nov (elos) + Novi (lhas) = Cowladyboy, Amarelonegro Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, RJ - 26/08/2015 a 25/09/2015

Uma estrutura complexa de acrílico e madeira… base para uma estranha narrativa. Estranha? Entronizado no alto da torre, está o livro (afinal, na obra de Gê Orthof, não são sempre os livros?) “The manlyartofknitting”, um manual de tricô para ser feito ao ar livre. Na capa, um típico cowboy dos filmes de John Wayne, está montado em seu cavalo malhado… tecendo, com suas duas agulhas. A imagem, em tons de cinza, dá o tom da cena. Nos transportamos.

Os nov[elos] e as nov[ilhas] se apresentam, ao longo das peças da exposição, com seus sufixos como bússola: de uma imagem tão identificada com o universo masculino – ilhado em sua circunstância, em relação ao feminino (pois as fêmeas fazem parte do rebanho a ser submetido pelo laço)– surge o impensado ato de tecer os elosentre os supostos antípodas (habitantes de espaços contrários). Assim, convivem os novelos e as novilhas constituintes de um só sujeito. Sempre “s[eu]” – como aponta um de seus desenhos|poemas. Essa equação poética que nos ensina algo do amor: que o S do sujeito sempre se oferece ao outro (objeto do amor), outro que é [eu]. Reconhecido.

Há, na narrativa fragmentária, construída por indícios que o observador terá de utilizar para construir seu tecido, uma clara posição política (da qual, convém dizer, o artista nunca se esquiva, em seus trabalhos), que questiona, com humor e ironia, os papéis impostos e reificados, de identidades congeladas que, acima de tudo, negam a história.

Do topo à base da edificação de nov[elos]+ nov[ilhas]= cowladyboy, passamos por várias imagens-notas.O grande falo (?) recoberto pelo tecido cinza desfazendo-senos fios de lã que são armazenados em um receptáculo transparente, no outro lado do objeto; lá onde se vê a imagem dos dois homens em um barquinho no Rio Danúbio, este “herdado” de outra instalação de Gê: “mar-armar” - o fluxo do rio, da Europa ao Rio Negro, plena diáspora. Apresentam-se também as pequenas construções, paisagens mínimas. Eos campos de cor feitos de acrílico e feltro (matérias recorrentes em sua obra) que subvertem a paleta estrita de cinzas e cor de madeira. Só pontuações.

As caixas|paisagem – algumas com música – feitas em acrílico transparente (presentes em suaobra, desde “Son(h)adores”, de 2010) vem aqui em formato de ortoedros (ou paralelepípedos, aqueles sólidos retangulares). Vistos assim emparelhados, lembramao artista, osvagões de um trem–bela imagem para compor nossa cena campestre, lugar do cowladyboy. Em cada uma delas, formas geométricas feitascom chapas coloridas e transparentessustentam um micro ambiente, pequenas situações, algumas acompanhadas de um fundo musical feito por caixinhas de música. Lá estão a Internacional (de seu exílio europeu) onde figura o vagão do trem das despedidas;HavaNagila (de sua ascendência judaica) na pastoral, com a vaquinha pastando na cor… Na terceira, entre o vermelho e o amarelo, o postal do cowboy com uma esfera de cristal a frente e uma mulher que espia através dela. Um alce (talvez vindo de “Os Himalaia”, de 2015, sua obra anterior a esta agora exposta) escapa da quarta, seguro por um fio daquela lã cinza, vindo do novelo dentro da caixa. E, na quinta um ziguezague em branco e preto encerra o novelo cinza em um canto. Sua linha se une a um disco preto, do lado de fora, trazendo um homem que olha a paisagem.

As lâminas de acrílico colorido também se deslocam para os três grandes desenhos | poemas – Truque…; UM ESPINHO É POUCA COISA DIANTE…; cow/boy / cow/ard / [ não ]/coragem…. São translúcidas no topo da moldura (também feita de acrílico) criando, com a luz, uma mancha de cor sobre o papel branco, e opacas nas formas que a atravessam, criando um relevo que se projeta para além do papel e da caixa que o protege. Desestabiliza os desenhos, lança-os no espaço. Estes que também são notas dispersas pela superfície brancas, com imagens e palavras “preciso precipício / o vasto / galope (…) silvo / sibila/ saliva/ s[ eu ]”.

Posted by Patricia Canetti at 11:08 PM

agosto 17, 2015

Antes era só o vão por Francisco Dalcol

Antes era só o vão

FRANCISCO DALCOL

Os trabalhos de Antônio Augusto Bueno parecem atravessados por algo que não lhes pertence, mas ao mesmo tempo os constitui. Esse aparente desacerto vem de uma indisciplina do artista, no sentido de uma postura interessada na liberdade de experimentar no trânsito entre linguagens, sem se prender a uma ou outra, intercambiando constantemente técnicas e procedimentos.

Nas obras que integram a nova série “Antes era só o vão”(1), pintura é também gravura, assim como escultura é desenho, e gravura é pintura. Os inversos também, pois um está sempre no outro, formando zonas de indefinição. E ao se contaminarem, trazem como recompensa a descoberta, com todas as aberturas e possibilidades que os momentos de incerteza ensejam.

A montagem da exposição na Mamute busca tirar força desses rebatimentos, do ir e vir que se estabelece entre as obras e as diferentes modalidades artísticas que as compõem, propondo ao espectador, a partir da disposição dos trabalhos, algumas relações visuais; umas mais imediatas, outras menos explicitadas.

A instalação na entrada da galeria ocupa o pequeno espaço vago ao lado da escada. Se antes era só um vão, há agora ali a tentativa de transformar esse não lugar em uma situação. Realizado especialmente para esta mostra, o trabalho é composto por gravetos que Antônio Augusto recolhe e estrutura em forma de armações, filiando-se a uma série de outras obras de viés escultórico que tem realizado ao longo de sua produção. É como se ele desenhasse o objeto no espaço, vendo nos galhos as linhas do desenho, mas também as manchas, quando reunidos como espécie de grandes maços e ramalhetes.

As salas expositivas do andar de cima apresentam as novas pinturas e gravuras da série “Antes era só o vão”. Nas telas em grande formato, as manchas carregam um aspecto de vestígios ancestrais, como marcas de um tempo passado. Também lembram os troncos das árvores do quintal do Jabutipê, o ateliê na antiga casa que Antônio Augusto mantém em uma rua ainda silenciosa no Centro Histórico de Porto Alegre. Remetem ainda às paredes rachadas, descascadas e fraturadas que permanecem em pé no casarão em ruínas próximo ao Jabutipê onde foi gravado o vídeo do qual vem o título desta exposição.* De algum modo, essa visualidade do entorno cotidiano do artista está impregnada nessas pinturas.

Mas nada seria assim sem a bem-vinda intromissão da gravura. Nessas pinturas, está plasmado um processo alongado e pausado, fruto de um procedimento experimental. Sobre a massa de pigmentos e tinta acrílica, o artista sobrepõe betume em algumas áreas. Esse material, muitas vezes usado nos processos de gravura, vira tinta também, compondo novas manchas. As camadas acumuladas são frequentemente raspadas, em um gesto de adição e subtração de matéria, e também cavoucadas, como nos procedimentos de incisão da gravura. É um processo não imediato, que leva dias, como o tempo de espera que muitas vezes a gravura demanda. E nesse transcorrer, que permite um olhar mais vagaroso e, por isso, reflexivo, as dúvidas advindas sempre dão a ver possibilidades a serem testadas e encaminhadas.

Pode-se pensar nesse sentido as gravuras da série. Pela primeira vez, Antônio Augusto apresenta em público um conjunto representativo de trabalhos gráficos, essa modalidade artística de tanta tradição e relevância histórica na arte gaúcha. Novamente, interessa ao artista a margem experimental, aqui oferecida pela gravura em metal e pelo tempo próprio a seu processo. Isso começa nos modos com que explora o desenho sobre as matrizes, passa pela alquimia de ácidos e outros materiais aplicados nas placas como se ele as estivesse pintando, e chega à etapa de impressão, cujas primeiras provas sempre levam o artista a refazer o percurso do processo em busca de novos efeitos. Assim, a imagem final fixada sobre o papel é antecedida por uma série de testes e experimentos. O que se obtém são resultados sobrepostos e acumulados. Ao fim, continua sendo gravura, mas também desenho e pintura. E ainda escultura. Se na instalação os gravetos se articulam como linhas no espaço, na gravura se dá o oposto, com as linhas do desenho se tramando como se fossem elas os gravetos.

Em um olhar atento, é possível perceber que, ao longo da série “Antes era só o vão”, evidencia-se um aspecto central que perpassa a totalidade da obra de Antônio Augusto de um modo tão pessoal: o gosto pela artesania e pelo vagar que lhe é inerente, opções que, ao serem assumidas pelo artista, ganham certo caráter político em tempos tão apressados e automatizados como os nossos. Tempos esses dos quais apartar-se conscientemente significa não só um ato de resistência, mas um gesto autêntico e singular de se colocar no mundo.

(1) “Antes era só o vão” é um trecho do texto de Luís Filipe Bueno que integra o vídeo apresentado na exposição.

Posted by Patricia Canetti at 2:38 PM

agosto 16, 2015

O energúmeno por Valquíria Farias

O energúmeno

VALQUÍRIA FARIAS

Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça: Gil Vicente - Inimigos, Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães - MAMAM, Recife, PE - 19/08/2015 a 16/02/2016

Os desenhos são auto-retratos [1]. Neles, uma reação enérgica é investida contra nove representantes de instâncias do poder político-social e religioso. A reação. Uma figura, a vítima, empunha agressivamente uma arma contra o seu opressor, a outra figura. O realismo cruel de cada cena entre esses dois personagens é indicativo do destino fatal que um terá. Em uma cena, o opressor está sentado em uma cadeira com as mãos e o corpo amarrados, enquanto a outra figura segura violentamente seus cabelos e, com uma faca em seu pescoço, imobiliza-o. Em outras, o opressor está de joelhos, com um revólver apontado diretamente para sua cabeça, ou está com as mãos erguidas, frente a frente com a vítima, ou de costas para ela, com as mãos para o alto, ou, ainda, está sentado em um banco, tendo as mãos fortemente amarradas e para trás de seu corpo, enquanto a vítima, cautelosa, aponta-lhe a arma de certa distância. Sucessivamente... auto-retrato matando George W. Bush, Luiz Inácio Lula da Silva, Bento XVI, Eduardo Campos, Fernando Henrique Cardoso, Jarbas Vasconcelos, Ariel Sharon, Elizabeth II e Kofi Annan [2]... cada um desses representantes hegemônicos como um “programa de extermínio”. No título dos trabalhos, é legível essa vontade do artista. Execução sumária em curso. Auto-retrato matando o mau dirigismo e os desmandos dos poderes estabelecidos.

Do político [3], estão imbuídos os novos trabalhos. Gil Vicente emerge radicalmente de assuntos que tratam da condição humana, da subjetividade que a envolve [4], e penetra nos espaços intrincados do mundo visível, contaminado de acontecimentos político-sociais condutores do comportamento do homem enquanto sujeito da sociedade em movimento. Incisivos. Os desenhos são em grande dimensão, nos quais prevalecem aspectos de contenção e rigidez no uso dos materiais e na ação empreendida. Objetivo. Não poderia ser agora de outro modo o embate com os elementos desse mundo exterior que o incomodam intermitentemente. Não que antes estivesse alheio aos fatores constituintes do sistema social e de seus efeitos na organização do lugar onde vive. São, essas questões, colocadas de alguma maneira, sem dúvida implicitamente, em outros trabalhos que realizou.

Sentidos internos e externos estão interligados na compreensão desses trabalhos [5]. Trata-se de um ato isolado, “um expurgo” do artista contra os modelos políticos de dominação que organizam as sociedades, e, ao mesmo tempo, de uma tentativa de alertar “as pessoas contra as ilusões” [6]. Trata-se de uma tomada de consciência [7], que não necessariamente espera ser correspondida, e, ao mesmo tempo, de uma vontade de comunicar [8], de provocar o público e acender reações ambíguas. Repulsa. Empatia. Indiferença. Ou o que for. Não importa, na verdade, um entendimento unívoco ou diferenciado de cada um dos sentidos que movem o artista, tanto melhor dos mecanismos que ele utiliza como dispositivos imediatamente transgressores de regras — as obras. O embaralhamento das relações indivíduo/sociedade (do indivíduo na sociedade capitalista contemporânea) permite, ainda que assim, uma interpretação analítica, mas não-dogmática, no âmbito da investigação sociológica, dos elementos constitutivos que regem a vida em sociedade — daquilo que é público e privado, universal e particular, do dentro e do fora na experiência humana [9] —, atenta ao caráter de reciprocidade das operações que ocorrem entre os diversos setores dessas relações. Desse modo, tudo o que é interno e externo à vontade do artista como experiência da realidade está inequivocamente realçado em sua prática artística [10]. Nos trabalhos, a operação empregada por Gil Vicente apenas com carvão e papel — ao trabalhar o traço com precisão e detalhamento para deixar a sua imagem e a dos nove líderes públicos o mais próximo possível da verdadeira — é, assim, uma narrativa amparada na complexidade de fatos reais, sintomáticos do sistema social no qual está inserido [11].

Para não deixar que outras situações o desviem de sua intenção, a vítima está só com os seus opressores, e somente uma linha desenha sutilmente os espaços-tempos prováveis em que se encontram [12]. Pois que sejam estes quaisquer lugares-comuns desvendados pela atitude perspicaz do leitor a cada cena. A vítima está concentrada em sua realidade infeliz, invadida que foi pelas figuras atrozes dos opressores, os quais passaram a governá-la com tirania ao planejarem tomar toda a substância material, ética e espiritual que lhe dá significado. Mas, ainda assim, a vítima reage transformando o que lhe sobrou em armas para a sua defesa e vingança. Então ameaça esses opressores, inimigos de sua conduta moral, de seus costumes, de sua cultura e história. Parece não haver outra forma de conquista senão aquela dada pela violência [13], virulência catártica, pelo ato possesso de aniquilamento dos poderes instituídos e (por que não?) imposição de outros. Os opressores que estão aí (decalcados na forma dos desenhos realísticos e denunciadores do artista) sabem que o diálogo dissimulado é o único jeito de conter essa ameaça. Mas a vítima, que “saiu do sério”, mostrando-se indignada em atitudes e gestos, está consciente de que, se ouvi-los, sua vontade será eclipsada pelo poder de dominação que têm para devolvê-la novamente ao mundo de alienação onde esteve aprisionada durante tempos.

O estado da vítima da opressão no nível sociopolítico das sociedades globalizadas é o estado dito irremediável dos sujeitos cidadãos que nela residem. A globalização que se dá no nível da informação multifragmentada em sentidos torna também multifragmentada a comunicação entre esses cidadãos. Por esta via, seus posicionamentos são ações isoladas, microações que ocorrem primeiro no habitat especializado. Sua circularidade em um campo maior depende rigorosamente da força unificadora e, portanto, comum que podem conter as mensagens que projetam nos canais híbridos dessa comunicação. O cidadão é, assim como está escrito nos desenhos de Gil Vicente, o energúmeno [14] que, situado no campo de sua “resistência reativa” [15], persiste violentando impetuosamente as convenções (as suas mesmas, as da família, do Estado, da sociedade), confrontando-as com as informações perturbadoras do seu estado de vítima das injustiças sociais generalizadas, das formas de governo e das guerras, corrupção política e econômica, dos preconceitos e da violência. “Do mal do mundo” [16]. O cidadão é o energúmeno porque, mesmo impedido, esbraveja uma denúncia do mundo, praticando o seu ato solitário com a convicção de que possui uma liberdade construída na base de sua consciência (política). Por outra via, é energúmeno porque contraria o status quo ao, abertamente, coletivizar sua ação no instante em que a manifesta publicamente, criando um território comum inevitavelmente partilhado com outros sujeitos da História.

A ação empreendida nos desenhos por Gil Vicente, ao retratar-se como o que mata os poderes do mundo, pode ser entendida como metáfora de uma vontade maior e subjetiva dos indivíduos sociais, vítimas autênticas da desordem do mundo. O artista, que também se assume vítima, é o que encarna essa vontade no interior de sua prática artística, tornando-a vetor de transmissão da crise gerada por essa desordem. Ocorre que, nos desenhos, cada sentença acionada corresponde a vontades de reivindicação e revolta dos cidadãos, constantemente afetados pelo poder de seus opressores.

Em sentido oposto ao sonho de transformação das sociedades que as práticas artísticas modernas buscavam instaurar através de atitudes políticas engajadas, a série Auto-retratos matando George W. Bush, Luiz Inácio Lula da Silva, Bento XVI, Eduardo Campos, Fernando Henrique Cardoso, Jarbas Vasconcelos, Ariel Sharon, Elizabeth II e Kofi Annan não parte de nenhum projeto político defendido pelo artista, tampouco apresenta, em sua escrita, vocação alguma para instaurar idéias nefastas de libertação dos sujeitos da dominação. Na verdade, interpreta, nos vários momentos tensos de sua narrativa, sintomas velados de uma crise que opera níveis cada vez mais destruidores da condição humana no mundo. Cúmplices ou testemunhas dessas ações, neste momento, são os olhares diversos do público.

NOTAS
[1] Feitos em carvão sobre papel e medindo 200 cm x 150 cm cada.
[2] Gil Vicente fez vários estudos de rostos desses dirigentes hegemônicos a partir de imagens retiradas da Internet. Em seguida, construiu todo um repertório para uma “cena de execução”, na qual ele era o seu próprio personagem, e os personagens líderes do poder eram representados por pessoas geralmente muito próximas a ele. As nove cenas de morte foram registradas em fotografias que serviram de referência à elaboração do desenho em papel maior.
[3] A dimensão política nos desenhos de Gil Vicente talvez guarde alguma relação com a noção de política como prática de liberdade do indivíduo na sociedade, defendida por Arendt. In ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
[4] Com os desenhos da série Sessenta Cabeças, produzidos na década de 1990, e da série de Auto-retratos Rorschach, que apresentou na 25ª Bienal Internacional de São Paulo, em 2005, Gil Vicente demonstra claro interesse pelo isolamento da figura humana em um ambiente totalmente inventado por ele, em que a comunicação parece ocorrer apenas através das vias do pensamento e da reflexão psicológica sobre a existência.
[5] Em comentário feito pelo artista brasileiro Eduardo Frota [novembro de 2005], do qual também compartilha este texto, em suas linhas centrais, esses sentidos são originados “de um incômodo pessoal de Gil Vicente, que se acentua nos campos social e político”.
[6] Declaração do artista. CAVANI, Júlio. Gil Vicente radicaliza o traço. Diário de Pernambuco, Recife, 14 de setembro de 2005.
[7] Neste caso, a tomada de consciência diz respeito à atitude não utópica do artista com relação a quaisquer projetos políticos de transformação social.
[8] “Eu, como cidadão, usei o canal de comunicação que eu tenho, que é o meu trabalho, para externar e tornar público um momento pessoal meu”. Idem, nota 6.
[9] No sentido weberiano, as relações humanas só podem ser apreendidas quando o são também os sentidos dados às suas ações, que são dispositivos de significações sociais. Weber, Max. Metodologia das ciências sociais, parte 2. São Paulo: Cortez Editora, 1992.
[10] Para o filósofo Jacques Rancière, as formas de artes são “formas de inscrição do sentido de comunidade, que, por sua vez, definem a maneira como as obras fazem política, quaisquer que sejam as intenções que as regem, os tipos de inserção social dos artistas ou o modo como as formas artísticas refletem estruturas ou movimentos sociais.” RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org. Ed. 34, 2005. p.18-19.
[11] “...queria fazer um comentário real, como se fosse um documento ficcional.” Idem, nota 6.
[12] A obra em seu sentido estético é o “recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência.” A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org. Ed. 34, 2005. p.16.
[13] Para Suely Rolnik, a violência como política de resistência no jogo de forças antagônicas da lógica capitalista no mundo contemporâneo, no caso da vítima, é uma reação à violência de seu algoz. A violência, em sua versão negativa, é “hegemônica em nossa contemporaneidade”, à medida em que é “amplamente propagada pelo capitalismo mundial integrado” através da mídia, diz a autora. Por outro lado, Rolnik aponta que o esgarçamento da figura da vítima pelo indivíduo social constitui-se em uma necessidade vital do mesmo, que deseja escapar da lógica perversa de subordinação. ROLNIK, Suely. O ocaso da vítima: para além da cafetinagem da criação e de sua separação da resistência. Ars - Revista da ECA/USP, vol.1, n.2, São Paulo, 2003.
[14] Em sua crítica da modernidade, a respeito da pintura retiniana, Marcel Duchamp dizia: “o pintor se integrou completamente na sociedade atual, já não é um pária.” É possível uma aproximação de sentidos entre essa assertiva de MD, que segundo Paz “prefere a sorte do pária à do artista assimilado”, e a idéia do energúmeno defendida neste texto. Com significados e abordagens diferentes, entretanto, ambas compartilham do mesmo desejo de rejeição a quaisquer situações impostas pela sociedade. PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.58-59.
[15] ROLNIK, Suely. O ocaso da vítima: para além da cafetinagem da criação e de sua separação da resistência. Ars - Revista da ECA/USP, vol.1, n.2, São Paulo, 2003.
[16] Expressão usada por Gil Vicente para referir-se aos problemas políticos e sociais no mundo atual.

Posted by Patricia Canetti at 12:56 PM

Trecho da introdução de A Ilusão Especular por Arlindo Machado

AGENDA SP Hoje 17/08 às 19h30 @ Livraria Madalena: Arlindo Machado lança edição revisada de A Ilusão Especular: uma...

Posted by Canal Contemporâneo on Segunda, 17 de agosto de 2015

A Ilusão Especular: uma teoria da fotografia (Segunda edição revisada)

ARLINDO MACHADO

Recolocações
(À guisa de introdução)

Levando a sério a anedota de Blow up, o fotógrafo-protagonista Thomas, num relance de sua trajetória frenética e vazia pelaswinging London dos anos 1960, descobre, por acaso, entre as fotos de um par romântico a imagem de um cadáver misteriosamente inserida no cenário idílico e revelada pelas ampliações fotográficas. O filme de Michelangelo Antonioni, em linhas gerais, é o relato dessa descoberta espantosa, como se uma realidade insuspeitada pelos olhos negligentes do protagonista fosse de repente resgatada pela câmera, no limite da própria credibilidade do fotógrafo. À medida que Thomas ia ampliando cada vez mais seus negativos, toda uma dimensão invisível do cotidiano se impunha de forma surpreendente, revelando por detrás das formas familiares do mundo uma realidade outra que só a intervenção do aparato fotográfico pôde fazer aflorar. É muito curioso comparar essa ideia central de Blow up com o percurso de um pequeno filme de Marcelo Tassara denominadoAbeladormecida: entrada numa só sombra, no qual uma foto familiar de um casal de favelados é sucessivamente ampliada até perder todos os seus contornos figurativos. Neste último caso, a situação antonioniana é invertida completamente: quanto mais o olhar se aproxima da foto e amplia seus detalhes, na procura desesperada de uma realidade sufocante que se supõe estar atrás do verniz asséptico da cena familiar, mais e mais a cena se desmaterializa e perde seu referencial simbólico, reduzindo-se progressivamente a ranhuras e manchas despersonalizadas até resultar apenas na granulação característica da ampliação fotográfica. No filme de Tassara, o exame penetrante e minucioso de uma imagem aparentemente plena de ilações, ao menos no âmbito das convenções figurativas, choca-se cada vez mais com a opaca materialidade da fotografia e os limites de um código enganoso na sua transparência fantasmática.

Mesmo correndo o risco de uma abreviação grosseira, poderíamos dizer que a problemática desses dois filmes resume o núcleo das questões que este volume tenta enfrentar. Toda uma tecnologia produtora de imagem figurativa vem sendo desenvolvida e aperfeiçoada há pelo menos cinco séculos, no sentido de possibilitar uma reprodução automática do mundo visível – “automática” quer dizer: livre das codificações particulares e das estilizações pessoais de cada usuário. Essa tecnologia goza do prestígio de uma objetividade essencial ou “ontológica”, para usar o termo com que os seus próprios apologistas a têm caracterizado. Ela reivindica para si o poder de duplicar o mundo com a fria neutralidade de seus procedimentos formais, sem que o operador possa jogar aí mais que um mero papel administrativo. Entretanto, basta um mergulho crítico na história de seus desdobramentos técnicos para que possamos verificar nitidamente que a indústria da figuração automática só consegue “reproduzir” ou “duplicar” uma realidade que lhe é exterior porque opera com concepções de “mimese”, “objetividade” e “realismo” que ela própria perpetua. Ou, para usar a formulação mais precisa de Pierre Bourdieu “conferindo à fotografia a patente do realismo, a nossa sociedade não faz mais que se confirmar ela própria, na certeza tautológica de que uma imagem construída segundo a sua concepção de objetividade é verdadeiramente objetiva”.

O que nós chamamos aqui “ilusão especular” nada é senão um conjunto de arquétipos e convenções historicamente formados que permitiram florescer e suportar essa vontade de colecionar simulacros ou espelhos do mundo, para lhes atribuir um poder revelador. A fotografia em particular, desde os primórdios de sua prática, tem sido conhecida como o “espelho do mundo”, só que um espelho dotado de memória. Certamente, a superfície prateada e a base rígida do daguerreótipo contribuíram para essa analogia. Já na aurora de 1839, Jules Janin, explicando o que era a nova invenção, conclamava ao leitor: “imagine um espelho que pode reter a imagem de todos os objetos que ele reflete e você terá a ideia mais completa do que é o daguerreótipo”. Ora, se é verdade que as câmeras “dialogam” com informações luminosas que derivam do mundo visível, também é verdade que há nelas uma força mais formadora que reprodutora. As câmeras são aparelhos que constroem as suas próprias configurações simbólicas, de forma bem diferenciada dos objetos e seres que povoam o mundo; mais exatamente, elas fabricam “simulacros”, figuras autônomas que significam as coisas mais que as reproduzem. Nos domínios da figuração automática, o mundo imediato das impressões luminosas passa a ser trabalhado pelo código: isso quer dizer que, em vez de exprimir passivamente a presença pura e simples das coisas, as câmeras constroem representações, como de resto ocorre em qualquer sistema simbólico. Porém, com uma diferença fundamental, que constitui o alvo principal de nossas investigações: uma vez que a imagem processada tecnicamente se impõe como entidade “objetiva” e “transparente”, ela parece dispensar o receptor do esforço da decodificação e da decifração, fazendo passar por “natural” e “universal”, o que não passa de uma construção particular e convencional. É exatamente nesse ponto que as mídias mecânicas e eletrônicas do nosso tempo se tornam o terreno privilegiado das formações ideológicas: o fetiche de sua “objetividade”, no qual se acham mergulhadas massas inteiras de espectadores, é a máscara formal que oculta a intenção formadora que está na base de toda significação. Por essa razão, este trabalho, dedicado ao exame do código que opera no mais influente sistema figurativo de nosso tempo, é também uma crítica dos seus suportes ideológicos multiplicados num repertório infinito de crendices populares e teorias eruditas, de modo que se possa esclarecer por que não podem existir sistemas significantes neutros nem inocentes. Entre a verdade oculta que Blow up revela e a máscara ilusionista que Abeladormecida desvela há uma fronteira mal conhecida e pouco desbravada, que corresponde justamente àquela complexa trama de motivações que traça o liame entre as formas simbólicas e o mundo. [...]

Arlindo Machado é professor do Dept. de Cinema, Rádio e Televisão da Universidade de São Paulo. Seu campo de pesquisas abrange o universo das chamadas "imagens técnicas", ou seja, daquelas imagens produzidas através de mediações tecnológicas diversas, tais como a fotografia, o cinema, o vídeo e as atuais mídias digitais e telemáticas. Sobre esses temas, publicou os livros Eisenstein: Geometria do Êxtase (Brasiliense), A Ilusão Especular (Brasiliense), A Arte do Vídeo (Brasiliense), Máquina e Imaginário: o Desafio das Poéticas Tecnológicas (EDUSP), El Imaginario Numérico (Eutopias, Valência), VideoCuadernos (Nueva, Buenos Aires), Pré-cinemas & Pós-cinemas (Papirus), A Televisão Levada a Sério (Senac), O Quarto Iconoclasmo (Contracapa), El Paisaje Mediático (Rojas, Buenos Aires), Os Anos de Chumbo (Sulina), O Sujeito na Tela (Paulus), Arte e Mídia (Zahar), além de inúmeros artigos em revistas especializadas. É também co-autor de Os Anos de Autoritarismo: Televisão e Vídeo (Zahar), Rádios Livres: a Reforma Agrária no Ar (Brasiliense), Made in Brasil: Três Décadas do Vídeo Brasileiro (Itaucultural) e Pantanal: A Reinvenção da Telenovela (EDUC). Foi crítico de fotografia e vídeo na Folha de São Paulo durante o período 1984-86. No terreno das artes, foi curador das exposições Arte e Tecnologia (MAC, São Paulo, 1985), Cinevídeo (MIS, São Paulo, 1992, 1993), A Arte do Vídeo no Brasil (MAM, Rio de Janeiro, 1997), Arte e Tecnologia, A Investigação do Artista, Made in Brasil e Emoção Art.ficial II (Instituto Cultural Itaú, São Paulo, 1997, 2001, 2003, 2004) e El Cuerpo como Interface (FT, Buenos Aires, 2007). Organizou várias mostras de arte eletrônica brasileira e internacional para eventos como Getxoko III (Bilbao), Arco (Madri), ArtoftheAmericas (Albuquerque), BrazilianVideo (Washington), Medi@terra 2000 (Atenas), L.A. Freewaves (Los Angeles), ImageForum (Tóquio), Plataforma 2006 (Puebla), Visionários (América Latina) e Transitio_mx (México). Participou do corpo de jurados de festivais tais como Videobrasil (São Paulo), BHZVideo (Belo Horizonte), Bienarte (Córdoba, Artes Electrónicas (Buenos Aires), Cenart (México) e Ícaro (Guatemala). Dirigiu seis filmes de curta-metragem em 16 e 35 mm e três trabalhos de multimídia em CD-ROM. Recebeu o Prêmio Nacional de Fotografia da FUNARTE, em 1995 e o Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia em 2007.

FICHA TÉCNICA

Ilusão especular: Uma teoria da fotografia
Arlindo machado
13 x 20 x 1,5 Cm
184 páginas
ISBN: 9788584520329
Capa: Brochura
2015
R$ 49,00
Editora GG Brasil

Posted by Patricia Canetti at 12:08 PM

agosto 5, 2015

Coisas sobre outras coisas por Fernando Burjato

Coisas sobre outras coisas

FERNANDO BURJATO

Apresentação do livro Conversas sobre arte (e-book)

Ver arte costuma ser bom; ler sobre arte, nem sempre. Talvez porque muitos textos pareçam, no começo, falar de arte, e acabem tratando de outra coisa. Aí, lemos e assistimos às palavras se distanciando daquilo que a gente vê nos museus, galerias ou ateliês e indo longe, em busca de ancoragem num conceito filosófico, na política, na psicanálise, na sociologia (de botequim ou não) – fora da presença áspera dos objetos. Por isso, certas obras, menos palpáveis ou, vá lá, conceituais, rendem prosas mais coerentes, mais certeiras: textos ficam mais à vontade com outros textos, sem a distância complicada entre palavra e coisa.

Nas entrevistas com artistas, em geral, encontramos mais frescor. Há uma sensação de proximidade com as obras, um pouco da atmosfera de ateliê, diferentemente dos textos teóricos. Talvez porque a dinâmica entre perguntas e respostas, as pausas, a aparência de espontaneidade evidenciem o que há de arbitrário e de incompleto em qualquer conversa (e, talvez, o que há de arbitrário e incompleto nas obras de arte, diferentemente do verniz de certeza das teorias). Os diálogos entre Marcel Duchamp e Pierre Cabanne, entre Francis Bacon e David Sylvester [1] já se tornaram referências inevitáveis para os admiradores da arte do século XX e devem ser, se não as mais profundas, ao menos as mais prazerosas leituras sobre esses criadores tão diversos [2]. Sabor parecido encontramos em publicações que apresentam conversas com Matisse, Jasper Johns, Daniel Buren, Richard Serra, Gerhard Richter [3], assim como os muitos volumes de entrevistas realizadas pelo curador suíço Hans Ulrich Obrist [4].

O problema em se ouvir as vozes dos artistas não está na inabilidade de muitos deles com o verbo, pois isso também pode ser revelador. Está na armadilha de acreditar no que eles dizem, em pensar que nas suas palavras – mais do que em suas obras – encontraremos suas expressões mais profundas. Para muito longe da pintura de Cézanne já se voou, por se levar tanto a sério sua frase sobre o cilindro, a esfera e o cone [5]. Considerar a fala de um pintor sobre seus quadros como realidade é o mesmo que afirmar que a imagem que tenho de mim é mais verdadeira do que a que têm meus alunos, meus amigos ou meu dentista.

O artista certamente não possui o olhar mais crítico sobre seu próprio trabalho – por lhe faltar distância –, mas, melhor do que qualquer outra pessoa, conhece a história de como tudo foi feito, sabe que material foi processado para que a obra existisse [6]. E aqui não me refiro apenas ao que é concreto: tinta cerâmica, metal, máquina fotográfica, mas àquilo que circula pelo ateliê: pensamentos, história, a própria vida.

É à vida, dedicada à arte, entre o ateliê (ou a galeria) e a rua, que as entrevistas realizadas por Juliana Burigo e Dayana Zdebsky de Cordova, publicadas aqui, mais se referem. São conversas com um crítico, um galerista e sete artistas [7] residentes em Curitiba. Há poucas referências a obras específicas, sobre como este ou aquele objeto foram feitos, embora suas presenças sejam percebidas. O ponto de partida da maioria das entrevistas publicadas aqui é, no entanto, falar sobre Arte, e aí se acaba, ainda que meio sem querer, discorrendo sobre outras coisas, estas em minúscula, mas não por isso de menor interesse: o processo de trabalho, o mercado, a universidade, a vida na capital paranaense. As conversas, em sua maioria, começam sobre arte – ou sobre teoria da arte – e terminam sobre artistas [8].

No escurinho
Carina: A gente vive no escurinho aqui.
Juliana: Porque não tem foco, não tem foco de mercado.
Carina: Não tem. A gente está bem, acho Curitiba um ótimo lugar para se produzir arte.
Dayana: Por quê?
Carina: Porque convida a uma introspecção maior.

Um questionamento recorrente nas entrevistas é como ganhar a vida sendo artista plástico em Curitiba. A possibilidade de pagar suas contas somente com a venda de trabalhos é um assunto pouco discutido em público e uma inquietação para muitos artistas, não só curitibanos. Nas respostas, encontramos menções a outras ocupações – na maioria dos casos, o cargo de professor numa universidade pública.

Vive-se de arte na capital paranaense, embora não necessariamente apenas do comércio de obras. Como no resto do Brasil, como em muitos outros lugares. Menos citadas, mas presentes nas conversas, estão as leis municipais de incentivo à cultura – desdobramentos do mercado, como aponta Dayana na entrevista com Geraldo Leão. Desdobramentos que viabilizam, aliás, a existência deste livro.

Os artistas fazem seus trabalhos, e em Curitiba há quem os venda e quem os compre. Na cidade não se fazem sentir, entretanto, as cobranças ou a ansiedade do mercado de arte. Talvez este seja mais um empecilho para que se encare o artista como profissional; isso, contudo, pode favorecer a liberdade e o debate. O escurinho, como chama Carina Weidle, chama à introspecção. Mas introspecção não é o mesmo que isolamento: quem conhece o meio das artes visuais na cidade sabe que, mesmo à meia-luz, muito se discute e se critica, não raramente com ânimos exaltados (como podem ser briguentos, os curitibanos!).

A introspecção, o debate (provavelmente porque se encontra, na universidade, bons artistas como professores) e leis de incentivo certamente contribuem para que se produza arte de qualidade em Curitiba. Talvez tudo isso ocorra pela dificuldade em se ter êxito como artista na cidade – seja lá o que isso queira dizer. Se não temos clareza sobre o lugar da arte, somos convidados a pensar no que ela pode ser, em vez de no que ela é, e assim mantemos a cabeça – e a própria arte – em movimento. Se a figura do artista de sucesso não existe como um modelo a ser alcançado, se isso não é tido como possível, há que se procurar outra coisa para fazer – quem sabe até arte.

NOTAS
[1] CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.
SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naify, 1998.
Há outro livro de entrevistas com o pintor britânico, que também pode ser encontrado em português: MAUBERT, Franck. Conversas com Francis Bacon. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

[2] Como, talvez, o melhor livro sobre o cinema de Hitchcock seja o volume de entrevistas a François Truffaut: TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

[3] Cito aqui alguns livros de entrevistas com artistas, alguns em português e outros disponíveis apenas em inglês. Certamente estou esquecendo ou ignorando outros importantes:
MATISSE, Henri. Escritos e reflexões sobre arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
BUREN, Daniel; DUARTE, Paulo Sergio (ed.). Daniel Buren: textos e entrevistas escolhidos (1967-2000). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2001.
JOHNS, Jasper; VARNEDOE, Kirk (ed.) Writings, sketchbook notes, interviews. Nova York: The Museum of Modern Art, 1996.
SERRA, Richard. Writings/interviews. Chicago: University Of Chicago Press, 1994.
RICHTER, Gerhard. The daily practice of painting. Chicago: The MIT Press, 1995.
Em português, há um livro recente de entrevistas com o artista inglês David Hockney:
GAYFORD, Martin. Uma mensagem maior: conversas com David Hockney. São Paulo: DBA, 2011.
Há também quatro livros / entrevistas publicados, há pouco, com o poeta e crítico Ferreira Gullar e com os artistas Jac Leirner, Jesús Soto, e Carlos Cruz-Diez:
NELSON, Adele. Conversa com Jac Leirner. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
JIMÉNEZ, Ariel. Conversa com Ferreira Gullar. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
JIMÉNEZ, Ariel. Conversa com Jesús Soto. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
JIMÉNEZ, Ariel. Conversa com Carlos Cruz-Diez. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

[4] Obrist realiza entrevistas desde meados dos anos 1990, inspirado pelos diálogos de Duchamp com Pierre Cabanne e de Bacon com David Sylvester: OBRIST, Hans Ulrich. Arte agora!: em 5 entrevistas. São Paulo: Alameda, 2006, p. 111.
Em 2003, começaram a ser apresentadas em livros. No Brasil foram publicados seis volumes, com o título Entrevistas, pela Editora Cobogó. São conversas com artistas e também com importantes personagens de outras áreas do conhecimento. A mesma editora também publicou, em 2013, uma edição apenas com entrevistas que o curador realizou com o artista chinês Ai Weiwei. Ulrich também é autor do livro Uma breve história da curadoria, que, apesar do título, consiste em uma série de entrevistas que realizou com curadores. Publicado originalmente em 2008, ganhou uma edição brasileira em 2010, pela editora BEĨ.
[5] "(...) abordar a natureza através do cilindro, da esfera, do cone, colocando o conjunto em perspectiva, de forma que cada lado de um objeto, de um plano, se dirija para um ponto central". Cézanne, em carta de 15 de abril de 1904 a Émile Bernard, citado em CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 15-16.

[6] Isso tiro de uma entrevista concedida em 1963 pelo pintor norte-americano Jasper Johns a Billy Klüver:
“BK: Quando você terminou uma pintura, você não sabe nada sobre ela?
JJ: Sei mais do que qualquer um. Sei como eu a fiz.”
(In: JOHNS, Jasper. Writings, sketchbook notes, interviews. Nova York: The Museum of Modern Art, 1996. p. 88, traduzido por mim do inglês).

[7] São eles: Artur Freitas, Marco Mello, Eliane Prolik, Geraldo Leão, Rossana Guimarães, Carina Weidle, Fábio Noronha, Cleverson Oliveira e Tony Camargo.

[8] Os dois únicos entrevistados que não são artistas, Marco Mello e Artur Freitas, falam, sobretudo, de teoria, e quase nada sobre suas carreiras e suas motivações. Tony Camargo, entre os artistas, talvez seja o único que mantém a conversa sobre suas opiniões sobre arte, citando eventualmente algum trabalho seu apenas como exemplo; Cleverson Oliveira, embora fale de sua trajetória e de seu trabalho, discorre, sobretudo, sobre o meio e o mercado das artes.

Posted by Patricia Canetti at 10:09 PM