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junho 23, 2004
Em busca de uma ginga eletrônica
Kátia Maciel traz tradição brasileira para o centro da discussão tecnológica
Clique para assistir ao vídeo-clipe do Ginga Eletrônica feito pela artista
Caso você não consiga ver o vídeo, acesse a página www.realplayer.com, faça o download da versão gratuita e instale-a no seu computador.
JULIANA MONACHESI
"Eu nunca teria feito esse trabalho se não tivesse feito uma aula de capoeira." Habituada a ouvir cotidianamente as palmas e o berimbau de um grupo perto de sua casa, a artista Kátia Maciel resolveu fazer a experiência de entrar na roda deste ícone da tradição brasileira. Na primeira vez em que foi colocada na roda, "lugar onde só entra quem sabe jogar", vivenciou uma sensação de perda de centro. O mestre, ali bem na frente dela, tornou-se invisível naquele espaço e, ao mesmo tempo, uma transformação da temporalidade aconteceu: "Eu não era mais a mesma".
Com mestrado e doutorado feitos na área de cinema, Kátia Maciel desenvolve em seus trabalhos artísticos noções de cinema estendido ou espacializado, que via de regra prevêem experiência de interatividade. Em "Ginga Eletrônica", desenvolvido para a mostra "hiPer", cinco projeções simultâneas e sincronizadas recriam a sensação que ela vivenciou de perda de centro: construída como uma sala circular, com quatro entradas, a instalação mostra uma roda de capoeira. Quando o visitante "pisa na roda", aciona sensores que disparam uma primeira luta. Assim que outra pessoa entra, começa uma segunda luta, e assim sucessivamente. Do alto, uma projeção no chão mostra a luta do ponto de vista do jogador: estas imagens foram capturadas com uma câmera acoplada a um capacete na cabeça do capoeirista.
A idéia aqui foi deslocar para um ponto de vista diferenciado uma tradição incansavelmente registrada e documentada. A capoeira, nesta obra, é olhada a partir das possibilidades tecnológicas de ponta, "é um olhar contemporâneo sobre a capoeira; a virtualização de uma prática com séculos de existência". Para tanto, uma verdadeira orquestração precisou ocorrer. Tudo foi filmado em estúdio, coreografado, captado separadamente e depois editado para se obter a sincronia. Mesmo o som foi gravado de maneira independente, respeitando a coreografia, os altos e baixos da luta: "o berimbau é um instrumento de poder, que rege as relações dentro da roda. Uma pessoa que sabe capoeira entende o que o berimbau está dizendo", conta a artista.
O som foi transformado em música eletrônica e espacializado com sistema 5.1 pelo especialista em áudio Fernando Moura, que fez o som de todos os filmes de Kátia Maciel até hoje. A orquestração de todas as variáveis privilegiou o centro, assim como a roda de capoeira existe em função do que acontece dentro dela, como uma camada de proteção do mundo exterior e uma estrutura de apoio para que a singularidade do jogo seja possível, sem exceder as regras, e pelo primado da arte.
Instalado no centro da exposição no Santander Cultural, o trabalho de Kátia Maciel padece por vezes de variáveis do desgaste técnico de um maquinário que a equipe de manutenção não tinha como prever. A "Ginga Eletrônica" perde o rebolado na convivência cotidiana com os visitantes, mas não perde o encanto, assim como eventualmente um capoeirista dá um passo em falso para, em seguida, retomar o ritmo dos movimentos da luta. São as surpresas a que a produção feita com tecnologia de ponta está sujeita ao longo de uma exposição formatada ainda segundo paradigmas datados -como são todas as exposições de arte digital, em busca de um formato apropriado.
junho 22, 2004
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Leia trecho da conversa que o Canal Contemporâneo teve com os irmãos Guimarães no dia 29 de maio, em Porto Alegre, durante a montagem da exposição, em que falam sobre a relação de sua obra com a de Samuel Beckett:
Sobre o "encontro" com Beckett
Fernando: Nós já conhecíamos bem a obra do Beckett antes de fazermos nossa primeira exposição como artistas. Havíamos montado "Esperando Godot" em 1996, por exemplo. Mas a aproximação maior aconteceu quando nós passamos por uma experiência familiar que decidimos transformar em um trabalho, que foi naturalmente ao encontro de Beckett. O projeto partiu de um quarto que ficara fechado durante 40 anos na casa dos meus avós. Eu tinha um avô que era médico, que faleceu muito cedo, eu nem o conheci, e minha avó fez do quarto onde ele ficava uma espécie de santuário, onde nós nunca pudemos entrar.
Então, depois que ela faleceu, a gente entrou no quarto e viu as coisas que ela tinha guardado dele; havia cartas, fotografias, registros dos pacientes dele, e foi por meio desse material que nós começamos a saber como era aquela pessoa. E como não tínhamos conhecimento concreto algum sobre este avô, acabamos construindo uma identidade para ele; se era verdadeira ou não eu não sei, mas era a identidade possível. Partindo desse material, resolvemos mostrar em uma exposição algumas coisas que falassem sobre essa identidade construída. E como estávamos trabalhando o tempo inteiro com essa questão da memória, quando fomos escolher o que entraria de texto no trabalho, descartamos a idéia de traduzir as cartas que ele tinha deixado -porque tinham um valor muito pessoal, que, enquanto dramaturgia, não se sustentava_, e chegamos em Beckett, que fala muito sobre isso.
Sobre a metáfora do chapéu
Fernando: A questão do chapéu em Beckett é um exemplo de como ele trabalha a questão da memória. Em várias obras ele se refere ao chapéu, dizendo o seguinte: que o filho nasce e o pai faz com que o filho use chapéu, então o filho se rebela em relação à utilização desse chapéu o tempo inteiro, até que um dia o pai morre e o chapéu pode ser jogado fora, mas a cabeça já está acostumada com o chapéu, ou seja, essa identidade que vem herdada de várias formas é um tema freqüente em Beckett.
Sobre a linguagem descarnada
Adriano: O que primeiro a gente conheceu do Beckett foram as peças, só depois a gente foi para a literatura. As peças dele têm um aspecto singular, que é o texto não ser o principal, como em geral é no teatro. O Beckett constrói uma cena toda na qual o tempo é fundamental, ou a visualidade, e isso foi uma coisa com a qual a gente se identificou muito. Para ele, não é só o som da palavra que tem importância, nem só o significado da palavra tem importância.
Fernando: Uma coisa que a gente gosta muito em Beckett é essa questão de descarnar a coisa para chegar no mínimo da essência. Outro exemplo disso é que ele escrevia suas obras em um idioma e traduzia ele mesmo para outro idioma, nem sempre mantendo na tradução o texto original, porque se era o som de uma palavra que o agradava, então ele traduzia esse som.
Sobre a respiração
Adriano: O Beckett era irlandês, a língua mãe dele era o inglês, mas ele gostava de escrever em francês, justamente para não ter tanta possibilidade de alusão, para a palavra ser mais pura, digamos, estar menos ligada a outras experiências. Depois ele traduzia para o inglês. Formalmente ele já interessava à gente por ser uma pessoa que transitava por muita coisa, trabalhava com várias mídias diferentes, e conceitualmente nos interessavam essas questões de que ele está sempre falando, como a finitude...
Fernando: Tem uma peça dele que tem 35 segundos e que mostra a essência do discurso dele. Chama-se "Respiração". Ilumina-se o palco e nele há montes e montes de lixo. Aí começa a clarear uma luz muito suavemente, ela entra com um choro de bebê, depois entra uma inspiração, aí começa a expiração, a luz começa a diminuir até que se apaga com um choro de bebê de novo.
Adriano: Ou seja, a vida em 35 segundos, e o que você tem ali é lixo, matéria orgânica, aquilo de que o ser humano é feito. É uma síntese maravilhosa o que ele obtém nesta peça. Quer dizer, ele chama de peça, mas não tem ator, não tem texto... é uma obra visual.
junho 21, 2004
Luz sem luz
Adriano e Fernando Guimarães criam armadilha para os olhos na hiPer
Clique para ver a performance na instalação dos irmãos Guimarães
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JULIANA MONACHESI
O trabalho gira em torno da luz, unindo arte e teatro. Em Beckett, muitas vezes os grandes protagonistas eram a luz, os objetos, a respiração. Nesta obra de Adriano e Fernando Guimarães, a luz é o que determina a poética. Na parte externa de uma "casa" feita de tijolos aparentes, com acabamento tosco, foram construídas duas "caixas de performance", forradas com fórmica. Dentro das caixas existem fones de ouvido nos quais se ouvem definições de dicionário para a palavra luz. As instruções, elemento recorrente no trabalho dos artistas, plotadas nas caixas, determinam que quando a luz estiver acesa dentro da caixa, o performer deve correr e, quando apagada, deve permanecer parado em silêncio escutando o áudio.
Dentro da casa, na antecâmara, toda forrada com telas de aço inoxidável, quatro projetores com textos de Samuel Beckett têm sua luz refletida e diluída pela superfície espelhada. Os textos estão configurados sobre fundo preto com letra branca, fazendo com que, por vezes, a luz de uma letra cegue o espectador. Na sala do fundo, cinco monitores LCO mostram um mesmo personagem que abre uma janela virtual e percebe que, na medida em que a luz entra no ambiente, ele, personagem, é aniquilado por ela, uma vez que também ele é virtualidade, é pura luz. Ele fecha a janela enquanto uma outra se abre em outro monitor, para a qual ele se dirige em desespero, e assim começa uma batalha contra a extinção.
A instalação toda estabelece um jogo no qual a luz funciona como reguladora da ação. Este jogo nada mais é do que uma metáfora da vida. "O problema do ser humano é viver entre luz e escuridão, entre vida e morte, sempre tentando lutar contra a morte e o trágico, no que nenhum homem é bem-sucedido", diz Adriano, citando de memória uma frase de Beckett. Este embate se materializa na contraposição entre definições físicas e metafóricas da luz. A sintaxe científica pretende abarcar o fenômeno no que ele é, determinando-o, controlando-o. A sintaxe poética e artística possibilita que a palavra erre por sentidos diversos, até opostos, conferindo ao fenômeno seu caráter imponderável.
O fato de o invólucro do trabalho ser uma casa de tamanha concretude possui um caráter metafórico também: a primeira coisa que protege as pessoas da luz é a casa. Sobre a estrutura, construída no hall principal do Santander Cultural, outro texto em alto relevo pode ser visto do andar superior. As letras são grandes o bastante para serem lidas, mas pequenas o suficiente para dificultarem a leitura. Como no restante do jogo, aqui o espectador é convocado a se esforçar para apreender sentidos fugidios e, no limite, inalcançáveis.
A edição do vídeo do homem-luz fechando as janelas foi feita com a ajuda de uma especialista em animação, para sincronizar a passagem de um monitor a outro. Em montagem anterior do trabalho, no CCBB de Brasília, a sincronia era ainda mais refinada tecnicamente, uma vez que as cinco projeções não se interrompiam: de uma a outra a passagem tinha de ser perfeita porque o caminhar ou correr do personagem eram contínuos, em uma sala toda espelhada (com o mesmo material utilizado aqui na ante-sala) em que a figura aparecia em tamanho natural, assombrando o visitante.
Ali, o limite da obra era uma eclosão de luz que apagava as projeções e cegava o espectador. "O trabalho termina quando o público fecha os olhos. De novo, o corpo é o nosso primeiro regulador." Adriano se refere aqui a várias obras feitas em parceria com Fernando, em que os limites do corpo determinam o andamento das ações, como em "Respiração Embolada", em que os performers revezam-se em duas únicas ações: submergem o rosto em água ou entoam uma embolada, ritmo do Nordeste no qual não se fazem pausas entre as palavras.
Em outros trabalhos da série da respiração, o teste dos limites e o caráter patético das limitações e finitude humanas são experimentados de variadas maneiras. Em "Respiração -", uma performer fica dentro de um cubo de acrílico vedado por completo até não conseguir mais respirar. A dificuldade para respirar vai precipitando bolhas de água na superfície interna da caixa, de modo que, à medida que a respiração enfraquece, a figura vai desaparecendo. Em "Respiração +", dois performers submersos em caixas retangulares quase cheias d'água levantam a cabeça apenas quando não aguentam mais prender o ar, e têm que recitar textos técnicos sobre respiração enquanto estão fora da água. A fala cessa quando voltam a submergir.
Tem qualquer coisa de crueldade em tudo o que os irmãos Guimarães fazem, mas ela nada mais é do que um jogo que evidencia a condição ridícula do ser humano. Há também qualquer coisa de cômico nisso tudo.
