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outubro 13, 2005

Terça-feira, no SPA...

POR CLARISSA DINIZ

Certas coisas que ontem fiz e vi me fizeram sentir e pensar sobre os direitos de posse e de uso que temos sobre os lugares que, por não serem de ninguém, são de todos; e mais: sobre as curtas distâncias que separam-nos uns dos outros, e sobre como e quando essas distâncias não só podem, mas devem, ser vencidas.

Refiro-me ao que habitualmente chamamos de arte pública e todas as suas variações, raramente dando-nos conta do complexo de relações em níveis diversos (social, econômico, político, estético, religioso, sexual, etc.) com o qual lidamos quando nele inserimos nossa arte.

Nesse sentido, duas ações do SPA, realizadas na terça-feira, me chamaram a atenção por influírem, mesmo quando não pretendiam, na relação das pessoas entre si e com a cadência da cidade.

Uma dessas ações foi uma intervenção urbana/social do Grupo Pardieiro, integrado, em sua atual formação, por Anna Zidanes, Guilherme Luigi, Noá Jofilsan e Renata Galvão.

O Pardieiro propôs utilizar as carroças dos catadores de lixo do Recife como locais para anúncios, como sugere o título da intervenção - Out Media, ou como local de denúncias, provocações ou conscientização social, ao afixar, nas carroças, faixas que ora referiam-se à (sub)profissão do catador ("Eu só cato porque você não separa." ou "Você faria o que eu faço?", entre outras), e ora convites a prováveis anunciantes ("Você vem sempre aqui? Eu venho. Anuncie aqui!", entre outras).

O trabalho do grupo partiu de uma clara sensibilização e preocupação política e social, ao apropriar-se da causa de um grupo específico da sociedade para dela extrair (ou impor...) um discurso pronto a ser revelado para o restante da mesma, através das faixas acima referidas.

O que percebo na trajetória desse trabalho que, claro, deu-se com algumas reuniões entre proponentes e catadores, é que, com a perigosa apropriação de um discurso alheio ao seu, por mais que se possa tê-lo tentado elaborar em conjunto, e sua posterior alocação nos genuínos locais de onde esse discurso realmente poderia ter saído, as carroças, leva-se, em última instância, àquele que vê a carroça com as frases, pensar que foram os próprios catadores os idealizadores não somente das frases, mas, sobretudo, da ação. Ou seja, consolida-se um discurso que é simples aparência, no sentido literal da palavra, pois se faz parecer como sendo dos catadores, quando, em verdade, não o é. Cria-se, portanto, mesmo que ingenuamente, um espaço propício à simulação de um sentimento ou idéia que não lhe é original; gera-se espaço para a hipocrisia.

É aí que mora minha maior preocupação com a intervenção Out Media, pois não é preciso ser um psicólogo para perceber a sincera intenção do Pardieiro de ajudar os catadores ou lutar pelos direitos de sua classe, mas, apesar desta admirável intenção, faltou-lhes perceber a perversidade dos mecanismos de uma cidade, que são capazes de transformar uma ação de base notadamente generosa, numa ação que soa, ao menos para mim, como fingida.

É também nesse espaço entre idéia do artista e sua concretização em espaço público que se situa a minha preocupação - e meu espanto, com uma performance por mim realizada, a Afora.

Nessa, eu caminhava sobre pedaços de grama, que sob meus pés formavam um tapete, colocando cada parte do tapete à frente do anterior, de modo que, em minha caminhada, eu pudesse estar sempre pisando na grama. A ação foi feita à exaustão.

Não pensava eu, provavelmente pela mesma ingenuidade do Pardieiro, que uma ação tão simples pudesse intervir tão intensamente na cidade e nas pessoas, a ponto desta intervenção ser rebatida e recair-se novamente sobre mim, ainda durante a realização da performance.

Em três horas de caminhada nas ruas do centro do Recife, minha imagem foi brinquedo nas bocas e mãos do povo, como não poderia deixar de ser, mas em instância muito mais abrangente do que eu pensara. Nessas três horas, passei de uma mulher normal a uma pagadora de promessas, à pecadora, à artista, à ecologista, à esquizofrênica, e, pasmem!, a alguma espécie de mulher santificada.

O que antes era uma intenção puramente poética e estética, tornou-se, quando entregue aos mecanismos e à cadência da cidade, um acontecimento que quase foge ao meu controle, não somente arrancando as mais diversas reações das dezenas de pessoas que me acompanharam durante o trajeto, mas, sobretudo, recaindo sobre mim de forma surpreendente.

Refiro-me a alguns episódios marcantes da caminhada, possíveis somente pela autônoma ação do povo que me assistia e a mim assistia, sem interferência de alguém que de fato soubesse o que eu ali estava fazendo, apesar de, ao final da performance, nem eu mesma saber, por vezes, o que ali fazia. Foram alguns dos mais marcantes episódios da performance: um exorcismo que uma mulher tentou fazer, numa língua por mim incompreendida, pressionando minha cabeça com força incrível; os inúmeros toques de pessoas que insistiam em saber o que eu fazia, se precisava de ajuda, etc.; a ligação de um policial para um hospital psiquiátrico, chamando uma ambulância para me resgatar (o que foi logo desfeito); as incontáveis vezes que compraram e quase me forçaram a beber água, tendo, inclusive, um homem jogado água em cima de mim; a surpreendente atitude das pessoas resolverem, já nos últimos 30 minutos da performance, carregar as gramas junto comigo; a generosa atitude de construir uma barreira humana e parar o trânsito quando eu resolvi atravessar uma movimentada rua da cidade; e, com o fim da performance, a extremada atitude de me seguirem até o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, onde estavam minha roupas, me tocando, puxando, exigindo que eu falasse, pois até então permanecera em silêncio.

E mais: o forte rebatimento que tantas reações do povo tiveram sobre mim. Se para eles eu parecia uma pecadora, eles realmente me fizeram assim sentir. Se eu era um artista dos Estados Unidos, e por isso não compreendia sua língua, era como um estrangeiro em território estranho que eu me sentia. Se, ao final, as pessoas queriam me tocar como se eu fosse santa, foi como uma espécie de figura não-humana que eu me senti. E, durante as três horas de exaustiva ação, fui imersa numa energia e nas malhas da cidade e do povo, que fizeram de mim coisas que nem sempre eu queria ser. Eu, que havia me disposto a fazer uma arte pública, senti, de fato, o peso do que isso significa, e, talvez por sorte, consegui finalizar a ação mais ou menos dentro do que eu pretendia.

Ao final dessas experiências todas, fico com a certeza da impossibilidade de um artista ter domínio sobre o que pretende, sobretudo quando a arte toma o espaço de todos, e da importância que tem refletir critica e calmamente sobre a ação e seus possíveis desenrolares, para que nossas mais sinceras intenções não sejam traídas pelo instrumento básico das mesmas, o olhar dos outros.

Posted by at 3:41 AM | Comentários(2)
Comments

Clarissa,
Consegui sentir o q aconteceu c vc. Dá um pouco de aflição. Como se fosse um sonho, não há realmente controle da situação. Tudo pode acontencer a qualquer hora e acontece. Como psicólogo eu diria q vc suspendeu a relação do ego com os outros. Pôs de lado s "persona". Então vieram os outros e tentaram fazer do ET (q vc. se tornou) alguém, uma pessoa(persona), dar-lhe uma função, inserí-lo novamente no tecido social. Pra gente refletir em como nos tornamos previsíveis, padronizados, automáticos. Quando saimos fora do script acontece um tumulto, não só fora, mas dentro da gente.abs.evandro

Posted by: evandro at outubro 29, 2005 3:17 PM

Clarissa você confunde alhos e bugalhos do início ao fim do seu texto, quando na verdade a sua intenção é claramente falar da "importância da sua obra e sua implicação no espaço urbano". Para falar de si mesma não precisava tantos arrudeios. A sua análise perde muito tempo em querer identificar, "espertamente", a hipocrisia da obra e dos artistas do pardieiro para justificar de forma sub-reptícia suas "conquistas e decobertas" com a performance Afora.O jogo polissêmico das carroças que aglutina ironia,sarcasmo,provocação social, campanha de mídia alternativa, só acontece em toda sua potência quando borra a barreira da autoria. Não há problemas se você confundir aquela ação como originária dos catadores, esse borrão é nescessário para que aconteça a ironia e a formulação de um discursso sarcástico-poético-político.
Um grande abraço
Leonardo

Posted by: leonardo at setembro 25, 2006 9:17 PM
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