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outubro 6, 2007
CONEXÃO Fortaleza - Quando ele dobrou a esquina..., por Ana Cecília Soares

CONEXÃO Fortaleza - Quando ele dobrou a esquina...
ANA CECÍLIA SOARES
Aparentemente, poderia ser só mais uma gaiola, dentre muitas outras, se não fosse a presença de um detalhe específico... Mas, antes que falemos do tal detalhe, é preciso rememorar uns fatos, que muito contribuíram para tornar esta gaiola a não-gaiola ou, melhor, algo mais do que parece ser, ou a fizeram ser algo mais do que representa, entende? Enfim, veremos...
Um dia, um artista dobra a esquina da rua onde mora e de repente se depara com algo meramente banal, que mesmo portador desta banalidade cotidiana vai fazer promover um estalinho de idéias em sua cabecinha borbulhante.
O fato é que nosso artista deparou-se com uma velha casa, mais para um cubículo carcomido pelas ferrugens do tempo, que apresentava fixada em uma de suas paredes laterais uma pequena gaiola contendo desajeitosamente um pombo branco, de olhar conformado. Coitado do pombo! Parecia um gigante enjaulado. Tudo isso inquietou profundamente o artista, que seguiu seu caminho pensando.
E idéia vai, idéia vem, noites em claro e cérebro suado, eis que surge algo interessante. Temos, então, à nossa frente, uma estrutura mediana de madeira, com suas pequeninas barras de ferro e piso revestidos por uma limalha de alumínio, adornada simetricamente por espinhos. Sendo mais direta, temos à nossa frente uma gaiola composta por espinhos, que é o tal detalhe a que me referi lá no início.
É, espinhos! Espinhos que ferem, que fazem doer, mas que, ao mesmo tempo, toda esta constituição formada por seu agrupamento promove ao olhar um encanto, meio que anestésico.
Armadilha para Caçador de Pássaros é o nome da obra do nosso artista, que na verdade se chama Euzébio Zloccowick. A partir dela, é possível perceber a transformação de um objeto comum, digamos até que invisível, em algo real para os nossos sentidos. De repente o que era passa a ser, passa a existir novamente.
Estamos diante da obra que atrai e repulsa, da dificuldade, mesmo, de contato em sentir toda essa estrutura espinhenta. É o belo que fere, que não podemos tocar.

Todo o trabalho é perpetuado por antíteses, que refletem uma série de conflitos da própria relação homem/natureza, caçador/caça, liberdade/repressão. A Armadilha, partindo do politicamente ecológico, é um questionamento sobre a própria liberdade que temos. Na verdade, somos também como o pombo enjaulado.
Esta não é a única obra de Zloccowick a fazer uso de espinhos. O artista vem trabalhando com este material há algum tempo. O espinho é algo simbólico para o conjunto de sua obra, o que remete a diversas leituras por entre as esferas do sagrado e do profano na relação do homem com os objetos.
Cem Pecados é outro trabalho do artista que evoca esta idéia. A obra é uma composição feita por cem maçãs recobertas por espinhos, onde está bem evidenciada a noção de sacrifício como forma de se alcançar a elevação espiritual: a maçã é a fruta-símbolo do pecado. Pecado este que pode ser redimido por meio do sofrimento, que está concretizado na imagem do espinho.
Armadilha para Caçador de Pássaros foi um dos trabalhos selecionados para o 58° Salão de Abril de 2007, em Fortaleza, que aconteceu no Museu de Artes da Universidade Federal do Ceará (MAUC). Apesar de estar localizada em um espaço, digamos, meio inadequado, por não permitir uma melhor visibilidade de suas dimensões, a obra não deixa de atrair a atenção do público, pois, afinal... "aparentemente poderia ser só mais uma gaiola, dentre muitas outras, se não fosse a presença de um detalhe específico...".
outubro 4, 2007
CONEXÃO Fortaleza/SP - Um passeio pelo Festival Videobrasil: o cinema multimídia e interativo de Peter Greenaway, por Camila Vieira

Uma das malas de Tulse Luper: foto do blog do Videobrasil
CONEXÃO Fortaleza/SP - Um passeio pelo Festival Videobrasil: o cinema multimídia e interativo de Peter Greenaway
CAMILA VIEIRA
Consolidado como importante espaço de exposição de obras que articulam cinema, vídeo e artes visuais e de intercâmbio entre artistas contemporâneos, o 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica Sesc_Videobrasil começou sua programação -que se estende até 25 de outubro- com o estranhamento que seu próprio slogan sugere. Não se trata de qualquer tipo de estranhamento -o que poderia sugerir algo meramente bizarro e negativo-, mas sim de um certo deslocamento de olhar. Com o lema Limite: Movimentação de imagem e muita estranheza, a nova edição do festival instiga o público a perceber inovadoras propostas da arte contemporânea, que tensionam linguagens, que superam barreiras e que até escapam dos cânones de rótulos e das classificações. Por exemplo, o que dizer do ambicioso projeto Tulse Luper Suitcases, do cineasta e multiartista britânico Peter Greenaway, principal convidado desta edição? Cinema, VJ performance, instalação, jogo para internet? Na verdade, é tudo isso junto e um pouco mais.
Envolvendo exposição, trilogia de filmes, sites e games na Internet e sessões de VJ, o novo projeto de Greenaway é, de fato, o principal atrativo deste festival. Por meio de diferentes linguagens, a intenção do cineasta não é apenas dimensionar a trajetória de seu personagem ficcional Tulse Luper, um escritor e projetista que nasceu em 1911, passou parte da vida em prisões e desapareceu em 1989, deixando seu testemunho em 92 maletas espalhadas pelo mundo. Mais do que "narrar" a vida de tal personagem, Greenaway propõe a implosão do conceito de cinema. Desde a abertura do festival, sua polêmica afirmação de que "o cinema está morto" circula nas páginas dos principais jornais do Brasil e continua sendo motivação de calorosas discussões entre os visitantes do evento.
Com cerca de 60 filmes no currículo, Greenaway não acredita no cinema narrativo, linear, marcado pelo texto e pela influência da literatura. Para o iconoclasta, este tipo de cinema morreu em 31 de setembro de 1983, com a chegada do controle remoto nas casas dos espectadores de televisão, possibilitando escolha das imagens e acenando para a necessidade do cinema encontrar para si um suporte mais interativo. Inovação que ainda não ocorreu, segundo o multiartista, que participa de palestras, durante o festival, com sede no Sesc Avenida Paulista e no CineSesc, em São Paulo.
Para demonstrar sua tese de que o "cinema morreu", Greenaway abriu o festival no último domingo com sua VJ performance, realizada ao vivo e pela primeira vez a céu aberto, em palco montado na lateral do Sesc, na rua Leôncio de Carvalho, situada entre a avenida Paulista e a alameda Santos. Apesar do frio de 14º C, cerca de duas mil pessoas -de acordo com a produção do evento- se amontoaram no local para conferir de perto o cinema multimídia e interativo que Greenaway planejava colocar em prática. Durante 50 minutos, o cineasta reeditou as principais cenas de sua trilogia de filmes The Tulse Luper Suitcases, projetadas em três telões e, do outro lado da rua, na fachada do prédio do Itaú Cultural.

VJ Performance de Greenaway, em São Paulo: fotos do Videobrasil
Sua "VJ performance de live image" consistiu em ficar de pé diante de uma tela de plasma sensível ao toque e escolher com os dedos quais imagens desejava projetar entre mais de dois mil fragmentos de sua trilogia de sete horas de duração. A instantânea edição de imagens era acompanhada dos ruídos e dos trechos de músicas mixadas também ao vivo pelo DJ holandês Serge Dodwell. Apesar do barulho estrondoso que saiu das caixas de som, o público pareceu não ter reagido bem, já que a maioria limitou-se a permanecer parado, sem dançar, diferente do que pretendia Greenaway. Além de romper com a linearidade da projeção fílmica, o multiartista desejava que sua VJ performance sacudisse os corpos da platéia. Não foi possível. Mas os calorosos aplausos no final indicaram que o público em geral gostou do belo espetáculo visual e do estranhamento proposto.
Se você perdeu a performance de Greenaway, mas tem curiosidade em saber mais sobre o projeto Tulse Luper Suitcases, ainda dá tempo de conferir a exposição com as 92 maletas do personagem no 4º andar do Sesc Avenida Paulista. Mais informações pelo site do Festival Videobrasil.
Camila Vieira é jornalista e estudante de Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
outubro 3, 2007
CONEXÃO Fortaleza - Outro mundo é, então, possível, por Ana Valeska Maia

CONEXÃO Fortaleza - Outro mundo é, então, possível
ANA VALESKA MAIA
Já disseram que os olhos são as janelas da alma. Na obra da artista Jacqueline Medeiros as janelas são territórios apropriados pelo olhar. São fragmentos de mundo. Exercício de lugares possíveis. Portais de sentido onde o olhar se apropria e cria, tecendo uma poética. Territórios férteis, onde acontecem encontros: reunem olhar, sujeito e mundo. Instigada pelo fluxo dinâmico, intenso e imprevisível das cidades, a artista tem o olhar aguçado para captar os entrelaçamentos de pensamentos e convivências. A arte, então... acontece!
Seu olhar para as cidades partiu de uma repetição. Sempre um quarto de hotel. Sempre os falsos sorrisos acolhedores. Ao abrir a porta, a paisagem se repetia: cama, televisão, telefone, frigobar. Tudo muito limpo, arrumado e previsível. Recorrentes não-lugares permeados pela angústia do insípido mesmo. Tudo igual, até abrir a janela. Ao abrir a janela, surgem mundos novos. Todo igual traz consigo a sua peculiar diferença.
Ao artista antenado com seu tempo será improvável fugir da percepção de que "vivemos num mundo confuso e confusamente percebido", como disse Milton Santos . A confusão da vida urbana celebra pactos que nos cegam, impondo a doutrina da pressa e da efemeridade das relações. Como se estivéssemos condenados a estamos juntos e, ao mesmo tempo, incomensuravelmente solitários. Um individualismo egóico reina na coletividade urbana, ornamentado pelo consumo. Inseridos na orgulhosa civilização, sem espaço para sermos singulares, coexistimos num mundo que grita em seus mais amplos sentidos: não temos mais tempo!
Os imperativos da caótica pós-modernidade são objeto de reflexão no trabalho O que você precisa fazer para sobreviver?, apresentado na Semana Pernambucana de Arte - SPA (2004). A artista adesiva frases nas calçadas, onde os transeuntes se deparam com os comandos -não pare, não pense, não sinta. Em 2006, expõe no Salão de Abril três fotos manipuladas digitalmente, onde as contradições da vida urbana, permeadas pelas agressões ao interior de nossa existência e ao espaço coletivo são novamente tematizadas. Vistos em outra proporção, a intervenção na habitualidade do espaço público pauta a amplitude da linguagem da arte, do crucial papel contemplativo, da totalidade do conhecido que fundamenta o caminho para mundos novos. O olhar da artista abre portais, guardados a 7 chaves (Alpendre, 2005) e doa ao público paisagens idílicas, lugares de paz, vivências, sentidos.

O tempo e a memória entre a crueldade e a poesia. O tempo pulsa em Água mole em pedra dura... (vídeo, 2006). O ritmo que impõe a recorrência dos movimentos das marés nos faz pensar em nosso organismo, com seus fluxos naturais agredidos pelos valores contemporâneos. Os afetos pedem tempo. Afetos que podem ser engolidos na cidade pela ansiedade do novo, onde abrigos de memória se despedaçam. Vizinhos que não mais existem, tornaram-se espectros de existências. Pessoas que passam pela cidade e nela deixam marcas invisíveis para olhos disciplinados. Gravam afetos, entornam resquícios de sua permanência no local. A artista recolhe esses pequenos amuletos, escombros de histórias da vida privada, tece narrativas. Quanta vida existiu neste lugar? Quantos sorrisos, nascimentos, aniversários, perdas ou decepções existiram na rua Raimundo Resende, 55?
Uma metáfora do tempo nos traz o vídeo Era uma vez (2006). Nos leva a uma reflexão da vida como passagem. A areia que marca a passagem do tempo pela ampulheta nos remete aos processos inevitáveis, à vida mediada por seus contrários, por suas construções e desconstruções. O que fica do que foi vivido? Quais escolhas determinarão a condução de nossa vida? Em De que lado você está? (2005), encontramos imagens de pessoas hipnotizadas, enlaçadas nas amarras do sistema, submetidas à violência simbólica que engendra o estímulo ao ser passivo. Agrupados, mas limitados em nossas percepções, caminhamos num túnel aparentemente sem saída (vídeo, 2007), onde a etapa seguinte somente é percebida por quem tem olhos para ver o caminho de luz.
O caminho de luz que a arte possibilita. Para Paul Klee, "a arte não representa o visível, a arte torna visível". Clifford Geertz, por sua vez, alega em suas reflexões sobre o imaginário e a realidade, que o imaginário é tão real quanto a própria realidade. Duas aparentes dicotomias, que nos possibilitam metamorfoses. Podemos assim ser grandes ou pequenos, voar ou andar nas nuvens. (Ah se eu pudesse...andar nas nuvens, fotomontagem, 2007). Integrantes de uma rede invisível, que entrelaça existências, propicia poéticas e nos torna atores e autores de nossa história. Desta forma, talvez possamos ver um outro horizonte possível (fotografia digital, 2007).

A obra da artista Jacqueline Medeiros entrelaça reflexões sobre aspectos da contemporaneidade, tece diálogos com os inúmeros tempos que vivenciamos. O tempo da dinâmica pública, o tempo da intimidade do universo privado e sua memória particular. Dona de um olhar que persegue novos sentidos para o existir, a artista propõe narrativas, trilhas, fugas para a máquina do cotidiano. Ao abrir a janela, instaura portais, enseja poéticas, abre espaços para que tenhamos um lugar. Refletindo e interpretando a vida o olhar se ilumina. Outro mundo é, então, possível.
Sem pressa, podemos enxergar que alguns caminhos sinalizam a compreensão de outro lugar, de outro tempo. Com janelas abertas para o mundo, como voyeurs ou caminhantes, como artistas da arte do viver, sentiremos a alegria do existir. É bom ter um pertencimento nesse mundo, se sentir em casa, ser parte consciente de Gaia. Jacqueline Medeiros, como intérprete de seu tempo, nos direciona para a percepção de outros lugares. Com seu trabalho, nos faz sentir como a vida pulsa em cada canto (2005).
outubro 1, 2007
Grand Tour 2007: Cobertura a várias mãos: Que texto cabeça, por Rafael Campos Rocha

Foto de Pedro Torres
Grand Tour 2007: Cobertura a várias mãos
Que texto cabeça, por Rafael Campos Rocha
"(...) Que texto cabeça (...) confesso que li por alto (...) Porém um pouco prolixo.
Seja mais sintético, meu amigo, escreva menos para as pessoas lerem mais. Quanto à Bienal, veja o que escrevi no comentário do texto do (...).
ab
A Malta"
Devo ter sido mesmo pouco claro quando citei a célebre passagem do 18 Brumário em que Marx alerta sobre a estetização do ideário do passado para tratar da tessitura do presente. Afinal, eles repetiram o mesmo erro em Kassel. Mas foi importante por ter-me aberto os olhos para outras intenções escondidas no slogan de Barthes para a nossa última bienal que por sua vez explicam aspectos (mas não as intenções) dessa última versão da Documenta de Kassel, mesmo que as deformações dessa sejam mais gritantes e tenham feito mais danos, tanto as obras quanto as intenções dos próprios curadores. Na verdade eu gostei da Bienal, assim como da Documenta, apesar delas mesmas. O evento brasileiro tinha vários trabalhos de alto nível técnico em contraste à subserviencia colonizada (inconsciente ou não) da temática curatorial, sempre pronta a sugerir que a roda sangrenta da história pode parar de girar quando descobrirmos que tudo não passa de um mal-entendido de linguagem ou de caráter existencial. Sei. Devolver o Texas, a faixa de Gaza e o solo iraquiano ninguém quer, garanto. Enfim, a cobiça e a resistencia à ela (as engrenagens da roda) podem ser substituidas por um diálogo franco entre culturas, nós (os outros) não queremos tomar tudo Deles (europeus e americanos) mas somente viver juntos, em total harmonia para toda a eternidade do Espírito, esquecendo as mazelas do passado e tocando nosso tamborzinho na selva transformada em parque temático. Infelizmente, queridos, é mentira. Não seremos mais bonzinhos com eles do que eles foram conosco. Um dia Bagdá abrigou 2 milhões de pessoas enquanto Paris continha 80 mil aldeões, e hoje os iraquianos tem que abaixar a cabeça para o consenso internacional pró-americano de como eles devem ser. Algo impensável para um árabe do século X. E acontecerá de novo, com outros personagens, enquanto a existência do Tempo não for aniquilada, com toda a vida terrena com ele. É lógico que essa é uma simplificação, contando somente com os aspectos materialistas dessa representação, mas esquecer por completo esses aspectos nos faz correr um risco incomensurável. Em segundo lugar, a propria criação de uma cultura autonoma, como frisou Jameson em seu ensaio sobre os estudos culturais, já é, em si, um ato de violência, ou pelo menos um ato com a violência necessária para a diferenciação do Outro, diferenciação essa que dá acesso à própria existência ou noção de si.
Pois bem, o fracasso da arquitetura expositiva de Kassel 2007 nasce justamente de uma retomada intencional dos paradigmas de montagem da primeira Documenta, em 55, em que uma contaminação entre cultura técnica e cultura artística (cortina fazendo as vezes de fundo para pintura e pintura fazendo as vezes de fundo para a legenda explicativa da mostra) parecia purgar a logística assassina do nazismo. Bom, não imagino como o público tenha percebido isso na época, mas sei o que isso causou em mim, hoje. Primeiro, o 11 de setembro não é o Holocausto, e a invasão do Iraque não é a segunda guerra mundial, a não ser pelo puxa-saquismo covarde das potências européias. Em segundo lugar, a narrativa auto-purificante da arte modernista (como pensava Greenberg, o cachorro-morto predileto da crítica pós-moderna) sempre apontou na direção da Unidade (entre arte e vida, sujeito e objeto) e a montagem naquela documenta de 55 tentava uma reconstituição filológica do modernismo para separá-lo do racionalismo tosco e deturpado do nazismo. Certo, os caras da documenta XII não são trouxas, como se pode comprovar pelo artigo excelente e esclarecedor sobre essa mesma Documenta de 55, escrito por Roger M.Buerden, mas a própria idéia de uma origem histórica de uma proposta curatorial pode ser lida de forma enviesada, já que uma origem é sempre narrada de um ponto do presente. Raizes flutuando no ar. E é nisso que a documenta parece não se resolver: entre uma retomada do caráter utópico do modernismo, com sua busca da unidade do humano por sobre as barreiras da contingência e uma mera retomada estética (fashion mesmo) dessa utopia. Daí o aspecto juvenil, e até pueril dessa retomada. E, convenhamos, pintar uma sala de pêssego ou verde bandeira não vai resolver o problema da liberdade do indivíduo dentro da multiplicidade do Ser mais do que um branquinho básico de museu. Eu, realmente, sou cada vez mais incrédulo com relação a essas alternativas a institucionalização da atividade artística. Fazer o que com a Mona Lisa? Deixar no relento? Enfim, prefiro direcionar minha indignação contra a Tortura e poupar, por hora, o "cubo branco".

Tanaka Atsuko
Por outro lado, um evento de arte desse tamanho SEMPRE vai contribuir de alguma forma. Tanaka Atsuko, a integrante do arrojadíssimo grupo Gutai, de Tokio (algo como concreto, em português) é realmente muito mais do que uma simples curiosidade antropológica, e suas experiências precedem e muitas superam a abordagem fenomenológica que Oiticica desenvolveu mais de vinte anos depois. A própria transdiciplinaridade do grupo, com seus integrantes exercendo múltiplas profissões desligadas do metier de arte, contribui, no nosso entender, para o arrojo de suas intervenções. Afinal, nada menos interessante do que arte que trata de arte.
Paradoxalmente, a documenta contribui quando se atém à sua proposta anti-propositiva, ou seja, quando podemos notar uma unidade nas intenções curadoriais, mesmo que sua proposta seja a multiplicidade descentralizada. Enfim, essas coisas são mesmo complicadas. E nem mesmo esse fuá pode estragar os exepcionais desenhos, exercícios e pequenas meditações de Friedl, Schendel, Guogu e Kanwar, além do evidente interesse em uma abordagem artística um pouco diferente do espetáculo tecnológico do panorama artístico institucional (o que não impediu que Iñigo Manglano-Ovalle fizesse uma das melhores obras da mostra em estilo altamente tecnológico-cenográfico-monumental). A opção pela atividade artística "paralela" ou descentrada e modesta (esbocos, reflexões inacabadas) não deveria, entretanto, nos aproximar das obras de Klee, por exemplo, cuja busca do Invisível acaba sendo diamentralmente oposta ao tatear existencial das outras escolhas da curadoria. Ou seja, ambos os tipos de artistas estão certos (quando acertam), e a curadoria está errada (mesmo quando acerta na escolha dos artistas).
Que fique claro, entretanto, que isso não é uma declaração de guerra à curadoria da Documenta ou curadorias em geral, mas é, isso sim, uma posição contrária ao princípio curatorial em geral mais ou menos como Rosalind Krauss quando escreveu um livro inteiro contra o fotográfico em geral. Ou seja, contra o próprio norte dessas generalizações para a futura sobrevivência dessas mesmas generalizações, que continuo considerando fundamentais para a atividade artística. Ou seja, uma complicação infernal que me recuso a simplificar somente para usar um botton "estive na Documenta" ou praguejar no boteco contra os curadores que não nos chamam para tal e tal exposição.
Por último, cabe destacar a excelente publicação das discussões em torno dessa mesma curadoria. Um catatau ilustrado com a participação de diversas revistas de arte ao redor do mundo, inclusive desse Canal Contemporâneo. Na verdade, toda a exposição foi pensada um pouco em torno dessa discussão interdisciplinar de arte no qual essas revistas não-comerciais do assunto são tão ricas. O poeta estava certo. No final das contas, tudo é feito para terminar em um bom catálogo.
Rafael Campos Rocha é artista plástico.
