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julho 2, 2004
Museu submerso

Obra de Ricardo Ribenboim mostra novas formas de pensar e executar arte
JULIANA MONACHESI
Levando ao limite a discussão do "habitat natural" da arte, o trabalho de Ricardo Ribenboim na exposição hiPer é uma crítica contundente à situação fossilizada da obra de arte dentro do espaço museológico. Em uma estratégia de fazer do mundo novamente o habitat da arte, o artista mergulhou uma de suas conhecidas esculturas de madeira -articuladas de modo a conferir movimento à peça- dentro da lagoa da Conceição, em Florianópolis. Ao longo de 18 meses, a peça foi incorporada ao novo habitat, absorvendo elementos faunísticos e configurando-se como um recife artificial em potência.
Seu futuro foi, entretanto, interrompido para que a obra pudesse ser exibida em Porto Alegre. Em meio a caixas de transporte de obras e de aparelhagens, muito semelhantes entre si, destacava-se durante a montagem um estranho recipiente cinza fechado com uma tampa que parecia uma escotilha e trazia afixado o aviso: "SÓ ABRIR NA PRESENÇA DO ARTISTA". O Bicho LC2 foi dali para um aquário, cheio com água da lagoa da Conceição, e os crustáceos, moluscos, tunicados, anelídeos e briozoários que a escultura hospeda foram logo alimentados com uma ração flutuante ("ovos sem casca de artemia", segundo a embalagem).
O Bicho LC2 é um de vários objetos de Ribenboim que hoje vivem submersos em Florianópolis. "Minha intenção era tirar o trabalho da situação de obra acabada, de idéia fossilizada", conta o artista. O trabalho já tinha tido uma circulação em espaços de cubo branco, como o PS1 (MoMA, NY, 2001-2) e a galeria Nara Roesler (1999), mas havia muito tempo que o artista queria radicalizar sua pesquisa acerca da mudança da natureza da matéria. Com a ajuda de biólogos marinhos, entre eles seu filho, o artista realizou o monitoramento e registro da peça no fundo da lagoa durante 18 meses. "É um espaço não-visto pelo espectador, que por meio do vídeo pôde ser também deslocado para a exposição."
Os outros bichos vão permanecer na lagoa, "pertencem a este espaço", mas o LC2, retirado de lá para que se pudesse mostrar o resultado do trabalho do ponto de vista plástico (das transformações que sofreu) e videográfico (trechos do monitoramento são projetados em uma placa colocada sobre o aquário) ao mesmo tempo, vai passar por um processo de plasticação (espécie de mumificação, que pereniza o material): "um obsoletismo planejado", nas palavras de Ribenboim.
O artista experimentou fundir a peça em alumínio e colocar no fundo da lagoa essa versão ainda mais estranha ao ambiente marítimo: "No caso do alumínio, a peça fica ainda mais cheia de craca. Parece um leão marinho, um bicho novo. Um amigo meu comentou que o trabalho lembra as transformações plásticas do Michael Jackson -altera-se tanto que vai sobrar apenas a casca, mas sempre terão o mesmo 'DNA'."

No longo prazo, é de se perguntar de que lado do limiar entre arte e arqueologia as peças vão ficar: à medida que cada escultura vira um grande recife artificial, ela é totalmente integrada ao "acervo" do museu submerso. "Forçar a adaptação de um elemento estranho dentro deste espaço é como promover um curto-circuito no tempo; pode-se fazer uma projeção no presente do que ele será no futuro. O que pode acontecer com ele daqui a mil anos? Vai ser tratado como objeto antropológico ou como obra de arte?", pergunta.
O trabalho é todo projetado no computador e as partes que compõem a estrutura, devido a seu encaixe, como que permitem um amolecimento da madeira. Este amolecimento estava presente de forma um pouco distinta em instalações como a do Paço das Artes, em 2000, onde havia uma escultura de mármore e a mesma forma colocada em movimento digitalmente em projeção sobre o pó do mármore. Nos "infláveis", o enrijecimento acontecia por conta do ar injetado naquela forma amolecida, e no projeto do Arte/Cidade 3 (1997), os diferentes estados de uma matéria (derretimento, fervura, liquefação e evaporação da água) eram vivenciados ao longo do serpenteante ramal ferroviário.
"Buscar um novo lugar para pensar e executar a produção artística é parte das minhas formulações. Poder instalar meus trabalhos na ilha de Fernando de Noronha será outra etapa, onde não haverá apenas o observatório das minhas experiências, como na lagoa da Conceição, pois se trata do lugar onde as pessoas de fato têm um museu embaixo d'água. Lá poderá ser o lugar do olhar submerso -o foco de atenção na ilha é efetivamente subaquático. É interessante pensar no deslocamento do trabalho para onde estão os olhos em vez de pensar em levar os olhos para onde ficam os trabalhos, como nos museus", defende Ribenboim.
junho 29, 2004
Uma lente para ver a pós-subjetividade
Conheça o projeto de rede desenvolvido por Giselle Beiguelman para hiPer
JULIANA MONACHESI

"Hackeie o museu", incentiva a home do Egoscópio 2.0, trabalho de Giselle Beiguelman na hiPer, que pode ser visitado no endereço www.desvirtual.com. "Você é o WebJ", encoraja a página de postagem de arquivos de texto ou de imagem. Toda e qualquer coisa enviada para o egoscópio é jogada imediatamente em uma projeção dentro do Santander Cultural. A atividade de "webjaying" pode ser fixa ou nômade, integrando um número incontável de variáveis (e subjetividades) que, surpreendentemente, resulta em um retrato inteligível.
As imagens "artísticas" ou de obras de arte reconhecíveis disputam espaço com fotos do tipo que se costuma encontrar em fotologs (retratos anônimos de família, amigos, caras e bocas, poses etc.), com cenas de Porto Alegre e da própia exposição no Santander (muito em função da "parceria" não programada entre o Narkes, trabalho de Helga Stein que será apresentado e discutido mais adiante no Quebra de Padrão, e o Egoscópio) e com imagens de cunho jornalístico e/ou publicitário (o símbolo do time de futebol, a foto da cantora predileta etc.). Os textos variam do "fulano esteve aqui", fazendo do painel uma parede em que se deixa uma pichação banal, a máximas e comentários curiosos.

Como o próprio nome do trabalho diz, trata-se de uma nova versão do primeiro Egoscópio -"upgrade", nas palavras da artista. A versão 1.0 é apresentada no site desvirtual como "uma teleintervenção que propunha mapear um personagem fluido chamado Egoscópio. Combinando recursos de Internet e Intranet, o Egoscópio configurou-se como experiência bem-sucedida de ação de público aberto que recebeu mais de 2.200 contribuições gerando um interessante banco de dados das múltiplas identidades do nosso caráter 'descorporificado'. Egoscópio discutiu não apenas formatos de nova subjetividade, mas também veiculou práticas de autoria e recepção interceptadas por processos de entropia e aceleração".
Realizado em agosto de 2002, durante o FILE, o trabalho consistia em veicular as informações postadas no site do Egoscópio em dois painéis eletrônicos publicitários da avenida Faria Lima. Os usuários participavam escolhendo entre opções pré-determinadas e restritas a URLs, que indicavam o tipo de roupa, obras de arte, a língua materna etc. que configurariam este "sujeito pós-subjetivo, sem identidade porque amálgama da identidade de todos nós, sujeitos mediados por mídias". O trabalho logo fugiu ao controle da artista; cada um punha no ar o que bem entendia, a maioria tentando se promover. "Apesar de eu querer fazer um trabalho sobre subjetividade, as pessoas queriam seus dez segundos de 'cybercelebrity'", conta.

Desta vez, Giselle Beiguelman abre mão do controle da variáveis, permitindo o envio de qualquer tipo de arquivo, de forma que o Egoscópio 2.0 configura-se de fato como um instrumento para ver a subjetividade contemporânea. O usuário de internet fixa ou de tecnologias de internet móvel (SMS, MMS), assim como o visitante da exposição, pode colaborar com imagens ou textos. "A proposta é que o trabalho funcione como webjing mesmo", explica. A artista acredita no fator "peopleware", não estabelecendo qualquer controle apriorístico dos conteúdos postados: "Acho que o trabalho não se presta a determinadas coisas e o Egoscópio é uma aposta de que existe inteligência coletiva, sim. Eu nunca tive problema com público, nunca tive o site derrubado".
Interface em que Beiguelman se apaga como autora, o projeto não sobrepõe nem sampleia as intervenções alheias, antes dispõe de forma democrática as variadas colaborações (e nisso dialoga com a tentativa de conferir dignidade ao anônimo presente na obra de Jurandir Muller e Kiko Goifman - ver texto do dia 10 de junho). O borramento de limites entre mundo real e virtual, tão acentuado nas críticas elogiosas que a artista recebeu (em textos de sites especializados a matéria no NYT), propiciado pela interação entre a intimidade da navegação feita em casa e a veiculação em painéis na rua, sofre nesta versão um rebaixamento uma vez que o resultado pode ser visto apenas na projeção dentro do Santander Cultural.
