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setembro 14, 2011

Arquivo e Memória do Presente - mesa relatada por Raisa Christina

Encontro Sul-americano – Inventando o lugar no CCBNB, Fortaleza
Arquivo e Memória do Presente

Relato realizado por Raisa Christina em 11 de agosto de 2011

Arquivo e Memória do Presente
2ª Mesa Encontro Sul-americano – Inventando o lugar

Em vez de lidar com a memória enquanto mero arquivo nostálgico, como fazê-la atuar no presente de forma vigorosa?1 Essa era talvez a principal questão que motivou a segunda mesa do encontro. O artista, professor e curador Solon Ribeiro fez uma breve introdução, discutindo a relação da arte contemporânea com o arquivo.

Ainda que trabalhando com imagens de arquivo e constantemente dialogando com a memória do cinema, Solon nem de longe considera suas ações pelo viés do arquivista e do colecionador, ou mesmo do conservador e do restaurador. Para ele, os artistas contemporâneos conseguem lidar com a memória de maneira a dar-lhe vida, diferentemente, por exemplo, de alguns antropólogos e sociólogos que muitas vezes a veem como algo estanque, embalsamado, morto. Numa postura de provocador, ele afirma que, se o natural da vida é o nascimento, o desenvolvimento e a morte, então a conservação e o restauro soam antinaturais.

Para compor a mesa, ele apresenta os três convidados: María Fernanda Cartagena (Equador), Newton Goto (Brasil) e Lia Colombino (Paraguai).

María Fernanda Cartagena

A historiadora de arte, curadora e editora da revista LatinArt.com investiga representações da diferença nas artes visuais na América Latina, relações entre arte e política e propostas pedagógicas experimentais no âmbito arte, política e sociedade. É curadora, desde 2009, da residência artística Franja Arte-Comunidad2 , realizada no litoral equatoriano.

A partir de sua experiência com a residência artística Franja, María Fernanda discute a definição de território e as práticas colaborativas por parte de artistas contemporâneos no meio social. Atualmente, percebe-se a existência de uma série de iniciativas artísticas de caráter imersivo em pequenos grupos e comunidades. Tais propostas encontram-se muitas vezes ligadas a movimentos ativistas e dificilmente se inserem no sistema oficial de arte. De acordo com Maria Fernanda, essas propostas têm sua pertinência e seu valor na experiência dialógica e crítica que promovem com as comunidades.

Com a realização da residência em 2009, num povoado em Puerto del Morro, o programa Franja atentou para questionamentos relativos à recuperação da memória da comunidade. Essas questões foram sendo incorporadas com o objetivo de estimular as ações promovidas nas comunidades para uma reflexão crítica do modo de pensar e conceber táticas de documentação e arquivo.

Franja Arte-Comunidad é um programa de residência para artistas em contextos comunitários da costa equatoriana, através do qual os artistas concebem projetos que envolvem os moradores locais. Tais projetos devem levar em conta o compromisso do intercâmbio e a reflexão sobre questões de poder, identidade e diferença.

Maria Fernanda conta que, logo nas primeiras visitas que fez a Puerto del Morro, tornaram-se visíveis tensões e falta de comunicação entre grupos da comunidade. Esse clima de tensão, dentre exclusões e complexas relações de poder, remontavam ao período colonial, persistiam e atualizavam-se de diversas formas. Ao ouvir depoimentos de pessoas mais velhas do lugar, ela começou a se dar conta da origem dos conflitos existentes, que se tratava de uma memória omitida pela História oficial.

Após coletar vários relatos, ela soube da vinda de um poderoso industrial a Puerto del Morro, no início da década de oitenta, que se converteu num trauma para o povo da região. O empresário se apropriou de grandes extensões de terra, historicamente ocupadas por famílias inteiras, para a construção de piscinas próprias à carcinicultura. Ele favoreceu, assim, um sistema de privatizações e individualismo, em detrimento do bem coletivo e comunitário. Nessa época, ironicamente o Equador torna-se um dos maiores exportadores de camarão do mundo, contando com forte impulso da política neoliberal.

Baseados nessa história e tendo em vista o interesse pela escuta e pelo diálogo intercultural, os artistas residentes desenvolveram diferentes projetos com a comunidade, tais como:

• Uma plataforma de gestão e produção de rádio e música experimental, conhecida como Ondas Porteñas, através da qual se difundiu o trabalho da cooperativa, a discussão de problemas da comunidade, os talentos artísticos locais, os saberes e os ofícios dos moradores, fortalecendo a diversidade social e a multiplicidade de micropolíticas;
• Propostas de cartografia de zonas de conflito a fim de olhar o passado, reconhecer o presente e imaginar o futuro, por meio do trabalho em equipe, da promoção de redes sociais, da observação do território natural e da valorização de ferramentas artísticas para a produção de conhecimento alternativo aos dominantes;
• Desenvolvimento, pelo viés da dança contemporânea, de coreografias que dialogam com uma tradicional dança da comunidade de raízes andinas, em busca de ativar as memórias do corpo, incentivando meninas e adolescentes a criarem movimentos a partir de ritmos do seu entorno social e natural;
• Criação de um grupo feminino de bordado, em que cada participante é incentivada a escrever um pouco sobre sua vida e depois bordar numa tela, na tentativa de gerar um tecido social e um espaço para mulheres voltado à conversa, à criatividade, à intuição e à coleta de histórias mínimas.

Segundo Maria Fernanda, foi possível constatar, em meio a todas essas experiências, a estigmatização de uma cultura popular e ancestral por parte de pontos de vista hegemônicos ocidentais e neoliberais. Os saberes nativos, entendidos como entraves para as promessas de desenvolvimento econômico, foram, na verdade, marginalizados pelo discurso modernizador e progressista.

Ela lança as perguntas: em que medida o trabalho em contextos sociais está sendo promovido enquanto lugar alternativo para a arte? Essas experiências contribuem basicamente para nutrir a trajetória dos artistas na dinâmica social da arte contemporânea? Como medimos o benefício desse trabalho nas comunidades? Para a curadora, é preciso considerar a complexidade dessas questões e pensar nas relações de poder, necessidades, mediações e interesses compartilhados entre os grupos, levando em conta que idealizar a arte é tão perigoso quanto idealizar a comunidade.

A residência acionou a memória social daquele povo e trouxe também muitas dúvidas sobre a documentação de experiências artísticas e a constituição de arquivo, seus usos e apropriações. Amparada no pensamento do teórico de arte russo Boris Groys, Maria Fernanda acredita que a documentação da arte interessa na medida em que nos faz recordar, ainda que sempre parcialmente, os fatos artísticos que já se passaram, sabendo que não se trata da presentificação do sucesso do passado ou mesmo de uma obra vindoura, mas sim da única referência possível de uma obra que não poderia ser representada de outro modo. Para Boris, em condições da era biopolítica atual, a documentação poderia assumir o papel de traduzir de maneira sensível a relação arte e vida.

No caso da documentação dos projetos realizados durante as residências, havia uma fotógrafa e um videomaker responsáveis por registrar as atividades. Contudo, segundo Maria Fernanda, o tema do registro não foi, de fato, aprofundado pelos artistas e a presença das câmeras, em geral, considerou-se neutra. A predominância do diálogo intercultural chamou atenção para se pensar em outras formas de registro além da imagem, talvez em texto ou som. Para a curadora, o artista que vê importância na documentação de suas oficinas normalmente se esforça por fazê-lo de forma crítica, tendo consciência do lugar estético e político que o registro ocupa na contemporaneidade.

Se a arte comunitária engendra processos coletivos e colaborativos, a sua documentação tem que levar em conta essas relações, considerando a realização e o uso desse material também por parte da comunidade. Tendo em vista os registros inéditos de conflitos de terra, depoimentos de formas de vida, sabedorias ancestrais, mitos, lendas, desejos e utopias, deve-se pensar na importância desse arquivo como forma de resistência para promover trocas culturais que não aconteçam apenas no sentido países hegemônicos-periferias, mas que também invertam essa lógica e contaminem a cultura de grupos dominantes, além de ativarem entre as próprias regiões periféricas essas permutas.

Newton Goto

O artista, pesquisador, curador, produtor e ativista cultural tem realizado, através da epa! – expansão pública de artistas (entidade que coordena há mais de dez anos), diversos projetos nas áreas de curadoria, pesquisa e produção, como encontrosCarasgráficos (2002), Galerias Subterrâneas (desde 2008) e Circuitos Compartilhados3 (desde 2000). Sobre esse último projeto, Newton concentra sua fala.

Com base em sua própria pesquisa ligada à autogestão de grupos de artista e ao circuito que envolve a arte dentro e fora das instituições, no cenário contemporâneo brasileiro da década de setenta aos anos 2000, Newton vem coletando e organizando um grande acervo de vídeos e filmes. Em 2005, ele passa a exibir esse material pelo país, dando início aos Circuitos em Vídeo.

O acervo está relacionado a ações de coletivos de artistas e grupos de ativismo cultural, assim como a performances, intervenções urbanas e práticas colaborativas em arte – todas essas ações que têm em comum a característica de serem sempre propostas e mediadas pelos próprios artistas, o que torna possível o surgimento de novos circuitos alternativos aos de um sistema mais oficial de arte.

O foco no coletivo de artistas e no circuito foi surgindo e ganhando força nas pesquisas de Newton, dentre outros fatores, tanto pela leitura do livro de Cristina Freire sobre o MAC da USP4 – no que diz respeito principalmente à arte postal e ao vídeo no Brasil -, quanto pelo encontro com o artista multimídia Paulo Bruscky, em 2001.

Bruscky lhe apresentou sua filmografia (que tem início no final dos anos setenta), seu vasto arquivo referente ao surgimento do vídeo nos Estados Unidos e à produção do grupo Fluxus. A partir do contato com os registros em filme e vídeo das ações de Bruscky, Newton foi se dando conta da existência de uma cena do Brasil, para além das regiões sul e sudeste, até então pouco conhecidas para ele. Nessa época, o pesquisador também tomou conhecimento de outras iniciativas, como às do Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção, ONG bastante atuante em Fortaleza.

Em 2008, após conseguir financiamento do IPHAN, através do Edital de Arte e Patrimônio voltado à arte contemporânea, Newton pôde expandir na prática a idéia de circuito e difusão. Ele atualizou e copiou seu acervo para compartilhá-lo com pesquisadores, centros de arte, instituições culturais, bibliotecas, universidades e museus. Foram produzidas 150 coleções portáteis em formato de pequenas bolsas, como espécies de arquivo ambulante. Hoje a coleção é muito utilizada como material didático nas universidades.

Esse acervo complexo e heterogêneo, além de apresentar obras raras e de singular importância, permite instaurar muitos campos de diálogo entre diferentes períodos na arte brasileira, como as relações entre grupos de artista nas décadas de setenta e oitenta e a retomada desses coletivos em meados dos anos noventa até hoje.

No debate, uma temática que se destacou no discurso de Newton foi relativa às licenças livres e à pirataria. Foi citada, por exemplo, a ação do coletivo Filé de Peixe, que comercializa, desde 2009, trabalhos em videoarte sem as devidas permissões. Para Solon, o mediador da mesa, a iniciativa do coletivo é bacana, pois leva muitas obras a circularem e ganharem uma certa popularidade, sem fazer o artista passar por aqueles trâmites chatos da instituição. Além disso, a prática do “piratão”, com sua estética de garagem, daria um frescor interessante às obras. Afinal, como o artista que trabalha com vídeo vai realmente divulgar sua produção? Não se deve contar somente com os festivais, que, apesar de já existirem em quantidade razoável no Brasil, ainda têm um público demasiado restrito.

Por outro lado, segundo Newton, os artistas devem se preocupar em criar licenças para suas obras, no intuito de fazê-las circular mais e livremente, tendo em vista a enorme difusão de conteúdos estrangeiros provenientes, em sua maioria, dos Estados Unidos e da Europa. Para ele, a pirataria surge porque há restrições e, portanto, o artista precisa pensar com generosidade em seu trabalho. Um vídeo que tem licença livre, por exemplo, não poderia ser comercializado. Newton lembra a importância de se aprofundar a discussão sobre direitos autorais e de se incorporar a criação de licenças livres à prática cultural no país.

Lia Colombino

É natural de Assunção, Paraguai. Com formação em museologia, ela dirige o Museo de Arte Indígena do Centro de Artes Visuales/Museo del Barro. Pesquisa episódios chave de arte crítica no Paraguai, no período de 1950 até hoje, através da Red Conceptualismos del Sur, da qual é membro. É escritora e cofundadora do coletivo Ediciones de la Ura5 , pelo qual ministra a oficina de escrita ABRAPALABRA. Coordena o Seminário Espacio/Crítica e o projeto Desalmidonar los párpados – Rescate del archivo de Cira Moscarda.

Lia conta que, certa vez, em meio à elaboração de um trabalho, uma senhora, meio que por acaso, apresentou-lhe um arquivo particular. Esse arquivo, sobre o qual ela não tinha muitas expectativas, chegou-lhe de maneira tão forte que simplesmente a atravessou e o fez não só fisicamente.

Refletindo sobre esse momento, a pesquisadora cita William Faulkner: “El pasado no ha muerto, de hecho todavía no hay pasado”6 . Lia abre parênteses e diz que, com base nessa frase, desenvolveu algumas questões da mesa, cuja descrição traz palavras que, segundo ela, são muito conflituosas: memória e arquivo.

Uma concepção de memória é constantemente associada a processos políticos de “recuperação de certas memórias”, o que implicaria encará-la não enquanto realidade, mas como uma certa sutura da realidade.

Essa idéia de memória não lhe interessa, pois ela prefere pensá-la como algo possível de se conhecer, de se identificar, sobre o qual há evidências em que se pode confiar. E quanto à noção de arquivo, a pesquisadora se refere primeiramente a uma parte mais chata que consiste em guardar papéis, conservá-los, limpá-los etc. Ela gosta de entender o arquivo aproximando-o de um testemunho ou um memorial dotado de casa, de residência, como se fosse um amigo a quem se pode fazer uma visita. Por isso, Lia resolveu trazer um pouco a experiência do projeto que realiza atualmente com o arquivo pessoal mencionado no início de sua fala, que, segundo ela, poderia facilmente provocar um sentimento de nostalgia ou mesmo de fetiche.

Quando Lia se deu conta do material que tinha em mãos, pediu permissão à senhora que o guardava até o momento para fazer um trabalho com o mesmo. Lia queria dar-lhe domicílio, torná-lo público e, de algum modo, devolver-lhe um estatuto que ele nunca teve.

O material se tratava de diversos textos, desenhos, cartas e fotografias. Pertencia originalmente a uma professora de arte que atuou no Paraguai como ministrante de oficinas desde os anos cinquenta aos anos oitenta. A mulher que possuía o arquivo e que o havia apresentado a Lia fora aluna dessa professora, que se chamava Cira Moscardo. A aluna, que participava frequentemente das oficinas de Cira, chegou a comentar com Lia que encontrou todo aquele material reunido em pastas dentro de um guarda-roupa da casa da professora, após sua morte. A mãe de Cira, que pouco parecia se importar com os pertences da filha, deu-lhe as pastas. Ao ler o material, a aluna percebeu que eram, na verdade, dois arquivos: um pertencente a Cira e outro, a Alfredo Sepe, também seu ex-aluno durante a década de sessenta.

Em meio àquelas folhas, havia um livrinho intitulado “Versos de un Hippie”, escrito por Alfredo e publicado por Cira. Os poemas impressionam Lia, que lê o prólogo do livro: “Cuando tenia un año de edad/ Construí una escalera de hielo triturado/ Para subir al ataúd de mi abuelo/ Desde ese momento, el tiempo va/ Almidonándome los párpados”7 . Havia também inúmeras correspondências entre os dois, referentes à época em que Alfredo foi ao Uruguai. Lia acha importante narrar brevemente um pedacinho da história de ambos, para que o público possa compreender melhor as subjetividades presentes no arquivo.

Cira nascera com uma doença que, dentre outras coisas, impediu-lhe de crescer normalmente. Ela tinha a aparência um tanto esquisita e uma perna mais curta que a outra. O espaço onde realizava suas oficinas era considerado atípico, pois privilegiava a liberdade e a diversidade. Já Alfredo era um jovem gay, cuja família pertencia à alta burguesia. Visto como estranho pela família, ele foi enviado a Montevidéu para iniciar um tratamento psiquiátrico. É desse período que datam a maior parte das cartas trocadas entre Cira e Alfredo, que termina por suicidar-se em 1968. Lia salienta que os homossexuais, no período da ditadura no Paraguai, eram extremamente perseguidos.

O projeto Desalmidonar los párpados – Rescate del archivo de Cira Moscarda, nascido do encontro de Lia com esse precioso arquivo, tem um título que faz referência à expressão “almidonándome los párpados”, utilizada por Alfredo no prólogo de seu livro. Para a pesquisadora, a idéia do projeto seria justamente o contrário: desalmidonar los párpados, no sentido de tornar mais leve e amolecer as pálpebras, os olhos. Desalmidonar também como estratégia de leitura de arquivo, como dispositivo ativador de questões que desestabilizem a História tal como a conhecemos e que sugiram novas formas de olhar o presente.

O desejo de Lia era acariciar o arquivo, cuidar bem dele, entregar-lhe uma casinha, colocá-lo sob domínio público e, além de restituir a memória daqueles que estão diretamente envolvidos, descobrir todas as pequenas histórias que permeiam as mais visíveis. Ela ainda afirma que os arquivos de Cira e de Alfredo não dizem respeito apenas à ditadura militar, mas também à diversidade sexual, ao amor, à repressão, à amizade, ao castigo, às concepções de loucura.

Umas das consequências do projeto foi a recente produção do documentário homônimo “Desalmidonar los párpados”8 , para o qual várias pessoas citadas nas cartas de Cira e Alfredo foram entrevistadas. O filme explora tanto o trabalho cuidadoso de restauro do arquivo quanto os poemas de Alfredo e as canções que os amigos ouviam na época, para a composição da trilha sonora. Lia conclui dizendo que, nesse projeto, o arquivo não foi o lugar da ruína do passado, da coisa perdida. Ele, na verdade, tornou-se uma grande festa, cheia de alegria, mesmo que essa alegria tenha se dado a partir da reconstrução de fragmentos.

A história de Cira e Alfredo é, sem dúvida, comovente. Entretanto, após ter sido exibida uma pequena parte do filme, percebe-se o quanto é delicado estruturar uma proposta de documentário para um arquivo. Tratando-se de duas personalidades, de certo modo, transgressoras de sua época, como tornar esse aspecto presente no documentário em termos de linguagem audiovisual? Imagina-se que deve haver um esforço em privilegiar, na construção de uma obra com base nesse arquivo, toda a carga poética e libertadora a ele associada. Então, por que trabalhar os depoimentos utilizando um formato tão marcadamente jornalístico? Já se sabe bem que não é o simples fato de ter acesso a um arquivo interessante, coletar algumas de suas referências e organizá-las de maneira convencional que fará com que a produção de uma obra a partir dele se torne igualmente interessante. Espera-se que não seja o caso de Desalmidonar los párpados.

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Uma referência fundamental na elaboração dessa questão, assim como para a discussão dos temas da mesa é o texto “Furor de Arquivo”, de Suely Rolnik, disponível aqui.


www.soloconnaturaecuador.org/index.html


www.circuitoscompartilhados.org


FREIRE. Cristina. Poéticas Do Processo: Arte Conceitual no Museu. São Paulo: Editora Iluminuras/ Universidade de São Paulo,1999


Coletivo que começou com a proposta de uma editora, mas logo se abriu a outros campos de experimentação e tornou-se um grupo transdiciplinar, reunindo poetas, músicos e artistas plásticos.


O passado não morreu, de fato ainda não passou.


Quando tinha um ano de idade/ Construí uma escada de gelo triturado/ Para subir ao ataúde do meu avô/ Desde esse momento, o tempo foi/ engomando-me as pálpebras.


Um trecho do filme está disponível no endereço: http://vimeo.com/25889249

Posted by Gilberto Vieira at 6:34 PM