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agosto 30, 2016

Homo Ludens por Ricardo Sardenberg

Homo Ludens

RICARDO SARDENBERG

Belo como o encontro casual entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecção.
Lautréamont

[scroll down for English version]

Este texto deve ser lido como complemento da exposição Homo Ludens realizada na Galeria Luisa Strina, entre os dias 31 de agosto e 5 de novembro de 2016. Digo “complemento”, porque ele é um dos muitos gestos necessários para se chegar ao resultado final da exposição. Na realidade, o texto da exposição é a própria mostra e, por isso, não serve como explicação teórica daquilo que se passa nas salas expositivas. As obras apresentadas são marcos metafóricos e poéticos de visualidade plástica e só podem ser lidos presencialmente durante a visita ao espaço expositivo. Isso, se conseguir de fato realizar a mostra em seu potencial lúdico. Em outras palavras: o conceito da exposição só será alcançado uma vez que ocorra o encontro de todas as obras no espaço em questão.

Assim como em outras mostras que curei (a saber, Noite azul elétrico, Tara por livros, On another scale e Cordão dos mentecaptos*), Homo Ludens parte de uma ideia que, de alguma forma, diz respeito a minha relação com o mundo. Em uma era tão mediada pela tecnologia, parece-me que nos distanciamos cada vez mais do que é essencial e do que nos garante a humanidade, como, por exemplo, o ato de parar para sentir o cheiro do campo molhado, ou mesmo o de observar as espécies de pássaros que vivem em nossas cidades ou passam de visita ao longo do ano. Para esta exposição, minha ideia original foi lidar com o conceito de jogo, e o que me atraiu foi antes o processo de convidar artistas para colaborar do que qualquer definição teórica do tema.

Certo dia, jogando frescobol na praia, dei-me conta de que existem várias dimensões de jogos, pois no frescobol não se joga contra alguém, mas com alguém. O outro, no caso, não é um oponente, e as regras, por sua vez, não são bem definidas. Não existe o lance perfeito – a cortada equivale à bola levantada – e o verdadeiro prazer está em manter a bola no ar, em moto-contínuo. Para usar o jargão curatorial contemporâneo: não existe, neste caso, um recorte, uma estratégia ou um conceito pré-concebido. Pensando o frescobol e a ausência de competição no jogo, cheguei ao entendimento do lúdico, à ideia de brincadeira, que foi o que a princípio me interessou.

Os temas foram fluindo naturalmente: a morte, o universo infantil, os meios de produção capitalista, a guerra, o ilusionismo, a estratégia, a fantasia, a história da arte. Mas, neste caso, nada disso se configura estanque ou pretende apreender chaves de entendimento para a exposição. O diálogo com os artistas e as sugestões poéticas que os trabalhos me trouxeram estão distribuídos no tabuleiro expositivo, para que as relações se deem no convívio, admitindo o embate que é próprio do jogo.

Antes de ser pensada, a exposição deve ser experimentada e contemplada. Se me permitirem a ousadia, sugiro ao visitante que faça com que a experiência anteceda a racionalização. Idealmente, o visitante deve se tornar espectador desse “jogo de frescobol” existente entre os objetos dispostos no espaço, para então descobrir as cartas marcadas no tabuleiro do espaço expositivo.

A ideia original é uma espécie de ímã que atrai para o mesmo contexto todos os trabalhos então apresentados. Uma vez no espaço, uma teia de relações faz com que eles deixem de lado sua autonomia enquanto obras de arte para participarem em conjunto dessa proposição lúdica hic et nunc.
Homo Ludens é um termo que tomei emprestado do livro homônimo do historiador holandês Johan Huizinga. No entanto, a exposição não se revela como uma pesquisa em torno dos conceitos desenvolvidos por Huizinga, mas, antes, como um poema inspirado na proposta original do historiador. Afinal, é próprio do homo ludens jogar dentro de uma estrutura cultural com regras determinadas, ressaltando o caráter lúdico da vida.

O homo ludens volta às cavernas e sugere que o artista contemporâneo seja uma espécie de artista rupestre supermediado. Os nossos gestos, as nossas danças, são tão importante quanto o que pensamos e construímos quando produzimos algo. É bom – e belo – fazer uma pausa para contemplar o fato de que somos todos Homo sapiens, Homo faber e Homo ludens.

* Noite azul elétrico, Mendes Wood DM, 2013; Tara por livros, Galeria Bergamin Gomide, 2014; On another scale, Galleria Continua, San Gimigniano, 2014; Cordão dos mentecaptos, Pivô Arte e Pesquisa, São Paulo, 2016.


Homo Ludens

RICARDO SARDENBERG

As beautiful as the chance meeting on a dissecting table of a sewing machine and an umbrella.
Lautréamont

This text must be read as a complement to the exhibition Homo Ludens, held at Galeria Luisa Strina from August 31st to November 5th, 2016. I say ‘complement’ because it is one among the many gestures required to reach the exhibition’s final result. Actually, the exhibition’s text is the exhibition itself and, for this very reason, it doesn’t work as a theoretical explanation of what goes on the exhibition rooms. The works presented are both metaphorical and poetic tags of plastic visuality, and can only be read in person while visiting the space – considering the exhibition can accomplish its ludic potential. In other words: the exhibition’s concept can only be reached once the encounter of all the works take place in the space at stake.

Just as in other exhibitions curated by me (i.e., Noite azul elétrico, Tara por livros, On another scale, andCordão dos mentecaptos)*, Homo Ludens derives from an idea that somehow concerns my relation with the world. In a time so mediated by technology, it seems to me that we are getting farther and farther from what is essential and what ensures our humanity, such as the act of making a pause and feeling the smell of wet grass or even observing species of birds that live in our cities or just pass by visiting throughout the year. For this exhibition, my original idea was to deal with the concept of game, being attracted rather by the process of inviting artists to collaborate than any other theoretical definition of the theme.

One day, while playing racquetball at the beach, I realized that are several dimensions of games. In this specific one, you don’t play against someone, but rather along with someone. The other, in this case, is not an opponent, and the rules, on their turn, aren’t much defined. There is no such thing as the perfect move – a spike and a dig play equal parts –, and the real pleasure lays on keeping the ball on the air, in perpetual motion. To use the contemporary curatorial jargon: in this instance, there is no preconceived scope, strategy or concept. Thinking about racquetball and the absence of competition in it, I ended up understanding what ludic is and the idea of playing, which interested me in the first place.

The themes then flowed naturally: death, the child universe, the capitalist means of production, war, illusionism, strategy, fantasy, art history. Although, in this case, nothing sets itself steadily nor intends to apprehend keys to understand the exhibition. The dialogue with the artists and the poetic suggestions the works brought me are distributed on the exhibition gameboard so that their relations come up while living together, given that the confrontation is the game itself.

Before being conceived, the exhibition must be experimented and contemplated. If such boldness is tolerated, I suggest the visitor to make an effort so that the experience can precede rationalization. Ideally, the visitor must become a spectator to the ‘racquetball game’ that already exists among the objects positioned on the space, for then figuring out what are the singled out cards on the exhibition’s gameboard.
The original idea is a sort of magnet attracting all the displayed works to the same context. Once in the space, a web of relations makes them waive their autonomy as artworks in order to jointly take part of this ludic proposition hic et nunc.

Homo ludens is a term borrowed from the homonymous book by Dutch historian Johan Huizinga. Yet, the exhibition doesn’t reveal itself as a research ensuing from the concepts developed by him, but rather as a poem inspired by the historian’s original proposition. After all, it is proper to the Homo ludens to play within a cultural structure with determined rules, highlighting the ludic aspect of life.

The Homo ludens goes back to the cave and suggests the contemporary artist as some sort of super-mediated cave painter. Our gestures and dances are so important as what we think and build while producing something. It is good – and beautiful – to make a pause and contemplate the fact that we are all Homo sapiens, Homo faber and Homo ludens.

* Noite azul elétrico [Electric blue night], Mendes Wood DM, 2013; Tara por livros [Book fetish], Galeria Bergamin Gomide, 2014; On another scale, Galleria Continua, San Gimignano, 2014; Cordão dos mentecaptos [Bubbleheads crowd], Pivô Arte e Pesquisa, São Paulo, 2016.

Posted by Patricia Canetti at 4:15 PM

agosto 24, 2016

A Certeza esta IN por Jonathan Colin

A Certeza esta IN

JONATHAN COLIN

A frase “O que fazemos com Incerteza?” recebe os visitantes na entrada para a Galeria Eduardo Fernandes em São Paulo. Mármore esculpido a mão, o estilo de pedra e escrita estão associados com luxo e morte. No salão principal encontra-se uma confortável rede, para que os visitantes possam relaxar, contemplar a questão e assistir o filme “LIA”, uma colaboração entre Fernando Arias e Lia Rodrigues, realizada por Episodio del Sul, um projeto apoiado pelo Instituto Goethe em São Paulo junto a Fundação Más Arte Mas Acción.

A exposição decorre de um dos interesses do artista, destacando-se das pressões de produtividade, a fim de sobreviver no mundo capitalista. Por quase 20 anos Arias passou seu tempo entre Londres, Bogotá e Chocó, uma remota floresta Colombiana banhada pelo Pacífico. Através de sua fundação: Más Arte Más Acción, o artista convidou outros artistas e escritores a vivenciar novas perspectivas sobre os desafios globais através de uma reflexão crítica. Os participantes ficam em um simples abrigo na floresta tropical, projetado pelo artista holandês Joep van Lieshout em 2011.

Quando Arias encontrou a coreógrafa brasileira Lia Rodrigues em 2014 ele a convidou para Chocó. Com o apoio do Instituto Goethe Lia e Sammy Landweer viajaram para lá no ano seguinte. Arias se juntou a ela no final da sua visita e dirigiu o filme LIA. Ao longo de cenas abstratas e desfocadas retiradas da natureza, ecoa a voz de Lia descrevendo seus sentimentos sobre a importância de passar um tempo fora de seu trabalho como coreógrafa em uma das favelas do Rio de Janeiro.

A trilha sonora do artista brasileiro Dudu Tsuda, acompanha a mensagem de Lia sobre encontrar tempo para trazer a “preguiça criativa” para a vida. Na sua perspectiva, vemos como a incerteza é parte do ser humano e temos de aprender a viver com ela.

“Incerteza” é o tema deste ano da Bienal de São Paulo. Referindo-se a incerteza também em sua exposição, que coincide com a Bienal, Arias inclui uma rede para simbolizar a cultura latina passiva que dorme afastando incertezas. Em caso de dúvida, rastejar sob as tampas de cama ou escorregar para a rede. (“If in doubt, crawl under the bed covers or slip into the hammock”).

Logo após a abertura desta exposição, Arias vai passar um mês na Residência Artística VILA SUL do Instituto Goethe, em Salvador, Bahia. Ele aceitou o convite sem saber o que ia fazer lá, além de passar um mês contemplando o que a humanidade deve fazer em relação a uma série de problemas - incluindo toda essa incerteza.

Ao finalizar a residencia artística, Arias voltará a sede da Galeria Eduardo Fernandes, em São Paulo, onde trará uma reflexão e uma intervenção em sua exposição: A Certeza esta IN.

Nessa occasião, ele compartilhará a experiência que foi esse tempo de contemplação e seus pensamentos sobre o que fazer com a incerteza. A Galeria Eduardo Fernandes esta honrada por receber essa exposição importante em DUAS fases (pré- e pòs- residencia artística).

Posted by Patricia Canetti at 6:36 AM

agosto 17, 2016

No meio-fio por Mario Gioia

No meio-fio

MARIO GIOIA

Topofilias, de Claudia Hamerski, agrupa questões muito evidentes sobre as potencialidades do desenho, não visto apenas como a ação do grafite sobre o papel, mas sim também como projeto e ideia, um desdobrar pelo espaço, uma presença de matéria e uma trajetória por meios variados como o tridimensional, o fotográfico, o instalativo e o performático. Também se manifesta em ligações com embates típicos da contemporaneidade, como a necessidade de formar coleções/inventários/arquivos, a escolha deliberada de um tom menor, mais low tech, quase reativo à excessiva virtualização de quase tudo que podemos imaginar, e a centralidade da deriva urbana como prática decisiva e catalisadora de um pensamento visual.

A exposição individual da artista gaúcha no Margs (Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli) pode chamar a atenção do público, inicialmente, pelo apuro técnico empreendido em especial nos desenhos de grande escala. Faz-se necessário, então, explicar mais sobre o processo de Claudia. Por entre locais familiares e próximos de casa e do trabalho, a artista planeja e vivencia rotas, onde caminha com objetivos claros. Equipada com uma máquina fotográfica de boa qualidade, registra vegetações esparsas, plantas de pequeno porte e cantos verdes e úmidos nos quais o passante comum, talvez em relação de solipsismo com seu dispositivo eletrônico próprio, nunca perceba. Em uma ação que lembra street photography, faz o clique fotográfico, em geral abaixada e com agilidade, o recorte verde que se tornará base de outro procedimento.

Desta vez no ateliê, ela amplia a imagem coletada que agora virará uma peça gráfica de certo virtuosismo, em um trabalho demorado e minucioso. No labor do ateliê, será de determinação tíbia a fidelidade estrita do que foi ‘capturado’ pelas lentes do equipamento. Aspectos serão maximizados, detalhes serão ressaltados, haverá tanto adendos quanto dados extirpados, e a experiência por meio de elementos do próprio desenho será enfatizada. Entretanto, o conjunto que sai do ateliê novamente se relaciona com a cidade e o lócus onde será exibido, já que algumas das obras são originárias das cercanias do local expositivo e o título dos desenhos revelará quais são esses logradouros. Assim, a artista constroi elos de natureza mais de site specific, traçando conexões com a cidade, a arquitetura e o lugar da arte.

Em Topofilias, Claudia também apresenta ‘desenhos-objetos’. Um deles é uma espécie de paisagem em que os contornos dos lápis usados nos desenhos, dispostos um ao lado do outro, constituem quase que um skyline metropolitano em miniatura, ressaltando as ferramentas de um trabalho físico e serial. Na outra peça, uma caixa de vidro agrega e reúne, sem muita ordem, as lascas descartadas após a ação do estilete por sobre o lápis. Vistas como um díptico, tem sentidos complementares – a primeira alude a um esforço de construção, enquanto a segunda atesta a potência do vestigial. “O artista do mundo precário considera o meio urbano como um invólucro do qual há que se desprender fragmentos” [1], escreve Bourriaud.

Duas séries hoje apresentadas também convergem para tal leitura. Em Improvisações (2016), uma composição algo musical de pequenos desenhos que se espraiam por uma das paredes é uma organização ritmada de acidentes, uma partitura gráfica que elogia o permeável. Já Notas de Rodapé (2016), ainda mais liliputianas – 7 cm x 5 cm e 5 cm x 7 cm –, não deixam de lembrar os pormenores, o cuidado e um certo pendor obsessivo na produção empreendidos por artistas-viajantes europeus. Eles não se exauriram em registrar, com fascínio, a riqueza verdejante do Novo Mundo, criando um legado ainda a gerar discussões sobre o científico e o exótico, por exemplo.

“Sinto-me mais coletora que colecionadora”, diz Claudia. Pois em seu movimento de extrair, ressignificar e oferecer imagens, em um mundo de circulação maximizada delas, e construindo diariamente um outro olhar sobre o corriqueiro, o rasteiro e o que foge dos fluxos predominantes, a artista enraíza abordagens que cruzam o banal e as tão sedimentadas camadas da história da arte. Paradigmático nesse sentido é a proximidade entre Rua Caldas Júnior, 120 (2016) e desenho, em aquarela e bico de pena, de Albrecht Dürer (1471-1528), datado de 1503. Nessa ponte algo improvável e desencaixada entre Nuremberg e Porto Alegre, Claudia realça a abertura de sua obra para o imaginário, o onírico e o fantástico. Contudo, nestes tempos friccionados, tal âmbito ganha nova roupagem. “O imaginário é uma noção muito complicada, porque está no entrecruzamento dos dois pares. O imaginário não é o irreal, mas a indiscernibilidade entre o real e o irreal. Os dois termos não se correspondem, eles permanecem distintos, mas não cessam de trocar sua distinção” [2], declara Deleuze. Assim, por meio de uma senda algo erodida e que pode mudar a todo instante, Claudia Hamerski exibe sua poética mínima e afetiva, características essenciais nesses dias raivosos e cheios de ansiedade.

Mario Gioia, julho de 2016

1. BOURRIAUD, Nicolas. Radicante. São Paulo, Martins Fontes, 2011, p. 96
2. DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). São Paulo, 34, 2010, p. 89

Mario Gioia (São Paulo, 1974), curador independente, é graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes desde 2011, instituição na qual fez o acompanhamento crítico de Luz Vermelha (2015), de Fabio Flaks, Black Market (2012), de Paulo Almeida, e A Riscar (2011), de Daniela Seixas. É crítico convidado desde 2014 do Programa de Exposições do CCSP (Centro Cultural São Paulo) e fez, na mesma instituição, parte do grupo de críticos do Programa de Fotografia 2012. Em 2015, no CCSP, fez a curadoria de Ter lugar para ser, coletiva com 12 artistas sobre as relações entre arquitetura e artes visuais. Em 2016, coordena pelo sexto ano o projeto Zip'Up, na Zipper Galeria, destinado à exibição de novos artistas e projetos inéditos de curadoria.

Posted by Patricia Canetti at 8:40 PM

agosto 12, 2016

A | pagar por Matias Monteiro

A | pagar

MATIAS MONTEIRO

Zip'Up: Iris Helena - Paraísos Fiscais, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 15/08/2016 a 10/09/2016

[...] o olhar vertiginoso não precisa sequer de uma fissura explícita para se entregar.
Luciana Paiva, Precário, fragilidade e instabilidade na imagem.

Poderia essa dispersão de objetos, tão banais e precários, coadunar em uma inusitada constelação gráfica? Meros papéis (ou apenas suas imagens), ora ancorados sobre a parede, como esses pequenos abismos ordenados, ora emergindo impassíveis do solo, como insólitos objetos tectônicos; seja como for, a densidade não se dissipa: nada parece redimir esses recibos de sua condição de resto/rastro depreciado de uma transação comercial.

O registro da compra como uma adesão silenciosa que se faz inscrever: os tickets, vias do cliente, comprovantes de compra, emitidos pelos sistemas informatizados de débito e crédito bancário, reiteram a dimensão mercantil da experiência cotidiana. Via: dubiedade semântica entre a nota de registro e a visão pretérita/olhar obsoleto... talvez um percurso? À vista: modalidade de fatura imediata ou aquilo que adere ao campo escópico. Vivemos, desde já, esse esgarçamento, condição da memória como paisagem.

Que a artista opte por esse suporte, em sua qualidade de rastro urbano, não causa espanto; Íris Helena o vem explorando há anos em meio a suas investigações acerca das noções de construção, representação, registro e ressignificação da memória urbana como fenômeno afetivo e social. No entanto, aparentemente, aqui ela abdica da intervenção por meio dos processos de impressão. Onde antes havia o interesse pela trama da sobreposição de inscrições (série arquivo morto [2014]), pela imagem da cidade que vai habitar, de bom grado, todo o tipo de suporte provisório da escrita (o post-it, o marcador de página... o cupom) ou de escombros (séries casa pré-fabricada [2016]), agora afigura o fascínio pela supressão, pela estratigrafia da inscrição. Em todo caso, estamos entregues ao enlace da memória: eis nosso próprio bloco mágico, no qual se tramam e enervam as inscrições e no qual todo apagamento é vivenciado como um evento de superfície. Afinal, a efemeridade da inscrição no papel termossensível faz deste esvaecimento condição destes subprodutos; evidências de um regime comercial condicionadas pela fugacidade do registro, tendo a obsolescência por programa e a efemeridade como suposta garantia de segurança/sigilo (e, em última instância, de um ideal metropolitano de anonimato).

O amontoamento destes comprovantes se dá por causas incidentais e seu acúmulo sistemático, por finalidades comprobatórias. Mas aqui, não se trata de nenhum dos dois. O que justifica esse conjunto? Seriam as mesmas motivações misteriosas das coleções, impulsionadas por sua perpétua incompletude? Seria a conduta rigorosa da coleta laboratorial? Seria o ímpeto arquivístico, na constituição de um inusitado acervo de tickets, na qual toda a existência é vertida nessas diminutas ruínas do consumo? Podemos, ainda, impelidos pela inconsequência de nossos devaneios, sonhar em cardumes: pensar nos depósitos salinos das estalactites, na cumplicidade dos grãos de uma duna, na afinidade milenar das rochas irmanadas em uma montanha – enfim, recorrer a toda sorte de geologias de pequenas gramaturas. Afinal, a via do consumidor é também uma ocorrência cromática, com azuis atmosféricos, esmaecidos amarelos matinais e horizontes lilases-crepusculares, como curiosas auroras boreais ortogonais, expressão mecânica que sinaliza senão o fim da bitola.

A fugacidade das informações impressas contrasta com a persistência das informações institucionais/burocráticas, que teimam, ainda, em fazer-se inscrição. A fragilidade do suporte faz com que a simples manipulação ou acondicionamento imprudente produzam-lhe novas texturas, sugiram-lhe novas plasticidades (a dobra, o rasgo, o amassado, as fraturas fibrosas) ... e, assim, por artifício da artista, revelam-se as topografias do descarte, que convertem estes pequenos restos depreciados em sutis eventos poéticos, em acidentes geológicos, paisagens vertiginosas, arquiteturas obtidas pela improvável engenharia dos vincos e dobras. Sobre o rastro do consumo, sonha o geólogo de papéis, para o qual todo relevo é iminência de apagamento ou de obscurecimento completo na noite da palavra (como demonstra um dos objetos da série indícios); todo rumor tectônico insinua-se no confronto inexorável entre a textura do desgaste e a textualidade em estado de desaparição.

O abandono (uma poética não propriamente do detrito, mas da matéria em desamparo) converte-se em um sistema construtivo no qual a textura preenche toda a superfície, ocupa a vacância do texto e sugere-se como uma escritura do incessante. São essas paisagens indiciais (como sugere o título da série), essas arqueologias, mitologias, esses quadrantes, que constituem um universo de reminiscências, no qual a precariedade singela mobiliza-se e faz resistência contra a ávida fúria do bom funcionamento [SOUSA: 2007, p. 12].

Matias Monteiro
Brasília | 2016

COURTOISIE, Rafael. Estado Sólido. In: Jinetes del aire: poesía contemporánea de Latinoamérica y el Caribe. Santiago, Chile: Ed. RIL editores. 2011.
PINHEIRO, Luciana Paiva. Precário: fragilidade e instabilidade na imagem. Brasília: Universidade de Brasília, Instituto de Artes, 2010.
SOUSA, Edson Luiz André. Uma Invenção da Utopia. SP: Lumme Editor. 2007.

Posted by Patricia Canetti at 8:24 PM

agosto 8, 2016

O excesso como política de exposição por Gaudêncio Fidelis

O excesso como política de exposição

GAUDÊNCIO FIDELIS

Horror Vacui Tropical é uma exposição que aborda a manifestação do excesso na ocupação do espaço. O termo horror vacui, que designa “medo do vazio”, é uma característica que aparece na produção artística desde a Antiguidade, na montagem de exposições da década de 1930, na arte islâmica e no design de interiores, notadamente no período vitoriano, encontrando também correspondência em inúmeros aspectos da cultura contemporânea. Ao longo da história da arte, é possível constatar de forma mais evidente o horror vacui no Barroco e seu contraponto no Minimalismo, com diversas nuances entre eles e outras manifestações artísticas. Por outro lado, o horror vacui do Barroco coincide com uma inclinação inclusiva que se contrapõe à construção excludente da estética minimalista e sua estratégia, em que a aparência do espaço aponta para um universo autônomo desligado do mundo exterior e ausente de indivíduos.

O Minimalismo projetou-se assim contra o horror vacui, enfrentando o “medo do vazio” e desenvolvendo uma estética voltada para a subserviência da informação a uma condição reducionista e à estetização dos objetos no espaço. A política da estética minimalista atingiu não só a obra dos artistas, cuja manifestação estilística produziu obras surpreendentes, mas gera igualmente um espaço de exposições excludente, através de um arremedo da ausência, com seus projetos museográficos mínimos, destituídos de excesso e, ao mesmo tempo, grandemente estetizados. Em diversos momentos, tanto a obra de arte quanto o seu conteúdo estético e artístico confundem-se com aquele do espaço, determinado por uma política do vazio e da “limpeza” arquitetônica. É possível encontrar um desdobramento político dessa tendência de desocupação, que se configura como um processo equivalente de exclusão que se reflete em uma tipologia museográfica, expressa através de poucas obras no espaço e, por consequência, de menos artistas representados nessas exposições.

Em uma disfarçada “tecnologia da exposição”, supostamente baseada na excelência técnica e estética da montagem, exposições com uma inclinação minimalista transformam-se, por vezes, em instrumentos excludentes da história da arte. Horror Vacui Tropical é, portanto, uma exposição que tem antipatia pelo vazio museográfico, ou melhor, rejeita o vazio como manifestação estetizante dos mecanismos de display. Além disso, liberta-se da política de escolhas baseada em critérios determinados pela subsequente disposição de obras no espaço. Em outras palavras, trata-se de uma exposição mediada por um desejo de ocupação produtiva daquele espaço, uma vez abandonado o seu caráter estetizante. Retirando suas lições do horror vacui do Barroco, das exposições dadaístas e surrealistas dos anos de 1930, dos estúdios dos artistas e de recentes projetos de exposições, Horror Vacui Tropical procura ensaiar uma perspectiva que não seja euro-americana e mostre-se mais “tropicalizada”, digamos assim, da abordagem do espaço. O informalismo tropicalista da ocupação espacial, com os ensinamentos de Hélio Oiticica, a partir de seus Penetráveis, a abordagem labiríntica, advinda dos ensinamentos das favelas de onde se alimentou sua obra, proporciona lições para que possamos repensar nossa relação com a obra de arte no espaço de exposições.

Nesse sentido, a cultura visual do espaço urbano, com seu excessivo volume de informação, gera inspiração para que trabalhemos sem as limitações da exibição museográfica e os preconceitos da visão academicista da realização de exposições visualmente reducionistas. A exposição inclui obras de períodos diversos da produção desses artistas. Por outro lado, em Horror Vacui Tropical, a disposição das obras incita a aproximação, uma relação erótica dos objetos com o olhar, e uma experiência física da arte com o corpo. Aproveitando-se da arquitetura do espaço do Lab Art 760, em que se realiza a exposição, o projeto curatorial busca promover a consciência da percepção das implicações políticas de exibir as obras fora do território desprotegido do estúdio do artista ou da institucionalização minimalista e asséptica do “cubo branco”.

As obras de Ana Norogrando (1951), incluídas nessa exposição, produzem uma ocupação do espaço através da escultura, com uma manifestação ornamental da superfície em que a tão proclamada dicotomia “cheio/vazio” aparece agora como complementar. O resultado da experiência planar na escultura é, antes de tudo, uma contingência do material, que está sujeito a torções físicas relativamente simplificadas, mas conceitualmente complexas, já que atravessam a história da forma na escultura e a trajetória das superfícies planares. Tendo adquirido parte de seus ensinamentos dos Bichos de Lygia Clark (1920-1988), essas obras em algum momento se contorcem pelas mãos da artista, mas permanecem em um movimento congelado, frustrando a vontade do espectador. O olhar pode atravessá-las com alguns impedimentos, como no caso de Contorsão I (2016), em que uma malha de tecido tenciona o metal e embaralha a visão através de uma camuflagem que, de certo modo, imita a própria trama metálica da escultura. Essa forma faz também uma alusão a uma fita de Möebius cuja topologia consiste em uma superfície infinita dobrada sobre si mesma. A retina também é embaralhada pela grade vibracional de que são feitas, produzindo no olhar um anteparo para que este possa estruturar a forma de uma perspectiva fenomenológica.

Por outro lado, as duas pinturas de Dudi Maia Rosa (1946), incluídas em justaposição com essas obras de Ana Norogrando, cuja forma surge arrancada da fôrma que lhe dá surgimento, apresentam uma superfície densa e fechada, embora suas protuberâncias não permitam que o olhar descanse. O caráter táctil/visual dessas obras, visto que não são feitas para tocar, mas para serem compreendidas pelo olhar, redimensiona o status da pintura, inclusive em termos de escala: elas parecem intimistas, mas, na verdade, dissimulam uma massa pictórica que é imensurável. Seu aspecto barroco é exacerbado pela confluência de uma excessiva densidade material e pelo caráter informe [1], ainda que no final das contas essas pinturas não ilustrem apropriadamente o referido conceito, pois equivalem a uma espécie de falsificação da matéria moldadas em fibra de vidro e pigmento, tendo nascido prontas, em forma e cor. Elas não são pintadas; o gesto é moldado e impresso na superfície a priori. Assim, nessa exposição, as obras de Ana Norogrando e as de Dudi são exibidas em paralelo, a primeira demonstrando a ocupação do espaço pela definição da linearidade e a segunda pela densidade da massa pictórica (dissimulada) na construção da forma.

A ocupação do “vazio”, motivada pelo horror vacui artístico e museográfico do display, é uma operação que requer estratégias capazes de preencher o espaço em todas as suas características. Por essa razão, foi necessário pensar em uma dimensão olfatória e a inclusão da obra Quien limpia a quien/Jabón de ajo (1994-2015), de Oswaldo Maciá (1960), tem o objetivo de chamar a atenção para esse fato. A convivência que temos com o cheiro não pode ser controlada, e o olfato transforma-se assim em um dispositivo de redimensionamento das relações espaciais, especialmente se estamos falando da impregnação do espaço nos “trópicos”. Quien limpia a quien é uma obra que exercita a dimensão política do objeto como forma de chamar a atenção para a mais-valia da limpeza, suas implicações no universo da cultura e uma dimensão de alteridade, na medida em que enfatiza as disparidades em nossa relação com o Outro. Em uma exposição que trata do espaço como ocupação desmesurada, a obra de Maciá reivindica diversos questionamentos, incluindo, mas não se limitando, àquele pertinente à dimensão expansiva dos objetos como dispositivos de reflexão. Embora à primeira vista pareça um objeto inócuo, essa obra problematiza politicamente o espaço ao introduzir questionamentos sobre a política do olfato e seu exercício através dos tempos. A limpeza apresenta inúmeras conotações. Da contaminação física e simbólica à ideologia de imigração tingida muitas vezes em concepções de etnia; do confronto entre a aparência do corpo à sociabilidade e à dimensão público-privada da circulação dos bens de consumo. O cheiro é pervasivo em nossa vida diária, embora largamente ignorado como proposição teórica e reflexiva.

Paralelamente a essa obra de Maciá, foi incluída uma pintura de Britto Velho (1946), Sem título (1985), em que o olfato aparece como uma alusão e à qual o artista Danúbio Gonçalves referiu-se como sendo um “canhão olfativo e auditivo” [2], em um texto que escreveu em 1983. Nessa pintura especificamente, vê-se com clareza o que parece ser um tubo circular saído do corpo da figura, logo acima da boca, ressaltando igualmente a oralidade (o sentido do gosto portanto), além do olfato. A ocupação do espaço pela figura, que se expande solitária, ocupando quase toda a área da pintura, contrasta com as convenções da paisagem, evidente através de uma linha que se encontra ao fundo, dividindo o quadro em céu e terra. Assim, concluímos que a experiência dos sentidos aqui se dá da mesma maneira como no Barroco, entre as relações mundanas e divinas. Como é recorrente em suas pinturas, o olhar também é evidente nessa obra. Três olhos aparecem na cabeça da figura, mas seu nariz pronunciado não deixa dúvidas de que a pintura faz alusão a uma sensibilidade pronunciada para o olfato.

Essa exposição sinaliza para um número de questões relacionadas ao espaço de exposições que encontra uma referência mais conhecida no chamado “cubo branco”. As pinturas de Eduardo Haesbaert (1968), Casa Cubo (2011) e Sem título (2011), referem-se aos problemas daquele espaço e à sua ocupação. Casa Cubo pode ser vista com uma espécie de metáfora relacionada ao espaço que abriga a arte e as relações dos objetos com o seu campo de exposição. A “casa” é equivalente ao abrigo e às relações que luz e sua ausência demandam. Essas pinturas de Haesbaert com seus espaços contrastantes dramatizam as relações entre os objetos e o espaço. O “atravancamento” visual que aparece nessas obras faz com que projetem uma atmosfera sufocante própria do horror vacui. Para a exposição, elas se tornam ainda mais significativas, pois produzem uma mise em abîme que é demonstrada com a representação pictórica dessas duas “galerias” dentro de uma galeria, ou lugares de existência da arte dentro de outro espaço equivalente.

A dimensão diagramática do espaço tem sua demonstração mais contundente nas pinturas de Flávio Morsch (1963), que ocupam a superfície da tela através da cor utilizando-se do dispositivo da grade [3], cuja tradição é exclusivamente moderna. A ocupação produtiva da superfície pictórica é otimizada pelas relações com a dimensão construtiva do quadro, assim como estabelece um parentesco com o caráter neogeométrico e sua dimensão cultural relacionada à experiência transcendental da luz e da cor, aliada a uma disposição psicodélica que a história deixou como legado quando as relações entre a experiência do espaço e as noções de território são retransformadas espacialmente. Há ainda nessas pinturas um certo caráter pop, devido ao uso da cor, embora não estejam implicadas de modo algum com a pop histórica e sua ideologia.

Não por outra razão, é importante salientar a inclusão da obra Totem de Interpretação (1969), de Romanita Disconzi (1940). Realizada no auge do aparecimento da Pop em diversas partes do mundo, a obra de Romanita consiste em um conjunto de formas geométricas realizada com seis cubos, um cilindro e dois paralelogramos. Essas formas são cobertas por imagens impressas em cada uma de suas superfícies, com imagens de telefones, corações, sinais de trânsito, setas, carros e flores. Totem de Interpretação é paradigmático por sua ligação com o espaço da cidade, os meios de comunicação de massa e a visualidade urbana. Ao introduzir uma dimensão participativa, a obra de Romanita faz ainda uma incursão no campo da semiótica e das investigações artísticas no universo interpretativo da obra de arte. A obra demonstra ter, por isso mesmo, um caráter lúdico e atua em uma zona de interatividade que se caracteriza por um jogo de sinais muito peculiar ao universo da cultura e da participação que surgiu com grande força na produção de meados da década de 1960 e início da década de 1970. A ocupação modular do espaço equivale de certa maneira à dimensão da grade modernista, mas sem a ordenação que ela tinha, sendo que os elementos que compõe a formação estrutural do espaço (as partes por assim dizer), apresentam-se agora desordenados pela inclinação da vontade do espectador ou do montador nesse caso.

Uma exposição que trata da ocupação excessiva do espaço não poderia deixar de incluir exemplos de uma visão apocalíptica quando ele é dominado pela figuração e pela representação do descontrole da tecnologia. Assim, os desenhos de Wilson Cavalcante (1950) da década de 1970 incluídos aqui nos possibilitam refletir sobre uma diversidade de tópicos que são pertinentes às discussões dessa exposição. Entre elas, cita-se a inclinação para o surrealismo e o universo pop dos quadrinhos, a ficção científica e a crítica ao regime ditatorial brasileiro – muito apropriada, diga-se de passagem, ao momento histórico que estamos vivendo. Em todos os casos, Cavalcante trata essas diferentes questões por meio de uma ocupação da figura no espaço que mostra as circunvoluções do universo pop, graças a uma abordagem da política da imagem que coincide com o horror vacui e com as mazelas dos trópicos.

Os “livros de pintura” de Frantz, realizados com recortes de forração de pisos de ateliers de artistas cria um dispositivo de leitura e ingressa no terreno interpretativo do objeto de arte. Estes objetos são realizados com resíduos de tinta de pisos de artistas de diversas gerações, cuja obras são de estilos e status institucional diversos. Estas obras de Frantz, como todas desta série, são o resultado de uma relação estabelecida entre o artista e seus pares pintores, em que ele obtém estes resíduos de tinta deixados pelos mesmos em seus estúdios de trabalho. Frantz estende estes tecidos que serviram de forração de piso para o estúdio em um bastidor, transformando-os em pintura. Desta forma, sem a interferência ou pintura propriamente dita, estas obras de Frantz são elas próprias “pintadas” por terceiros e se transformam em uma reminiscência da produção destes artistas que sobre elas trabalharam. Elas convertem-se, assim, em subsidiárias da produção artística dos que pintaram suas obras nesses estúdios e que nós, ao olhar a pintura de Frantz, entendemos como uma intermediação discursiva feita pelo artista sobre o trabalho no estúdio, e sobre a perda da própria identidade autoral. A obra transmuta-se, então, em uma manifestação conceitual dos procedimentos ideológicos da história da pintura, e sua fetichização consolida-se no ambiente místico do atelier, agora transportado para o espaço de exposições. Em seus livros de pintura, Frantz estrutura a informação pictórica em um enquadramento, e produz um dispositivo em que a leitura e a interpretação coexistem em um objeto tradicionalmente dedicado à circulação de informação. A pictorialidade destas obras é assim condensada em um espaço compacto e participativo em que nos confrontamos com o excesso a partir da contaminação entre meios de circulação.

Não por outra razão, incluí aqui uma obra de Ilsa Monteiro (1925), Sem título (1974), de uma série de pinturas que a artista produziu na década de 1970 e que proporciona uma visão onírica do lugar, um complementariedade à mais intimista dos “livros de pinturas”, trazida à tona pela obra Frantz. Repleta de formas circulares, essa pintura introduz na superfície da tela uma série de “buracos” que fazem uma alusão ao mecanismo da visão, já que as superfícies são mediadas pela possibilidade de ver através delas. Dois buracos apontam para um interior negativo, enquanto uma imagem da lua faz contraponto em um movimento ascensional em direção ao espectador. Poder-se-ia pensar um desses “buracos” como refletindo-se na superfície de outra tela, localizada dentro da pintura, inclinada em relação ao plano. Três superfícies (mesa, céu e uma tela) desestabilizam o quadro, sendo importante lembrar que ele historicamente sempre foi considerado uma “janela para um mundo”, a que a pintura faz alusão, através da lua sobre o horizonte aquático que se vê através de uma abertura na superfície da pintura. O fio que desce pela superfície pode ser interpretado como indicação de uma ligação entre o sonho, ficção e realidade. Tal pintura é importante nessa exposição pelo excesso de informação e alusões que apresenta. O próprio horror vacui do pensamento.

[1] Conceito desenvolvido por Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois em sua exposição L’Informe: mode d’emploi, realizada de 22 de maio a 26 de outubro de 1996 no Centre Georges Pompidou. O conceito de informe foi inicialmente introduzido em 1929 por George Bataille (1897-1962) em um artigo com o mesmo título publicado na revista Documents.
[2] Danúbio Gonçalves, Carlos Carrion de Britto Velho: Pinturas e Desenhos, Porto Alegre, Kraft Escritório de Arte, catálogo da exposição, 1983, não paginado. No texto, a expressão utilizada foi “canhões nas guaritas auditivas ou olfativas”.
[3] Ver por exemplo,Rosalind Krauss, “Grids”, publicado em The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths, 11a edição (Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1985), 9-10.

Posted by Patricia Canetti at 1:16 PM

Confluências Poéticas por Luana Hauptman

Confluências Poéticas

LUANA HAUPTMAN

Confluências Poéticas, Sesc Paço da Liberdade - Espaço das Artes, Curitiba, PR - 15/06/2016 a 06/09/2016

A liberdade conquistada ao longo da história da arte por inúmeros artistas levou a pintura por caminhos que hora decretaram seu fim, hora enalteceram sua essência e ampliaram suas possibilidades. Nesse percurso aproximaram-se linguagens distintas: performance, escultura, vídeo, instalação, passaram a coabitar em meio a agentes e elementos, fazendo da pintura um campo ampliado de desenvolvimento artístico. Estas novas abordagens muitas vezes levaram a interpretações apocalípticas; mas mutante, a pintura mostrou-se capaz de alterar forma e conteúdo e ainda assim ser reconhecida como tal.

Camaleônica, sustentou seu valor mesmo frente aos fortes sinais de fragmentação que o mundo da arte viveu. Redefinindo posições, adaptando-se a novos meios e fins, abolida de intenções representativas, a pintura adquiriu nova roupagem por meio de gerações de artistas inquietos e questionadores que ultrapassaram fronteiras, pois, como dizia Baudelaire, “quem ousaria atribuir à arte a função estéril de imitar a natureza?” [1].

Já não mais através de uma janela, já não mais contida em um suporte limitado, mas como um jogo em que o artista nos oferece a permissão de reencontrar o cotidiano transformado poeticamente, instaura-se na pintura um estranhamento e uma ambiguidade que ressignificam o mundo que nos é habitual com o que há de extraordinário na arte e vice-versa, sem que para isso defina-se oposições ou se exija definições por um dos lados. Estabelece-se, mais intensamente a partir da modernidade, um processo dinâmico que revela “na vida ordinária, na metamorfose incessante das coisas exteriores, um movimento rápido que exige do artista idêntica velocidade de execução” [2]. Tal procedimento transmutou a pintura e ainda provoca ecos.

Assim, seja através da dissolução corpórea da obra de Leila Pugnaloni, da fotografia/vídeo/performance, que altera a matéria-prima do exercício de pintor e ainda revela a pintura, mesmo que de forma abrangente, de Tony Camargo ou no jogo de sentidos e visualidades proposto por Tatiana Stropp, as obras apresentadas nesta exposição buscam revelar como a arte ressignifica aquilo que já é conhecido, atribuindo às coisas novas configurações e às imagens, mesmo aquelas impregnadas de cotidiano, novos sentidos. O poder da pintura não está no representar, mas sim no reapresentar, no questionar. Não mais entregue a um cenário apocalíptico a pintura se despe de sua fantasia de objeto fetichizado e dialoga com novos paradigmas estéticos que a permitem ter uma presença mutante de associação a novas linguagens, assumindo mudanças sem perder a identidade.

Luana Hauptman
Técnica de Atividades
Sesc Paço da Liberdade

[1] BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna, 2006, p. 876.
[2] Id. Ibid., p.853.

Posted by Patricia Canetti at 11:56 AM

agosto 3, 2016

Por Que Tremes, Mulher? por Moacir dos Anjos

Por Que Tremes, Mulher?

MOACIR DOS ANJOS

A exposição de Regina Parra não formula discurso que se entrega de pronto, resistindo ao olhar cansado ou ao esquecimento ligeiro. É mais ambiente que ressoa incômodos difusos do que coleção de coisas de significados precisos. Considerando-se isoladamente cada um dos trabalhos expostos, não fica logo evidente o que a moveu para elaborá-los como conjunto. Desde o título interrogativo da mostra – Por Que Tremes, Mulher? – há uma deliberada aposta na imprecisão do que é comunicado, como se apenas através da opacidade da linguagem empregada fosse possível falar claro. É somente quando se passa de um a outro deles que uma teia de sentidos vai sendo tramada em ricochete entre pinturas, desenhos, vídeo, texto e áudio.

Os sons importam aqui tanto quanto as imagens, promovendo operações sinestésicas inadvertidas ou planejadas. A escuta repetida da expressão “sim, senhor”e de outras assemelhadas – isoladas pela artista de seus contextos originais e encadeadas em fragmentada narrativa sonora – evoca situações de assentimento à fala de quem tem o poder de mandar. Obediência que imobiliza e regula corpos, inscrevendo neles, como se fossem naturais, movimentos que expressam concordância com as ordens dadas. Respostas corporais que, de tão automatizadas, parecem ter sido longamente estudadas, como sugerem os desenhos, feitos por Regina Parra, que aparentam pertencer a antigos manuais de ginástica. Em vez, contudo, da variedade de gestos que aqueles continham,o único movimento ensinado nos trabalhos da artista é o da cabeça que repetidamente se move de cima para baixo, em sinal evidente de aquiescência ao que lhe é comandado.

Além de sons que remetem a imagens subtraídas da vista, há pinturas que descrevem esculturas ausentes, em processo contínuo de substituição de referentes imediatos. Há nelas, porém, indicações mais precisas de quem é que ordena e quem apenas obedece, em uma desigual partição de direitos e capacidades. São trabalhos que fixam, em óleo e cera sobre papel, representações de negros, índios e mulheres feitas em metal pintado e em tamanho natural, comumente encontradas nos jardins ou nas casas de fazendas no interior dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.Esculturas que têm origem francesa ou italiana e que são genericamente chamadas de blackamoor, tendo por principal característica apresentarem esses homens e mulheres em situações de subserviência, embora sempre com a aparência dócil de quem não tem vontade. Aparência de quem está resignado ou satisfeito em ser serviçal.

Esses sons e essas imagens apresentados por Regina Parra guardam, portanto, marcas discretas, mas ainda assim loquazes, da violência que rege a história do Brasil – a remota como a recente. Violência que atinge em cheio negros e índios e que tem nas mulheres (inclusive as brancas, que são por isso um pouco negras e índias) um de seus alvos mais frequentes, como sugere a pergunta que dá nome à exposição, sobreposta à imagem embaciada de uma floresta como se fosse a legenda da cena de um filme inexistente. Por Que Tremes, Mulher? é verso de poema de Castro Alves que descreve o temor de uma mulher escravizada de que lhe roubem o filho ainda pequeno para ser vendido. Medo de perda de algo importante que é similar ao sentido por muitas mulheres brasileiras em situações de violência contra elas ou seus filhos.

A mata fechada é retratada de novo, em tamanho maior, em outra pintura, projeção simbólica daquilo que se encontra além do que a vista alcançae que causa medo por ser território não conhecido. O ignorado pode, entretanto, ser também rota de fuga, ainda mais quando é grande a dor sofrida para tão somente manter-sevivo. É esse paradoxo que ancora o vídeo “Capitão do Mato”, nome tomado do pássaro que habita muitas das florestas da América Latina e que no passado ganhou tal alcunha por anunciar, com seu canto agudo, qualquer movimentação estranha na mata, delatando escravos fugitivos que nelase embrenhavam e se escondiam. Em paisagem tão exuberante quanto claustrofóbica, a artista faz confluir canto de pássaro e som saído da boca de homem, em rememoração encenada dessa improvável e mortífera aliança. Um par de pinturas pequenas retrata, por fim, um capitão do mato (o pássaro) inerte sobre o chão: aquele que grita está agora calado e morto. Outros capitães do mato, todavia, ainda insistem em sua empreitada de silenciosa perseguição.

Em última mudança e torção de mídia, Regina Parra escreve e inverte, em neon, frases que anunciam opções de como portar-se diante da dor do outro, há muito enunciadas pelo ensaísta martinicano Frantz Fanon: manter-se aterrorizada ou tornar-se terrível. Não cabe a seu trabalho, porém, induzir tomadas de posição claras. Essa não é responsabilidade dele, cabendo a cada um deixar-se ou não afetar pelo esboço de arqueologia da violência brasileira que a artista apresenta. Isso é tudo o que arte pode oferecer para combater o que é insuportável para muita gente. Se não é suficiente, é já bastante.

Posted by Patricia Canetti at 12:57 PM