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agosto 14, 2004

Comentário sobre a Aula Magna de Gilberto Gil na USP

por Patricia Canetti

Li o texto sobre Cultura Digital e Desenvolvimento proferido pelo Ministro Gilberto Gil em sua Aula Magna na USP (reproduzida abaixo nesse blog) com atenção e perplexidade.

Num primeiro momento, o conteúdo de sua fala é de deixar qualquer um emocionado e entusiasmado com as propostas e o entendimento de nosso Ministro sobre a Cultura Digital, mas quando comparamos o discurso à realidade vivida nas ações e omissões de nosso Ministério da Cultura, o resultado nos deixa perplexos diante de uma total discrepância entre pensamento (do nosso Ministro) e ação (do nosso Ministério).

O comentário do Ministro Gil sobre o prefácio de Hermano Vianna no livro "Software Livre e Inclusão Digital", a respeito do alcance que a revolução promovida pelo Linux vem imprimindo no sistema global, é particularmente importante para a esquizofrenia que estamos vivendo: "o mais interessante de tudo isso é que este movimento surgiu na sociedade, e não nas empresas, nos partidos, nas entidades, nos modos de representação ou de organização tradicionais, o que implica uma mudança estrutural, profunda, não apenas de conteúdo, mas de forma, de processo, que se reflete no que se diz, no que se propõe, e também em como se diz, em como se propõe".

De um lado, temos o pensamento de nosso Ministro da Cultura percebendo a importância que os movimentos sociais adquirem no uso das novas tecnologias, influenciando e transformando, mesmo não fazendo parte de organizações instituídas. Também encontramos no seu discurso o direcionamento contemporâneo que ele quer imprimir ao seu Ministério: suas colocações sobre a experimentação de novos rumos e a dialética da tradição e da invenção apontam para conceitos de liberdade, criatividade e ousadia.

Do outro lado, temos o Ministério da Cultura se relacionando única e exclusivamente com entidades muito bem definidas e relacionadas aos mercados econômicos culturais vigentes. Cultura Digital se resume a Software Livre e Inclusão Digital; os novos Conselho e Agência de Cinema e Audiovisual restringem-se ao Cinema e a Televisão; enquanto, os museus - o "lugar" da arte - continuam sendo tratados anacronicamente. (Vide o Edital Museu Brasileiro, que trata apenas da aquisição de equipamentos, aparelhos e materiais, vetando inclusive o apoio à instalação e montagem, eliminando qualquer possibilidade dos recursos serem utilizados para construção de sítios eletrônicos.)

Esse choque entre o que encontramos de mais ousado na fala de nosso Ministro e as ações de seu Ministério nos leva a uma leitura mais realista de seu discurso e ao entendimento da política cultural que está sendo desenvolvida.

Todo o foco de interesse da Cultura está voltado para o desenvolvimento de uma Indústria Cultural. Não haveria problema nesse direcionamento, se ele fosse tratado como meio, como forma de enfrentarmos os desafios de ampliarmos o orçamento da Cultura em nosso país e de inseri-la no contexto da economia global. Mas o conjunto de propostas do Ministério da Cultura aponta a Indústria Cultural como finalidade e a transforma em filosofia de governo, causando o empobrecimento e o esvaziamento da percepção da contemporaneidade. Ao invés da dialética entre tradição e invenção proposta pelo Ministro Gil, o que temos hoje é a cisão das duas e o comportamento do Ministério da Cultura em relação à ARTE é a prova disso.

No seu discurso, o Ministro Gil fala do fato da revolução das tecnologias digitais ser essencialmente cultural e discorre sobre o seu potencial para os bens e serviços culturais. Ele termina esse parágrafo mencionando as novas formas de arte. Apenas menciona. Não adentra o assunto, como o seu Ministério também não o vem encarando.

O fato do Ministério da Cultura não discutir os novos segmentos de arte ligados a Arte, Ciência e Tecnologia marca o ponto cego que impossibilita a dialética entre tradição e invenção e expõe a fragilidade do discurso do Ministro Gil e a superficialidade de sua política cultural.

A arte é a tradição e é a invenção. Estamos tradicionalmente ligados à invenção. Sempre trabalhamos com a antecipação do futuro. E é justamente essa informação da invenção e da antecipação do futuro que valoram o trabalho de arte.

A convergência das novas tecnologias estimula a convergência das expressões artísticas. Música, literatura, dança, teatro, cinema, artes visuais e tecnológicas se mesclam e rompem com os padrões de suas categorias ancestrais, permitindo a arte vivenciar um novo espaço-tempo. Passado-presente-futuro, o tempo da arte, se configura diante de nós nos hibridismos e interdisciplinaridades da contemporaneidade.

Apesar de toda essa interação entre a arte e as complexidades do tempo em que vivemos, o que vemos hoje no Ministério da Cultura é a total falta de reflexão sobre a arte; é a arte ocupando um não-lugar. Conseqüentemente, a cultura e o seu papel na construção da identidade social são pensados de maneira superficial. A Indústria Cultural, que deveria ser apenas um meio, é confundida por finalidade e, com isso, suas premissas formatam a nossa política cultural. Sem a reflexão da arte, a indústria engole a cultura e ficamos patinando na mediocridade de suas regras específicas e perdidos diante das exigências de nosso tempo.

Para complicar ainda mais, não vejo como os artistas poderiam influenciar nesse processo. Por não sermos sindicalizados, associados em algum tipo de entidade burocrática (somente temos visto a organização de produtores ligados ao cinema e ao teatro), o Ministério da Cultura não nos enxerga e somos sumariamente excluídos, colocados à margem do debate.

(Apesar da retórica do Ministro Gil sobre a importância dos movimentos sociais, que ocorrem justamente fora das organizações tradicionais, o que ouvimos do representante do MinC, Cláudio Prado, Coordenador de Políticas Digitais, quando do único encontro com a Mobilização pela Arte Tecnológica, foi o descarte de nossa representação, justamente por ela se dar pela internet e não ter nenhum respaldo jurídico formal.)

Para concluir e exemplificar a minha desesperança, lembro a todos que a vídeo-arte brasileira completa 30 anos e que não encontramos um único evento em nosso Ministério da Cultura comemorando o fato. Como também não houve nenhum contato entre os vídeo-artistas e os proponentes do Projeto de Lei da ANCINAV, apesar da nova lei ser clara em dizer que todo Conteúdo Audiovisual, de qualquer finalidade e natureza, será por ela regulamentada.

Patricia Canetti é artista e criadora do Canal Contemporâneo.

Posted by Patricia Canetti at 8:30 PM | Comentários(1)
Comments

Olá, Patrícia, muito boas suas ponderações sobre a Aula Magna do Gil-ministro. Concordo em gênero, número, grau e algoritmos. Abraço.

Posted by: ricardo aleixo at setembro 4, 2004 1:41 PM
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