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julho 4, 2010

Tudo Gira por André Parente

Tudo Gira

ANDRÉ PARENTE

Publicado no catálogo do Dança em Foco (2009) do Oi Futuro.

Veja a seleção de vídeos Tudo Gira, de André Parente, para o Desafio Favoritos publicado nesse blog.

Para Alexandre Veras

A partir de 2004, passamos a nos interessar pela questão do giro (girar, rodar, rodopiar, fazer olhar em torno), o que nos levou a criar um trabalho chamado Circuladô e um projeto de exposição, intitulado Giro, com trabalhos de artistas brasileiros. Estes trabalhos, em sua maioria são trabalhos de vídeo e instalação. Não são trabalhos de vídeo-dança, mas quando os vemos, “sentimos que há algo que dança em nós” (Alexandre Veras). Não estão relacionados diretamente à tradição da dança, mas possuem dancidade. A nossa aposta é que o giro nos permite experimentar uma maneira própria de ver que está profundamente enraizada no corpo, uma modo próprio de ver do corpo, seu percepto.

Entretanto, optamos por falar desses trabalhos em função de três diferentes regimes imagéticos, sem entrar na discussão do meio utilizado (filme, video, vídeoinstalação, instalação interativa). Os artistas sempre se interessaram pelo cinema e a imagem em movimento. A relação entre cinema e arte teve, ao longo do século XX – para muitos, o século do cinema –, três momentos privilegiados: o período das vanguardas históricas (futurismo, dadaísmo, surrealismo, expressionismo, abstracionismo), os movimentos ditos do pós-guerra (pop art, neoconcretismo, minimalismo, arte conceitual, Fluxus, body art, land art), e o período recente, no qual assistimos à disseminação das novas tecnologias da imagem. A emergencia das novas mídas coincidiram com o surgimento de uma nova categoria de cinema: trata-se do cinema no campo ampliado das artes plásticas, fenômeno recente conhecido como “cinema de museu”, “cinema de exposição” ou simplesmente de “cinema de artista”.

Enfim, trata-se de retomarmos esses momentos para neles situar algumas linhas de força que marcaram a história da relação entre cinema e corpo por meio da temática do giro.

II. Da imagem-sonho aos ballets dos corpos

O cinema de vanguarda possui três tendências básicas - as imagens oníricas, as sinfonias das cidades e os ballés dos corpos - que se interpenetram.

Para Gilles Deleuze, a história é a variação do esquema sensório-motor, isto é, a variação de uma imagem especial (subjetividade) quando esta imagem se reporta a uma situação. As ligações entre o homem e o mundo, o que ele vê (imagem-percepção), sente (imagem-afeto), faz (imagem-ação), podem ser expressas pelo encadeamento de imagens atuais. Mas, é possível que o homem se encontre confrontado com situações que perderam seu prolongamento motor. Quando nos encontramos diante de uma situação-limite (situações ameaçadoras violentas ou iminência de morte) ou diante de estados psíquicos alterados – déficit de atenção, amnésia, hipnose, alucinação, conflitos inconscientes etc. – ou de estados oníricos, a ligação sensório-motora fica suspensa ou é retardada. De fato, com as perturbações psicológicas (seja por motivos externos ou internos), a imagem atual do que percebemos não se encadeia mais com uma imagem-motriz (ação, afeto, percepção ou mesmo lembrança), mas entra em contato com um conjunto de imagens virtuais, flutuantes e desencadeadas: estados difusos da consciência, devaneios, fantasmas, alucinações, sonhos, etc. Esta é uma das marcas do cinema europeu, que enfrentou muito cedo um conjunto de fenômenos de alteração da consciência, onde o importa é o estado de espírito do personagem, mas do que suas ações. Este era um dos aspectos importantes do cinema soviético e de suas alianças variáveis com o futurismo e o construtivismo; do expressionismo alemão e de suas alianças variáveis com a psiquiatria; ou da escola impressionista francesa e de suas alianças variáveis com o surrealismo e a psicanálise.

As imagens-sonho formam um vasto circuito (“o envelope extremo de todos os circuitos”, segundo Deleuze), em série de anamorfoses em que cada imagem em relação a imagem seguinte, que a atualiza, como na famosa imagem de O Cão Andaluz (1928), onde a imagem da lua, cortada por uma nuvem, dá lugar a imagem de um olho, cortado por uma navalha. Todo cinema de vanguarda reclamava do sonho, expresso na frase de Robert Desnos: “do desejo do sonho participam o gosto e o amor pelo cinema”. Para Artaud, “se o cinema não é feito para traduzir os sonhos ou tudo o que na vida desperta se aproxima do domínio dos sonhos, então o cinema não existe”. De fato, os filmes de vanguarda - Emak Bakia (Man Ray, 1926), La souriante Madame Beudet (G. Dulac, 1922), La coquille et le clergyman (G. Dulac, 1927), Entr’acte (R. Clair, 1924), Um cão andaluz (L. Buñuel e S. Dali, 1928), L'age d'or (L. Buñuel, 1930) e Le sang d'un poète (J. Cocteau, 1929), só para citar alguns clássicos - são autênticas visões de sonho, com tudo o que isso implica: série de anamorfoses que procedem por todo tipo de efeitos visuais – fusões, movimentos de câmara, efeitos especiais de cenário e de laboratório etc.

Quando os movimentos do filme se liberam inteiramente das situações narrativas, quando as imagens flutuantes não são mais atribuídas a um personagem (alguém com distúrbios psicológicos ou acuado por uma situação limite), diríamos que elas passam a exprimir a alma do mundo. É o caso dos balés mecânicos tais como Ballet mécanique (Leger, 1924), Photogénies (Epstein, 1924), Photogénies mécaniques (Grémillon, 1924), Entr’acte (Clair, 1926), Emak Baktia (Ray, 1926), Ballets of hands (Simon, 1928), Mechanical principles (Steiner, 1930), Hands (Steiner, 1942) e Object lesson (Young, 1941).

Uma das sequências mais bonitas do cinema surrealista está em um filme de Hans Richter. De fato, foi um sonho que inspirou o pintor Hans Richter em seu curta-metragem Filmstudies (1926). O resultado obtido, sob um ritmo lento, é um cortejo de anamorfoses de formas circulares: cabeças suspensas que se metamorfoseiam em olhos, olhos que se transformam em luas, as luas em tipos de pontos, os pontos em chuva que faz ondular a superfície da água até formar ondas, que finalmente, empurram as cabeças etc.

III.Circumambulatio: o homem da camera e a universal variação

A figura do círculo é um símbolo quase omnipresente nas culturas. O círculo é o símbolo da harmonia universal, que vai do interior (eu) ao exterior (realidade), do micro (átomos) ao macro (terra, lua, sol, cosmos). A forma circular é um dos conceitos de base das culturas em geral, presentes tanto na natureza (templo cíclico, relação da noite e do dia, estações do ano, etc), quanto nos ritos e mitos que reforçam a periodicidade das atividades humanas. As representações culturais em geral supõem um incessante movimento cíclico de recomeço e de reiteração. Se o curso das coisas supostamente retorna periodicamente sobre si mesmo‚ é porque os ciclos sociais e cósmicos ecoam o modo de ser das coisas.
O cinema, desde os primeiros dispositivos de produção de movimento, no início do século XIX, explorou os movimentos cíclicos, hoje conhecido como «loops ». Hoje em dia, a arte digital deve muito aos “loops”, anglicismo recorrente no meio artístico, para expressar a repetição de pequenos trechos (de som, de imagem, de programacão, de processos, dispositivos e gestos os mais variados) visando à criação de um todo cujo significado extrapole a soma de suas partes constituintes. Aline Couri (ver bibliografia) analisa o uso de certos tipos de loops (mecânicos, eletrônicos e digitais) surgidos a partir do final do século XIX, com o aparecimento de modos de produção e reprodução imagéticos e sonoros. Ainda no início dos anos de 1920 uma série de artistas produziram um tipo de cinema abstrato baseado nos efeitos visuais e “loops” dos brinquedos óticos pré-cinematográficos: Taumatrópio (John Ayrton, 1925) Fenacistiscópio (Joseph Plateau 1929), Zoetrópio (William George Horner, 1934). É o caso das abstrações hipnóticas de Marcel Duchamp (Anemic cinema, 1924), Walter Ruttman (Opus 1, 2 e 3, 1921-1925) e Oskar Fischinger (Spirals, 1926).

Um outro gênero de filme conectado com as imagens-sonhos, ao lado dos balés mecânicos e das abstrações hipnóticas, são os filmes que se apresentam como sinfonias de cidades - Manhattan (Strand e Sheeler, 1921), Berlin Symphonie einer Grosstadt (Ruttman, 1927), Skyscraper symphonie (Florey, 1928), Skyscraper (Murphy, 1929), City symphonie (Weinberg, 1929), São Paulo, Sinfonia de uma metrópole (Rodolfo Rex Lustig e Adalberto Kemeny, 1929). O homem da câmera (Vertov, 1930).

O homem da câmera, de Dziga Vertov (ao criar o Grupo Dziga Vertov, Godard lembrava que o nome de Vertov significava “o peão que gira”) é um caso a parte. O que é notável em O homem da câmera é que ele faz da circumambulatio seu conceito principal, seu motor interno, tanto ao nível do conteúdo, como da forma.

Em O Homem da Câmera, tudo gira, a manivela da câmera e do projetor, a moviola, as rodas do trem, os carretéis das fábricas de tecido, os cilindros dos motores. Do ponto de vista da forma, o filme se dá como uma série de ciclos imbricados. Se escolhermos arbitrariamente um primeiro ciclo, o filme seria o dia na vida de uma grande cidade. Em seguida, viria o processo de produção de um filme, sua filmagem, sua edição e sua projeção. Finalmente uma jornada de trabalho. Entretanto, ao examinarmos o filme de perto, vemos que ele embaralha todos os ciclos. Do ponto de vista paradigmatico, certas partes dos ciclos principais ganham autonomia: isso ocorre com a sessão de cinema, por exemplo, ou com o intervalo que se faz na jornada de trabalho, onde os trabalhadores realizam atividades de lazer. Do ponto de vista sintagmático, outros ciclos vão surgindo entre os ciclos principais. De modo que temos o ciclo da vida de uma pessoa: do seu nascimento a sua morte, passando por seu casamento. De ciclo em ciclo, Vertov produz uma universal variação, de forma que cada ação, cada imagem, age e reage umas em relações as outras até onde se extende o plano de imanência (o mundo tornado imagem).

Segundo Deleuze, a teoria do intervalo, de Vertov, nada mais é do que a idéia de uma imagem percepção pura, imanente as próprias coisas. O cine-olho é o olho se tornando imanente na produção de uma imagem-matéria, uma imagem de antes do intervalo. É como se todos os ciclos se interconectassem de tal forma que que não pudéssemos discerni-los em termos de antes e depois, de causa e efeito, de sujeito e objeto. Portanto, o que Vertov atinge, com o homem da câmera é uma circumambulatio universal, uma universal variação acentrada. Nesse sentido, ao contrario dos filmes da imagem sonho, onde o sonho remeteria ainda, em grande parte, ao sonhador (e portanto aos seus esquemas sensório-motores), em o Homem da Câmera, temos uma espécie de grande imagem-cérebro cujas circunvoluções são autopoiéticas.

IV. O Cinema do Corpo em Transe:

No cinema de vanguarda, os corpos se encadeiam em anamorfoses oníricas, em balés mecânicos, enquanto, no cinema experimental do pós-guerra, ao contrário, eles não mais se encadeiam conforme a situação sensório-motora. Não se trata mais de mostrar as reações dos corpos uns sobre os outros, de lhes impor um balé ou um concerto visual e sonoro, ou mesmo de reabilitar o corpo e a sexualidade, fazendo do corpo o objeto de uma reconquista global ou seletiva. O que o “cinema do corpo” produz, diz Deleuze, “é a gênese de um ‘corpo desconhecido’ que temos atrás da cabeça, como o impensado no pensamento, nascimento do visível, que se oculta à vista”. O corpo deixa de ser um objeto naturalizado e faz ver o que não se deixa mostrar. No cinema do corpo, os corpos são afetados pelo tempo, pela duração (presente vivo), de tal forma que eles exprimem uma pluralidade de maneiras de estar no presente. Não é que os corpos não ajam mais, mas suas ações – a perambulação, a conversa, a dança, a espera, o voyeurismo etc. – já não são determinadas pela situação sensório-motora.

O cinema do corpo, no Brasil, teve dois momentos marcantes. Em primeiro lugar, o Cinema Marginal, um dos mais importantes movimentos do cinema brasileiro, ao lado do Cinema Novo e da Chanchada. O Cinema Marginal desenvolveu os meios de cotidianidade que não param de decorrer nos preparativos de uma cerimônia (cerimônia paródica em Rogério Sganzerla, cerimônia diabólica em Mojica Marins, cerimônia cômica em Ivan Cardoso) ou de uma teatralização cotidiana do corpo (estilização burlesca em Andrea Tonacci, teatralização do espetáculo em Júlio Bressane, carnavalização em Neville d’Almeida). As atitudes e posturas do corpo (a demonstração de posturas categoriais da imagem em Sganzerla, Bressane, Neville e Cardoso, o fato de que seus filmes são, em boa parte, paródias de gênero: policial, terror e, sobretudo, chanchada) não param de passar pela teatralização cotidiana do corpo, com suas esperas, suas fadigas, suas inquietações e apaziguamentos.

Um segundo momento surgiu entre os artistas plásticos. Em conseqüência da ruptura neoconcreta, a forma moderna e seus esquematismos racionalistas entram em declínio, sobretudo no Rio de Janeiro. Esse declínio é aprofundado pelos trabalhos de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lígia Pape, que, a partir dos anos 60, farão de suas obras um processo de experimentação generalizado. Essa experiementação passa, antes de mais nada, pelo corpo a corpo dos espectadores com a obra, como no Parangolé, obra seminal, que implica um processo de incorporação. É nesse contexto de esgotamento do repertório modernista que parte dos artistas cariocas da geração seguinte empregará os novos meios de produção imagética, em particular o cinema e o vídeo, submetendo-os a suas necessidades experimentais e conceituais. Entre 1974 e 1982, o grupo de pioneiros da videoarte, formado por Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Letícia Parente, Paulo Herkenhoff, Miriam Danowski e Ana Vitória Mussi, produziu uma série de vídeos que circularam em grande parte dos eventos de videoarte no Brasil ou no exterior.

Nos vídeos dos pioneiros, em geral realizados em um único plano-seqüência, gestos cotidianos repetidos de forma ritualística – subir e descer escadas, assinar o nome, maquiar-se, enfeitar-se, comer, brincar de telefone-sem-fio – são encenados de modo a produzir uma imagem do corpo. Nos vídeos do grupo, a imagem é uma inflexão, uma dobra, mas a dobra passa pelas atitudes do corpo, pelo “mergulho no corpo” – termo de Oiticica que expressa uma reversao da obsessão formal modernista. A questão do corpo está ligada a um conceito ou atitude crítica, que visava forçar o pensamento a pensar o intolerável da sociedade em que vivemos. Em Passagens (1974), Anna Bella Geiger sobe e desce lentamente escadas em um ritmo constante, como em um rito de passagem; em Dissolução (1974), Ivens Machado assina o seu nome uma centena de vezes até ele se dissolver; em A procura do recorte (1975), Miriam Danowski recorta bonequinhos em folhas de jornal como forma de transmutar os pequenos gestos em rituais transgressivos; em Estômago embrulhado, Paulo Herkenhoff transforma o ato visceral de comer jornal em uma irônica pedagogia de como “digerir a informação”; em um de seus vídeos (sem título), Sonia Andrade entra em transe como forma de revelar o intolerável da têvê que atrapalha a sua refeição; em Marca registrada (1975), Letícia, seguindo uma brincadeira nordestina, costura, com agulha e linha, na planta do pé, as palavras Made in Brazil, ao mesmo tempo em que revela o processo de coisificação do indivíduo na sociedade de consumo; em um vídeo coletivo, Wireless telephone (1976), o grupo de artistas dispostos em círculo brinca de telefone-sem-fio enquanto a câmara roda em torno deles e o espectador assiste ao processo de transformação da informação em ruído, revelando, por meio de uma brincadeira popular, uma das principais questões teóricas da comunicação (o ruído é parte do processo de comunicação e não apenas interferência). Em todos esses vídeos, o corpo não é mais tomado em uma dicotomia cartesiana que separa o pensamento de si mesmo, mas como algo no qual se deve mergulhar para ligar o pensamento ao que está fora dele, como o impensável.

Em O mundo de Janiele (2007), o artista Caetano Dias mostra uma menina que brinca de bambolê. O video começa por mostrar uma menina adolescente girando muito sutilmente tendo como fundo o azul do céu. Não sabemos o que faz o corpo da menina balançar até vermos que ela brinca de bambolê. O giro do bambolê é complementado pelo giro da camera, que faz o mundo girar em redor da menina. No início, trata-se de um movimento em contra-plonge, que pouco a pouco vai descortinando o mundo de Janiele: uma favela na periferia da cidade da Bahia (como se dizia antigamente quando nos referíamos a Salvador). A música é o som de uma caixinha de música, de forma a criar um constraste entre o sonho de criança e a dura realidade do mundo a qual ela pertence. Poucos trabalhos nos sensibilizaram tanto ultimamente, pela sutileza como miséria e beleza se misturam em uma realidade que é a nossa, quando nós nos dispomos a vê-la como se a víssemos pela primeira vez. Em O mundo de Janiele, como nos videos dos pioneiros, a beleza do gesto banal e cotidiano da dança de bambolê se transforma, pouco a pouco, naquele intolerável da realidade dura que é o mundo das periferias brasileiras.

Em dois de vídeos que compõem um díptico, Uma Ilha (2006) e Duas Ilhas (2006), Analu Cunha, desenvolve uma visão panorâmica, em giro, da paisagem. Em Uma Ilha, uma voz de mulher cantarola (como para ela mesmo) um gospel a capela. No Largo da Carioca, no Centro do Rio de Janeiro, a câmera gira sem parar, enquanto vemos as pessoas passarem apressadas em suas rotinas de trabalho. A voz entoa de memória a música “Deep River”(Harry Thacker Burleigh. Cuja primeira estrofe é “my home is over Jordan”) e transforma o rio Jordão em um lugar imaginário ao substituí-lo por “crossland”. Na verdade, esse “ato falho” gera uma conexão interessante, uma vez que os passanhtes parecem carregar consigo todo o peso do fardo do trabalho. Aliás, isso fica ainda mais intenso pelo fato de termos a impressão de o giro da camera dar a sensação de que os passantes serem os mesmos, como se houvesse uma repetição. A repetição decorre em parte porque não conseguimos reter na memória a imagem dos passantes.

Em Duas Ilhas, ouvimos duas pessoas murmurar a música de Jorge Ben e Toquinho, “Que Maravilha”, enquanto vemos a camera girar no meio da Lagoa Rodrigo de Freitas. No horizonte, vemos o desenho sinuoso da montanhas sob o céu azul: a paisagem é estonteante. As vozes e a melodia cantarolada, contaminam a paisagem e produzem uma sensação de sublime, um sentimento de beleza intensidade quase insuportável. Nesses dois videos, Analu Cunha consegue a façanha de fazer das vozes um movimento acentrado que anima o giro: é como se a voz fosse um centro de indeterminação que faz a imagem girar. Não se trata da voz dessa o daquela pessoa, pelo contrario, a voz se torna puro movimento, movimento das pessoas que cruzam a cena em direção a seus afazeres cotidianos, ou da paisagem sublime, grandiosa, que não podemos exprimir senão a partir desse movimento infinito que transforma o giro em um sentimento indizível. No fundo, o giro comparece aqui como um movimento de presentificação, um movimento que faz do tempo uma presença que se desdobra, uma abertura infinita, por meio da qual o tempo do que acabou de desaparecer (passado) se torne contemporâno ao que ainda estar por aparecer (futuro). É como se o giro, contamidado pela voz, que o percorre de dentro, transformasse o centro do movimento no espaço virtual a partir do qual se atualiza o que vemos como uma presença sempre por vir.

Em seu video “E pur si mouve” (2007), Carla Zaccagnini, radicaliza o movimento de descentramento dos videos de Analu Cunha. No topo do Monte Abisko, em meio a uma cadeia de montanhas do parque nacional de Abisko, na Lapônia sueca, Zaccagnini instala uma vitrola, sobre a qual elea põe para tocar uma seleção de músicas interpretadas pelo pianista sueco Jan Johansson. Sob a vitrola de 33 rotações por minuto, ela instala uma câmera que nos mostra a paisagem em volta, sob a luz do sol da meia-noite. Sem dúvida aqui, a música de Johansson contribui de forma inegável para fazer falar a paisagem, que giram em uma velocidade estonteante. O vídeo cria uma estranha vertigem que é, sem dúvida, fruto da combinação dos elementos audiovisuais: a luz do sol à meia-noite, a música crepuscular com toques românticos de Johansson e a grande velocidade do giro da câmera, que produz uma imagem com rastros coloridos.

V. Do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo: a imagem-corpo.

Habitualmente, quando pensamos em cinema, a imagem que nos vem à cabeça é a de um espetáculo complexo que envolve pelo menos três elementos distintos: uma sala de cinema, uma projeção de uma imagem em movimento e um filme que conta uma história de aproximadamente 2 horas. À exemplo do que vem sendo dito hoje sobre as novas tecnologias de comunicação, poderíamos dizer que o cinema sempre foi multimídia, uma vez que faz convergir três dimensões diferentes em seu dispositivo: a arquitetura da sala, herdada do teatro italiano, a tecnologia de captação/projeção, cujo formato padrão foi inventado no final do século XIX, e, finalmente, a forma narrativa (estética ou discurso da transparência) que o cinema adotou, a partir do cinema de Holywood, influenciados pela vontade de viajar sem se deslocar (=imersão).

Quando dizemos que os irmãos Lumière inventaram o cinema, esquecemos que o cinema dos irmãos Lumière só continham as duas primeiras dimensões supracitadas. Na verdade, foi apenas recentemente que começamos a distinguir o cinema dos primeiros tempos (1896-1908), cinema de atrações (Noël Burch André Gaudreault, Tom Gunning, etc), ou seja, do cinema narrativo clássico (que emerge em torno de 1908). A história do cinema nos permite distinguir dois momentos absolutamente diferentes, aquele da emergência de um dispositivo técnico (o cinema como dispositivo de produção de fantasmagórias) e aquele outro, fruto de um processo de institucionalização sócio-cultural do dispositivo cinematográfico, o cinema como instituição de uma forma particular de espetáculo (formação discursiva).

Quando, hoje, dizemos que, as novas tecnologias, por um lado, e a arte contemporânea, por outro, estão transformando o cinema, precisamos perguntar: de que cinema se trata ? Portanto, o cinema convencional, que doravante chamaremos de “Forma Cinema”, é apenas uma forma particular de cinema que se tornou hegemônica, um modelo estético determinado histórica, econômica e socialmente. Trata-se de um modelo de representação, “forma narrativa-representativa-industrial”ou N.R.I. (tClaudine Eizykman), “modelo-representativo-institucional” ou M.R.I. (Noël Burch), “estética da transparência” (Ismail Xavier). O cinema, enquanto sistema de representação não nasce com sua invenção técnica, pois leva algo em torno de uma década para se cristalizar e se fixar como modelo.

Entretanto, a “Forma Cinema” não é um dado natural, incontornável, mas uma idealização: nem sempre há sala, a sala nem sempre é escura, o projetor nem sempre está escondido, o filme nem sempre é projetado (muitas vezes e cada vez mais, ele é transmitido por meio de imagens eletrônicas, seja na sala, seja em espaços outros ), o filme nem sempre conta uma história (muitos filmes são atracionais, abstratos, experimentais, etc). Ao longo da história do cinema temos pelo menos cinco momentos fortes que se notabilizam por grandes diferenças, variações e rupturas face à Forma Cinema: cinema dos primeiros tempos, cinema experimental, arte do vídeo, cinema expandido, cinema de exposição.

Hoje, quando entramos em uma instalacão de cinema, em um museu ou galeria, o que mudou se compararmos ao modelo instituído ? Em primeiro lugar, a arquitetura: já não estamos mais em uma sala de teatro (“movie theatre”). Em segundo lugar, muda a forma de projeção: uma instalacão, as imagens se espacializam de forma que o espaço muitas vezes se confunde com as imagens propriamente. Essas projeções são, no mais das vezes, múltiplas, de tal forma que é o espectador que deve se mover para vê-las. Diante dessas telas, o percurso ou o movimento do espectador é determinante. Finalmente, a dimensão temporal de uma instalação é o que mais importa, uma vez que, ao contrário do espetáculo tradicional, as instalacões implodem a temporalidade do espectáculo, de forma que não temos mais como determinar seu começo, meio e fim. É aqui que a contribuição do espectador ganha uma nova dimensão. O espectador pode consagrar mais ou menos tempo ao que vê, seu percurso pode mudar o sentido do que ele vê. Enfim, é como se a obra não preexistisse mais à relacão que vai se estabelecer com o espectador. A instalacão não deixa de ser uma espécie de “parangolé” audiovisual, ou o espectador a incorpora, ou seja, encontra um lugar para si diante daquelas imagens e sons, ou ela não existe.

Passamos, portanto, de uma imagem do corpo para uma imagem-corpo, uma imagem “interativa”, uma vez que ela depende de um processo de incorporacão do espectador. A questão do dispositivo está completamente entranhada neste último regime da imagem enquanto corpo. Tudo nos leva a crer que nas instalações, o cinema sofre uma transformação radical. A instalação permite ao artista espacializar os elementos constitutivos da obra. O termo indica um tipo de criação que recusa a redução da arte a um objeto para melhor considerar a relação entre seus elementos, entre os quais, muitas vezes, está o próprio espectador. A obra é um processo, sua percepção se efetua na duração de um percurso. Engajado em um percurso, envolvido em um dispositivo, imerso em um ambiente, o espectador participa da mobilidade da obra. A experiência da obra pelo espectador constitui o ponto nodal do trabalho. Nela, o espectador é, a um só tempo, espectador e personagem, alguém que experimenta, e ao experimentar, se recria (esta é a única forma de interatividade que interessa).

Na vídeoinstalação “Câmera Foliã” (2004), Maurício Dias e Walter Riedweg, utilizam 4 projeçoes de video que ocupam dois lados de um espaço octagonal (sendo que o fundo e a entrada são vazios), para nos fazer sentir a presença recorrente do movimento do rodopio e do giro nos diversos personagens que desfilam nas escolas de samba do carnaval carioca: as baianas, o mestre sala e a porta bandeira, os passistas em geral, etc. Segundo Luciano Figueiredo, a idéia que originou este trabalho teve origem na observação sobre o movimento rotativo típico das evoluções que a Ala das Baianas. Come se sabe, a Ala das Baianas de qualquer escola faz do movimento circular o forte de seu desempenho, girando incalçavelmente, com suas saias de diâmetros exagerados para que fique evidente de quem assiste das arquibancadas, a força da dança em rodopio, o êxtase e o entusiasmo pelo samba.

Para captar esse movimento de rodopio dos sambistas das escolas, eles criaram um dispositivo em forma de estandarte eletrônico composto com quarto câmeras em seu topo. Esse dispositivo permitia captar, ao ser girado 360 graus, as imagens do entorno, reproduzindo assim a visão do topo do estandarte. Segundo os artistas, “o objeto-camêra criado consegue realizar um tipo raro de concreção entre forma e conceito: uma câmera que por sua forma e movimento está integrada à ação do carnaval do qual participa e que ao mesmo tempo grava todas as imagens que seu escopo e ângulos são capazes de captar, ou seja, suas possibilidades cêntricas e excêntricas, afirmam sua participação na ação do carnaval dissovendo a relação entre aquilo que está dentro e do que se encontra fora, da representação e do mundo externo”. A imagem de cada uma das quatro câmeras é posteriormente projetados no espaço instalativo, de modo a fazer o espectador participar do extase e do vortex do rodopio do samba.

Em seu texto sobre Câmera foliã, Figueiredo faz referência ao trabalho de Vertov. Como vimos, o cinema de Vertov produz uma imagem-percepção pura, uma percepção inumana, imanente aos próprios eventos e objetos. Um olho sem distâncias, nem perspectivas, um olho que não é governado pelo verbo, mas pela vontade de se tornar imanente ao mundo. É nesse sentido que podemos dizer que a instalação de Dias & Redweg nos faz ver como se fôssemos os próprias baianas, portas estandartes, porta-bandeiras e passistas das escolas de samba. Dias & Redweg, mais uma vez, utilizam o outro como intercessor para nos permitir atingir a alteridade, ou seja, nos tornarmos outro.

Em sua instalação, “Alongamento, Praia do Arpoador” (2007), Frederico Dalton utiliza um dispositivo com plataforma giratória onde ele dispõe de dois projetores que projetam duas imagens apontadas em sentido opostos. As imagens mostram um jovem que se alonga no calcadão da Praia de Ipanema em dois momentos distintos, o momento de alongamento e o momento de relaxamento. A plataforma é colocada num dos cantos da sala. Como ela gira, as imagens se deformam (se alongam) ao serem projetadas em ângulos diagonais aos das paredes: “o percurso giratório sobre as paredes em ângulo reto da galeria produz estiramentos e contrações sobre as imagens, o que transfere para o plano dinâmico da percepção da obra a experiência registrada nas fotos. Além disso, ao situarem-se uma diante da outra, as duas imagens da mesma pessoa fazem alusão a autoconhecimento e narcisismo” (Frederico Dalton). Como na maior parte de seus trabalhos, em “Alongamento”, Dalton cria o dispositivo de “proto-cinema” (o termo foi concebido pelo próprio artista), em funcão das imagem obtida e não o contrário. Nesse caso específico, o giro funciona como o elemento genético que faz com que Dalton produza a relação intrínseca entre forma e conteúdo. As imagens giram, e ao girarem, se alongam, ao mesmo tempo em que nos mostram o processo de alongamento do corpo. Também aqui na obra de Dalton, como na obra de Dias & Redweg, não de trata de uma representação de algo que se encontra do lado de lá da imagem, do corpo que ela representa, mas também e sobretudo, do corpo da própria imagem. Trata-se de uma imagem que faz corpo, e esse corpo da imagem, nesses casos específicos, passam pelo giro. É girando que a imagem ganha corpo.

O cinema se move, em parte movido pelo espectador (cinema interativo), em parte movido pelos novos desejos de arte (cinema instalação). Em vários de seus trabalhos de cinema instalativo, a cineasta e artista Katia Maciel utilizou vários tipos de interface: o mouse e a tela do computador, os sensores e, em particular, o sensor de pressão (sensor de piso) para permitir que o espectador possa interagir com as imagens vistas. Katia criou o termo Transcinema para exprimir as transformações em curso no cinema. Em um de seus trabalhos, Ginga Eletrônica (2004), um espaço circular mostra uma roda de capoeira formada pela projeção de quatro telas. Entre uma tela e outra há uma pequena abertura para permitir a participação do visitante. Ao se aproximar, o espectador pressiona,o sensor de piso, e, assim, ativa o sistema que aciona imagens e sons de uma roda e a luta entre dois capoeiristas. Estes são projetados, um diante do outro, em duas telas opostas. No chão da roda, uma imagem subjetiva, filmada por uma câmera presa na cabeça de um dos jogadores, é projetada. Esta imagem remete à sensação do capoerista quando está jogando. O espectador pode sentir então a vertigem dos movimentos de uma maneira próxima àquela que sentimos quando jogamos capoeira. A cada vez que um outro espectador entra no círculo, os capoeiristas são trocados.

V. Do Giro Sufi ao Circuladô.

Uma das técnicas mais antigas e intensas de giro, foram desenvolvidas pelos Dervishes, o Giro Sufi. As imagens dos giros sufis (que podem durar horas) me impressionaram por muito tempo. Os giros sufis são, como as mandalas (círculo mágico), uma forma de conexão profunda do átomo nuclear da psique humana com o cosmos. As poesias místicas cantadas no “Sama”, juntamente com a música e o giro, criam no Dervishe uma embriaguez que gera uma sensação de esquecimento do eu e de imersão no divino. Os derviches se deslocam no início com lentidão e fazem três vezes a volta na pista. Cada dervishe se volta para aquele que está atrás dele, e se inclinam, em uma saudação, antes de retomar suas circuevoluçoes. Depois da terceira volta, o mestre toma seu lugar no tapete e os dançarinos esperam. Então os cantores entoam seus cantos e quando eles param, os Dervishes, em um gesto grandioso, fazem cair seus mantos negros, desvelando suas vestes branca. Esse gesto que simboliza a perda da ilusão, como se o envelope corporal desse lugar a ressureição. De braços cruzados sobre o peito e mãos sobre os ombros, od Dervishes começam a girar lentamente em torno de seus eixos. Quando o giro atinge uma certa velocidade, eles levantam os braços, a mão direita virada para o céu para recolher a graça divina, enquanto a mão esquerda está voltada para a terra, de modo a fazer a graça divina descer sobre a terra. Ao mesmo tempo que eles giram em torno deles mesmos, eles giram em torno da sala. Esse duplo giro tem sua simbologia: assim como o homem gira em torno de seu centro, seu coração, enquanto os astros giram em torno do sol. Esse simbolismo cósmico é o verdadeiro sentido do Sema: toda a criacão gira em torno de um centro. A dança não é apenas uma reza, ela é o símbolo do processo de superação de si em prol da união suprema com o divino. Esse movimento intenso de circumambulation está presente em outro momento jubilatório do islamismo: o giro em torno da Meca.

A performer Eleonora Fabião, desenvolveu uma série de trabalhos em torno do giro, que ela chamou de “Giro versao rua” e “Giro, versao galeria”. Fabião desenvolveu uma técnica particular para girar por longos períodos (meia-hora, uma hora, duas horas), em baixo de umbrais de portas, na rua e mesmo em pontes. Ao contrario da dançarina clássica (que gira fixando um ponto no espaço) ou do Dervishe, que gira fixa o olhar na mão direita, Eleonora olhava sempre para a frente, para o mundo: “de frente para o mundo que está em todos os lados.”

Nas performances de Fabião, há sempre elementos outros que conectam o seu giro a certos elementos pertubadores: grossos cabos de energia, amoladores de faca, pontes, etc. É preciso lembrar como a idéia de fazer esse trabalho lhe veio. Quando morava em New York, e nos dias que precederam a queda do World Trade Center, Fabião se sentia tonta e meio perdida. Entrava na sala de trabalho, mas não conseguia se concentrar. Seu pensamento divagava, sem norte. Daí que um dia ela começa a girar como um modo de exorcizar essa condição de desnorteamento, que fica claro em um ou outro de seus comentários chamados “Spinning Notes”, ainda inéditos. Diz ela:

“Estou procurando girar olhando para frente, para o mundo; de frente para o mundo cuja frente está em todos os lados”

“manter o corpo e a mente relaxados, o mais relaxados possível, nessa movimentação; estar ao mesmo tempo perceptiva, altamente aberta para tudo o que se passa ao meu redor, mas parcialmente cega e surda. Estar presente e ausente; ser capaz de me relacionar com o outro de uma maneira nova e inusitada e, ao mesmo tempo, ser incapaz de me relacionar sem rodeios”

“me caminhar em círculos friccionar até romper as fronteiras entre interno e externo sentir os músculos, os ossos, os órgãos repuxando cair: nesse giro, longo giro, mesmo que não se caia, cai-se; a quasi-queda move o girar”
Essas anotações de Fabião nos lembram o belíssimo ensaio escrito por R.D. Laing, o psiquiatra psicodélico da antipsiquiatria. Laing, ao escrever “Knots” (Laços), tentou catalogar e listar uma série de sintomas ou loops mentais que afetavam seus pacientes. Esses loops mentais são escritos sob a forma de prosa, de diálogo, entre dois personagens, Lúcio e Lúcia. Os diálogos, parecem abstrações intelectuais, mas exprimem muito profundamente os loops mentais gerados em estados de neuroses, onde o automatismo psíquico ganha uma certa autonomia sobre o nosso pensamento. Estamos diante de certas situações que não possuem mais conexões com as situações traumáticas, mas essas situações voltam em sentimentos que se repetem.
Tomemos uma delas, que tem a ver com a situacão da desconstrucão, pelo giro, entre o dentro e o fora, por exemplo. Citamos Laing, respeitando sua maneira de espacializar o discurso:
“A gente esta dentro
logo a gente está for a daquele dentro onde a gente esteve
A gente se sente vazia
porque não há nada dentro da gente
aquele dentro do for a
dentro do qual a gente já esteve
quando a gente trata de por a gente
dentro daquilo de que a gente está for a;
para devorar e ser devorado
Para pôr o fora dentro e para estar
dentro do fora”

Mas foi quando, em 1989, assitimos ao documentário “Thelonious Monk, Straight no Chaser”, que decidi realizar um trabalho com o zoetrópio, tendo como tema principal o giro. As performances de Thelonious, com seu minimalismo errante, suas harmonias dissonantes e a indiscernibilidade da melodia e a harmonia, são tão hipnópticas para quem as houve com freqüência, quanto o Giro Sufi. O que muitos não sabem, é que Thelonious foi pouco a pouco, mergulhando em um processo de esquizofrenia sem retorno. Depois dos anos de 1960 em diante, as crises de Thelonius se davam com mais frequência, o que levava Thelonious a rodopiar como um peão. Por ironia, o nome completo do Thelonious era: Thelonious Sphere Monk. É como se a experiência do giro, de anulação e de fragmentação esquizofrênico de Thelonious já estivesse, desde o início, inscrito em seu próprio nome.

Lembramos que o zoetrópio foi dos primeiros dispositivos de imagens em movimento. foi inventado em 1834 por William Horner, o zoetrópio foi batizou « Daedalum » ou « roda do diabo ». O Zoetrópio é um tambor contendo ranhuras ou frestas que permitem o espectador visualizar um conjunto de imagens em seu interior. Essas imagens, formam uma animação. Na época que o zoetrópio foi inventado as imagens eram geralmente feitas a mão. Posteriormente o zoetrópio se tornou um instrumento dos animadores, que podem utiliza-lo para testar o processo de intervalo-ação.

O projeto Circuladô (2004-2009) réune imagens de arquivo de personagens que vivem situações limite: Thelonious Monk (Monk rodopia em torno de si mesmo, no palco, como se estivesse em um surto psicótico); Édipo (no filme de Pasolini, “Édipo Rei”, cada vez que Édipo chega em uma encruzilhada, coloca a mão nos olhos, gira, e segue o caminho na direção em que ele parou, como uma forma de não escolher o destino previsto pelo oráculo), Corisco (no filme de Glauber Rocha, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Corisco, antes de cair morto, abre os braços e gira), Sufi (o Giro Sufi é uma das técnicas mais antigas e vigorosas de giro e transe), Pomba Gira (quando a Pomba Gira entra em transe ela realiza seu giro). Cada Zoetrópio contém imagens a experiências limites (loucura, transe, morte, destino) de personagens ao mesmo tempo singulares e universais. Cada espectador poderá interagir com os zoetrópio, imprimindo em cada um deles um ritmo para a imagem e o som. A instalação tenciona fazer o espectador vivenciar uma imagem híbrida, entre o pré e o pós-cinema.

O Projeto Circuladô, como a maior parte de meus projetos, uma vez conceituado, se atualiza em dispositivos imagéticos diferentes. 1) uma vídeoinstalação onde vemos cinco telas com os personagens e os sons correspondentes; 2) uma instalação com zoetrópios sonoros; 3) uma instalação interativa, onde o espetador, por meio de uma manivela, pode determinar a velocidade do giro das imagens projetadas no espaço. O que me interessava, desde o começo, era criar um circulador no qual vemos personagens rodopiando, por meio do giro que os espectadores imprimem na manivela do dispositivo. As imagens e sons criariam ainda efeitos psicodélicos nas paredes das sala, de tal forma que o exterior dos aparelhos fosse complementada com um ambiente hipnótico. Enfim, trata-se de misturar, em um único trabalho, dispositivo e conceito, loops mentais e loops físicos, imagens de giro e dispositivos circulares, imagem em movimento e movimento do espectador. Ou seja, fazer desse trabalho uma ponte que conecta os dispositivos pré-cinematográficos aos dispositivos pós-cinematográficos tendo como conteúdo e como forma a questão do giro e do corpo da imagem.


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____________. Cinema 2: imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
Couri, Aline. Imagens e sons em loop: tecnologia e repetição na arte. Dissertação de mestrado orientada por André Parente. Escola de Comunicação, UFRJ, 2006.
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Gaudreault, André e Gunning, Tom. “Early Cinema as a Challenge to Film History,” IN: Wanda Strauven (ed.) The Cinema of Attractions Reloaded. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2006.
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Maciel, Katia e Parente, André. Redes Sensoriais: ciência, arte e tecnologia. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003.
Mitry, Jean. Le cinema experimental. Paris: Seghers, 1976.
Parente, André. “Cinema de vanguarda, cinema experimental e cinema do dispositivo”. IN: Cocchiarale, Fernando. Filme de Artista 1965-1980. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007.
Sitney, P Adams. Visionary Film: The American Avant-Garde, 1943-2000. New York: Oxford Univesity Press, 1974.
Xavier, Ismail . Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005.

Posted by Patricia Canetti at 8:55 PM