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setembro 20, 2014

Adriano Pedrosa entrevista Miquel Barceló

Entrevista realizada em Paris, em 10 de fevereiro de 2014

Miquel Barceló:
Pinakotheke Cultural, Rio de Janeiro, RJ - 24/09/2014 a 09/11/2014
Pinakotheke São Paulo, São Paulo, SP - 29/05/2014 a 12/07/2014

AS PAISAGENS

ADRIANO PEDROSA Como é o processo de construção das pinturas brancas?

MIQUEL BARCELÓ Bem, como se pode ver, cada nova camada apaga, mas também deixa uma transparência. Estes quadros são cada vez mais sintéticos, cada vez há menos coisas, e estão mais apagados.

AP Menos camadas?

MB Há muitas camadas de pintura, tornando-se espesso no centro, tudo acontece por baixo, é quase invisível.

AP É um linho muito grosso para poder ter a trama, não?

MB Para que suporte bem, também. Gosto que seja visto.

AP E é de que material?

MB É pigmento com vinil, um pigmento branco de titânio.

AP É sempre branco de titânio?

MB Algumas vezes utilizo brancos diferentes, um mais para o cinza, o branco de prata ou o de chumbo, que é outro branco. Mas não me agrada muito ir jogando diferentes brancos, uso um branco muito rotundo. Não estou tentando fazer jogos de tons de branco. É simplesmente a luz.

AP Na verdade é bastante escultórico, não é mesmo?

MB É, sim. Sempre considerei a pintura uma realidade física. Então, de repente a pintura se levanta um pouco. Para mim a pintura, a bidimensionalidade, é uma espécie de convenção filosófica. Em qualquer quadro de Mondrian (e eu sempre os olho bem de perto) vejo a força do pincel, um pelo do pincel que ficou ali, o tremor da mão… É disso que eu gosto, e é uma realidade física. Em tempos de realidade virtual, as coisas bidimensionais são projeções na tela.

AP Sim.

MB Mas a pintura, inclusive a de Vermeer (que é considerada mais plana) e a pintura de Malevitch, com o branco sobre branco, tem uma realidade física.

AP Penso que a realidade física é mais forte do que a pictórica, porque é branco, é relevo, há camadas, volume, então é uma realidade muito mais física e, nesse sentido, muito mais escultórica.

MB Sim, mas para mim continua sendo uma forma de pintura.

AP Claro, está aí, é um quadro, o processo está dado.

MB Uma forma de pintura que mostra muito sua realidade física. Para mim não é uma escultura, continua sendo uma pintura.

AP É o famoso relevo, não?

MB É, sim. Todas as minhas obras têm essa matéria exagerada, minhas obras parecem ao mesmo tempo em que a realidade virtual, porque eu preciso que a pintura mostre sua “fisicalidade”.

AP Sua concretude.

MB Sim, porque preciso mostrar que é realmente pintura e que é um acontecimento físico, uma fenomenologia pictórica.

AP Têm títulos?

MB Sim, sempre. Não antes, mas depois têm.

AP Claro.

MB Quando as termino. Veja, este é um quadro muito raro, está em observação. É um tanto estranho. Esta brecha vai se juntando à pintura que vai beneficiar os dois quadros. Está fresco. Ontem à noite estava assim… Uma apaga as outras. É um jogo muito pictórico, de velaturas. É um efeito, uma espécie de engenharia.

AP Quantos dias para este processo?

MB Nunca sei, mas…

AP Talvez semanas?

MB Semanas, sim, e às vezes decola… Há um bom tempo de reflexão, tento fazer algo experimental. Aqui há muitas obras, algumas antigas como estas, começadas há 20 anos.

AP E, às vezes, há outras coisas.

MB Pois é, há outras coisas, há sombra, há algo diferente, às vezes havia outras cores também, paisagens do deserto…

AP Aqui há somente um tipo de branco, de zinco?

MB Sim, sim, e o branco da tela.

AP A cor do linho.

MB O branco da tela sempre funciona. Esses, sim, tinham brancos diferentes, pareciam mais pintados, como uma paisagem de fato, como imagem do deserto.

AP E os títulos?

MB Muitas vezes os títulos eram nomes de lugares. Às vezes, como revisões mais modernas de quadros, e como um por adição e outro por subtração. Há imagens do deserto do Saara, imagens das montanhas do Himalaia, por isso é quase uma brincadeira. Desde o final dos anos 1980, meus quadros têm sido frequentemente brancos, não é a primeira vez. Ontem, eu estava falando com um amigo cineasta sobre como é voltar a pintar outra coisa depois disso, de algo tão formalista, minha natureza não é muito formalista. Sou de fazer coisas muito contraditórias. A contradição é um alimento. Então me pergunto “como vou voltar a pintar depois de coisas assim, de que forma?”… isso também é curioso. É uma questão.

AP Demoram muito para secar?

MB Não mais que alguns dias. Três ou quatro. Depende do clima.

AP Você estava comentando que é como voltar a algo mais formalista e está dentro do campo da abstração, mas também da paisagem.

MB No início eram como marinhas, não como paisagens do mar, mas o mar. Era algo muito abstrato, eu pensava o mar como Mallarmé. Podemos pensar as pinturas como se fossem pinturas. Ou como se fosse um comentário sobre Jasper Johns, Robert Ryman, Cy Twombly. Toda pintura pensa outra pintura. Eu não faço referência a nenhuma, não faço citações de outros artistas. Fiz muito no início da minha carreira na década de 1980 quando fazia bibliotecas, que escrevia os nomes dos livros. Nesses quadros de 1982, 1983, havia muitos livros, muitas referências, porque havia os nomes dos autores, mas há anos não faço deliberadamente referências.

AP Mas isso vem de uma tradição.

MB Vem de uma tradição e gosto muito de Ryman e era muito amigo de Twombly, é claro que há algo aí. De Tàpies, por exemplo, de Malevitch, de Cézanne e de Picasso, que para mim são como santos, apóstolos.

AP E Fontana?

MB Também, muito. Adoro Fontana, sempre gostei, claro que sim. Mas, no início desta obra, pensava que estava pintando marinhas. Também gostava por ironia, porque penso que pintar o mar é um gesto eterno, como pintar um retrato. Sempre pinto retratos. São como gêneros da pintura. E gêneros que parecem sempre acabados, mas que são como a natureza-morta, o retrato e a marinha.

AP De Tàpies, pelo que se interessa?

MB Tàpies era o único artista quando eu era adolescente. Miró estava lá, tínhamos acesso à sua obra, mas Tàpies foi a primeira obra mais radical que eu vi, que evidentemente me colocou em contato com as obras de Beuys. A matéria de Tàpies, seu uso do objeto, os pregos… não aparecem mais em minhas obras, mas durante muito tempo usei muitos objetos. Estabeleci com Tàpies uma relação de amizade, o visitei com frequência e tínhamos espécies de segredos muito interessantes entre dois amigos de outra geração.

AP Nos anos 1970, 1980?

MB Sim, e até o final da sua vida, até pouco tempo eu o visitava com frequência. Éramos muito diferentes. Tàpies lia a minha obra, que era muito figurativa, como algo chocante. Ele me visitou em Maiorca em meu ateliê quando eu voltava da África, em 1988, e foi ótimo. Falamos sobre arte tibetana, sobre arte tântrica… Também fui amigo de Cy Twombly durante muitos anos; conheci-o em Nápoles, em 1984. Com Twombly falei muito sobre pintura. Era interessante que, no momento em que se dizia que a pintura estava morta – algo que se diz com muita frequência –, eu tinha como referência Tàpies, Johns e Twombly.

AP Sim, são pintores que vêm de antes, que desenvolveram sua maturidade antes dessas supostas mortes da pintura.

MB Uma delas, já que morrem com muita frequência!

AP A pintura morre muitas, muitas vezes.

MB Acho que é como Drácula, que morre e ressuscita. Quando Picasso começa em 1907, a pintura já estava morta porque todo mundo dizia que não se podia ir mais longe depois de Cézanne e de Van Gogh. Depois do cubismo, Miró e outros surrealistas disseram “vamos matar a pintura”, muitas vezes se matou a pintura.

AP Ryman é interessante: é outro momento da morte da pintura.

MB Sim. Eu vivia em Nova York e fazia exposição de obras no Leo Castelli, no fi nal dos anos 1980, e meus quadros eram muito figurativos, matéricos. Nesse ínterim, Donald Judd, que olhava meu trabalho porque tinha curiosidade, não compreendia nada da minha pintura, e me perguntava: “Por que você faz isso?”. E eu tentava explicá-lo e era terrível, porque eu aprecio seu trabalho, conheço muito bem sua obra e gosto muito dela, sou um admirador de Judd! De sua obra escultórica, de seu design, inclusive de seus textos teóricos… mas ele não podia entender a minha; isso é terrível e acontece o tempo todo.

AP Pois é, acontece… As pessoas estão tão focadas e enraizadas em seus projetos, suas perspectivas, seus trabalhos…

MB Já Twombly era capaz de entender coisas muito diferentes, era muito aberto, inclusive a coisas que eram muito diferentes de sua sensibilidade. Isso não implica nada negativo para Judd, que foi um grande artista.

AP Claro.

MB Mondrian se aborreceu com Van Doesburg porque usou uma linha diagonal, e não vertical. Parou de falar com ele! Ele era como um monge que não fazia nada mais do que pintar e dançar um pouco, nem sequer considerava a vida sexual.

AP Mas Ryman me parece mais analítico, mais desconstrutivo, mais minimalista.

MB Gosto mais de Ryman quando ele é mais sensual.

AP Com a pincelada…

MB É, quando há um certo prazer. Para mim essa emoção do prazer é importante na pintura, ou seja, é uma pulsão física que é muito próxima do prazer sexual, dessa necessidade. Ontem estava falando isso com um amigo meu, de que uma das coisas que move a pintura não é tanto a reflexão em si, mas essa necessidade física de fazer algo… como dizer, fazer estas coisas de levantar a pintura é algo fisicamente muito parecido com o ato sexual. E depois você analisa e pode inserir no contexto e aplicar focos, o do materialismo histórico, o da psicanálise, ou do que quiser. Mas a princípio é pura pulsão sexual, ou pura pulsão, que é parecida à sexual. Acho a pulsão muito importante nesses quadros. Não sei se existe tanto em Ryman. Existe em Twombly, existe em muitas obras de Jasper Johns, de Rauschenberg. Gosto muito desse movimento entre artes aparentemente contraditórias. Como De Kooning, que não é tão
diferente; parecem diferentes porque o classificamos numa categoria diferente, mas acho que é muito mais parecido. Enfim, alguém sempre se pergunta “Como se escreve a história da arte?”, ou “Que sentido tem o que estou fazendo?”, esta é a pergunta que se faz a cada dia.

AP E você se faz essas perguntas?

MB Com muita frequência, sim.

AP Elas me parecem perguntas mais a posteriori.

MB Sim, mas têm que ser feitas de tempos em tempos. “Isso tudo tem sentido?” Agora estamos vendo esses quadros brancos e faço muitas outras coisas, como por exemplo, cerâmica. Acho que me ajuda a não ficar melancólico. A melancolia é a inimiga.

OS RETRATOS

AP E os retratos?

MB São pinturas feitas com alvejante, que cria branco sobre o preto.

AP E o que houve no dia seguinte dessa pintura, dos retratos? Sente que se transforma e depois nada muda com o passar dos anos? Tem observado algo assim?

MB Aparentemente isso foi uma surpresa. Esse é um retrato do filósofo Jean Luc Nancy, que foi exposto. Faço esta série de retratos sobre diferentes materiais: seda, linho, algodão, veludo… Veja que ponho uma moldura neles, simplesmente com madeira e um pouco de ouro? São tão pretos que o resultado fi cou muito violento…

AP E são sempre verdadeiros retratos de observação, não é mesmo?

MB Sempre. O modelo está sentado aqui, e eu trabalho aqui. Mudo de lugar conforme a luz. O último que estava pintando é o de Pascal Dusapin, um compositor francês.

AP Então muitas vezes há duas sessões.

MB Mas em geral a segunda é sem modelo. Este também é de Pascal Dusapin, mas vou trabalhar um pouco mais nele…

AP Sempre fi ca satisfeito com o resultado?

MB Não, na verdade nunca sei isso. Este é um tipo de veludo que tem outra cor de óxido e o traço que dá é muito diferente. Este é Michel Butor, um escritor francês, e é no algodão, e este é Albert Serra, um cineasta. Esta é Dolores Branco, uma amiga psicanalista. Parece uma índia brasileira.

AP O conjunto dos retratos é incrível.

MB Veja que também há em papelão.

AP E o papelão estava pintado de preto?

MB Originalmente, sim. E, veja, esse é um dos meus preferidos.

AP É lindo mesmo. Quem é?

MB Joan Tarrida, um editor, é pura luz.

AP Em geral você convida as pessoas, ou são pessoas amigas, ou muitas vezes personalidades?

MB Quase ninguém me pede para posar, as pessoas têm medo, sabia? Sempre sou eu quem pergunto. Acho que as pessoas ficam muito assustadas.

AP É uma pinacoteca incrível.

MB Este é Hans Ulrich Obrist, imagino que o conheça bem…

AP Sim, conheço.

MB Dá para ver que é ele, não?

AP Dá, sim.

MB O retrato parece fotográfico, não é que o retrato pictórico se acabou. Esta é minha filha, e este é Hans Ulrich outra vez, em uma espécie de arena de touros.

AP E há outros que são de corpo inteiro, não? E o verso do retrato é incrível.

MB Sim, algumas vezes o virei, porque gostava mais da parte de trás do que da frente. Fiz isso muitas vezes.

AP É extraordinário como a parte de trás é tão interessante…

MB Tudo é involuntário, é que tem ideia de controle e atrás não. Vamos ao ateliê de esculturas.

AS ESCULTURAS

[MB mostra o catálogo da exposição Terra Ignis, de cerâmicas recentes, onde fi guram imagens de seu ateliê de cerâmicas em Maiorca]

MB Estas são cerâmicas feitas com o material. Isso é o que se fabricava neste lugar: azulejos, e que se transformaram nessas coisas. Também são variações dos retratos, sabia? Isso é um azulejo, que é uma alcachofra.

AP É como um grande caldo para decomposição das coisas.

MB Sim, e, para mim, é a metáfora perfeita da pintura.

AP Da vida. Lá você só faz cerâmica, então, mas às vezes escolhe algumas para que sejam feitas em bronze.

MB Muito pouco, eu fiz isso só com umas três ou quatro. As outras são feitas de cerâmica, são muito grandes, como esta que está vendo, que são como cariátides com a cabeça no azulejo. Este é o forno, aqui são aquecidas.

AP Quanto tempo está aqui, em Paris?

MB Fico mais em Maiorca. Venha cá que vou são para o mesmo ofício e ninguém usa mais isso. Esta é para partir, esta é para pedra. Acho que todos os pintores herdam isso, todas as ferramentas.

AP The toolbox [a caixa de ferramentas].

MB Isso. Quando Rimbaud diz que é um século de mãos, os últimos anos são o que dizem ser século digital e agora século virtual, não há mais mãos. Inclusive nas obras de arte é mais difícil ver as mãos, é melhor não se ver como se fosse uma espécie de ente, algo sobre-humano, quem a fabricou, e não uma mão humana.

AP Bem, há as duas coisas, não?

MB Sim.

AP Inclusive os minimalistas...

MB Começa antes, muito antes, na arte acadêmica. Em geral não se podia ver a mão, se escondia até desaparecer. Goya se rebelou contra isso. A arte do século XVIII era uma arte em que você nunca a via. E essas são ferramentas dessa época e não valem nada, no mercado de pulgas você compra por um euro cada. Antes eram compradas para decoração, mas agora não estão mais na moda, então ninguém as quer.

AP Esta é outra?

MB Esta é de jardinagem, eu a fabriquei. Sabia que pinta e despinta além do gesso? Gosto da ideia de pintar e despintar com isso. são para o mesmo ofício e ninguém usa mais isso. Esta é para partir, esta é para pedra. Acho que todos os pintores herdam isso, todas as ferramentas.

AP E aqui nesse lugar você trabalha com gesso?

MB Isso, apenas com gesso e com o soldador, para soldar.

OS CADERNOS

MB Esses são todos meus cadernos de notas de anos.

AP Estão todos catalogados.

MB Sim, sim, tem de todas as épocas. Por exemplo, esses quadros brancos, a referência está neste caderno, superformalista. É uma exceção, a maioria é de cadernos de desenho, este é da África, de 1988, são os primeiros desenhos, das pedras, tudo… estes são do deserto, os caminhos, que é no que esses quadros brancos se transformaram. Há um processo muito direto aí.

AP Tem uma raiz paisagística africana.

MB Pois é, e eu nunca fui um pintor paisagista, mas veja essa luz, essas sombras, o camelo.

AP Isso é no Mali?

MB É sim. Está vendo ali? A mesquita, o horto.

AP E você usa cada caderno por alguns meses?

MB Às vezes alguns são mais rápidos, são anotações muito pequenas disso.

AP Várias anotações.

MB É verdade. Nunca são anotações para um quadro, acho que são obras autônomas, porque nunca faço isso, de usar em anotações. Fiz isso para muitos quadros posteriores, isso das pedras, essa espécie de metafísica.

AP E já publicou algum?

MB Sim, uma vez.

AP Como uma edição fac-símile?

MB Isso mesmo, um fac-símile.

AP Esta é linda.

MB É uma cabeça de uma escultura.

AP Foi feita em pastel?

MB É sanguínea, um lápis marrom. No Museu Picasso, pedi a um artista angolano, Kiluanji Kia Henda, para ser curador de uma sala, a Sala cubista, a das máscaras e das cabeças.

AP Máscaras africanas?

MB Sim, no Museu Picasso há um monte, da coleção do Picasso. Mas minha intenção é fazer uma revisão dessa relação do cubismo com a máscara e a cabeça, e com minhas obras como esta, com as cabeças com azulejo e com as cerâmicas que você viu. Quero ver a relação da arte africana com o cubismo e com o colonialismo porque coincidem, por serem do mesmo período histórico.

AP É uma relação problemática.

MB É, sim. São cabeças cortadas, sem corpo. Estas máscaras tinham corpo, por baixo, com vestidos, com fi bras ou cor, mas as cabeças são como as cabeças cortadas da revolução, ou seja, via-se a máscara, mas não se via o corpo e isso me interessa. E gosto de ter um artista africano como curador, com uma exposição em um museu. Não posso torná-lo curador, pois os museus já têm os seus. O que posso fazer é convidar diferentes pessoas para narrar as diferenças a partir de suas visões.

AP Acabo de organizar um projeto de residências e uma exposição em Amã, na Jordânia, num fundação chamada Darat al Funun, estava lá com Kiluanji. AP Em Angola, Moçambique?

MB Em Angola, Moçambique, exato. Aqui estão todas as cidades por onde passei: suas ruas, Neuro, Segu, Koroca...

AP E você foi a esses lugares sozinho?

MB Fui sozinho, mas depois fiz amigos lá. Olha, aqui você pode ver a sombra, a carga, é como uma espécie de tentativa de analisar os temas que finalmente depois se tornaram os temas da minha obra. Os cortes, as formas africanas, são como uma síntese. Tenho aqui dois textos, escrevo em francês… veja aqui, seco e molhado, o reflexo e a sombra são também como uma definição, um manifesto, “escrevo porque não tenho nada para ler e poderia desenhar, mas já desenhei mais de 3 mil páginas”. Aqui é uma espécie de texto de tudo.

AP Quando está nessas viagens, é mais fácil trabalhar com livros e cadernos?

MB É, sim. Eu escrevo nessas viagens. E tenho aqui outro desenho africano.

AP Este tipo de fi gura, por exemplo, aparece na pintura?

MB Sim, aparece uma representação disso. Mas eu evitava essa espécie de referência à arte africana porque sempre me parecia um gesto colonialista. O que eu tentava era entender a função desses objetos no contexto.

AP Claro, no contexto original.

MB Depois li muito a análise crítica disso que Michel Leiris fez, porque ele estava nas primeiras expedições em Djibuti e era muito crítico em relação a isso.

AP Nos últimos anos, eu tenho pesquisado um pouco disso, mais pelas raízes africanas brasileiras. O Brasil é o segundo maior país africano depois da Nigéria, então para nós não é olhar o outro, mas sim olhar para nós mesmos.

MB É verdade. Na África sempre tem essa coisa do orientalismo. Eu achava que o orientalismo era um pouco igual ao cubismo, mas sem consciência. No Museu Picasso, eles não gostam que se faça isso, mas como tenho carta branca posso fazer o que quiser.

AP Quantos cadernos tem?

MB Uns 100 ou 200, muitos são pequenos e contêm escritos.

AP Dá para fazer vários livros com eles.

MB Espero um dia fazer isso ou expô-los on-line, ou algo do gênero…

AP Nunca fez uma exposição de cadernos?

MB Não, nunca fi z. Mas um dia seria bom fazer.

AP Tem algo do Brasil?

MB Teria algo, sim, preciso procurar…

AP Esteve no Brasil para a exposição da Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2003 e na Bienal de São Paulo em 1981.

MB E desenhei, sim, sempre desenho. Fui a muitas festas no Brasil também. AP [Risos.]

MB Este é um livro de que me lembro que nessa viagem eu só trabalhava nele… este é o mapa, eu moro aqui. Fiz esta mancha e perguntava aos mais velhos: “Se estamos aqui, onde fi ca…?”. E ia dizendo os nomes para eles.

AP Como um mapa orgânico.

MB Exatamente. E não foi tão ruim; depois olhei um mapa de verdade – Koro é quase fronteira com Burkina Faso, Duenza é quase o início do país Dogon e Dandiagara, e esses são pontos mais distantes, e eu estava em cada um desses povoados. É como um estudo sociológico, porque ali é tudoacima, abaixo, os lugares de mercado, de reunião… nessas escadas, este é o povoado, as pessoas subindo e descendo, os campos de divisões…

AP E esses cadernos, você compra ou são feitos especialmente para isso?

MB Encomendei a um encadernador, porque precisavam ser muito resistentes para abrigar todo esse trabalho.

AP E você tem todos eles? Não há outros em coleções de outras pessoas?

MB Eu tenho todos. Nunca vendi, nem mesmo uma página, nunca arranco as páginas.

AP E desde quando faz isso?

MB Desde sempre, minha mãe já guardava meus cadernos, muitos com escritos…

AP Desde os anos 1970?

MB Sim, tenho desde 1972. Depois tenho alguns com buracos de cupins. Aqui em cima tenho um. Repare que é puramente material, o inseto, com as moscas, a matéria… É uma cabeça cheia de moscas. E aqui há algumas mulheres socando fumo, está nesse azul cobalto tão especial. Aqui é no deserto e isso é a parte de dentro do Goudas, e parte da carroça está em prata. Há muitas praias no deserto. Isso já aparece nos quadros.

AP Este é muito especial!

MB Fazem isso para pôr os animais. E esse é um carro cheio de gente. É um estudo sobre o deserto, é um estudo sobre a arquitetura, esses são os dias de quando o fi z, 1992-1993.

AP Seria ótimo fazer um fac-símile deste.

MB Sim, seria ótimo fazermos um fac-símile com a matéria. Acho que sim, mas depois será preciso acrescentar a matéria, que é um trabalho manual. Mas gostaria de fazer um fac-símile que não custasse uma fortuna, porque antes os fac-símiles custavam caro. Há tantos que é difícil encontrá-los. Todos esses são da África, mas não estou encontrando o que tem os buracos. Olha como está todo comido pelos cupins. Tenho muitas obras que fiz assim, ainda continuo fazendo algumas assim. Porque é algo paralelo ao que faço. Este seria muito bom conseguir fazer um fac-símile. Fizemos uma prova, mas ficou muito frágil. Você vê que tem essa originalidade, que não é um corte, mas neste pequeno milímetro há muitos níveis. Mas acho que um dia seria bom fazer em fac-símile, desde que não custasse uma fortuna.

AP Então ainda não fez nenhum em fac-símile?

MB Não. No Museu Picasso iremos expor cadernos, mas, claro, em vitrines, ou talvez se conseguirmos uma máquina que possa passar as páginas, mas não em fac-símiles. Há uma máquina que faz isso: o livro está na vitrine e dentro de cada página há uma espécie de vareta quase invisível que vai passando as páginas.

AP Como um autômato?

MB É, um autômato.

AP Um pouco estranho, não?

MB É invisível, você só vê o livro e uma vareta quase invisível que passa as páginas. Eu já vi e você poderá ver também, no Museu Picasso. Mas agora os museus nunca têm dinheiro. Essas aqui também são cabeças e são como gerações, como uma árvore genealógica de cabeças, de buracos.

Posted by Patricia Canetti at 1:15 PM