Página inicial

e-nformes

 

Acessar E-nformes Anteriores

Acesso a todos os e-nformes publicados desde a criação do Canal Contemporâneo em dezembro de 2000.

Para acessar os e-nformes anteriores é necessário ser associado ao Canal Contemporâneo.


Se você já se cadastrou, conecte-se na primeira página para acessar sua área pessoal e pedir o boleto na aba associação do editar conta. Se você nunca se cadastrou, preencha o formulário e, no final, escolha a opção associação paga. Conheça os planos de acesso do Canal e seus benefícios.


Modos de recebimento dos e-nformes


O Canal Contemporâneo publica 2 e-nformes semanais contendo informações sobre o circuito de arte contemporânea e políticas culturais relacionadas.

- Para receber a edição COMPLETA, com textos e imagens, torne-se um associado pagante e contribua para a manutenção da iniciativa.

- Para receber a edição SIMPLIFICADA, apenas com os linques para os conteúdos, basta ser um usuário cadastrado.

 


Pesquise por palavras e/ou expressões (entre aspas)

O lugar do juízo na arte contemporânea
20 de março de 2002
ANO 2 N. 45




O lugar do juízo na arte contemporânea

Publicado em O Nó Górdio, Número 1, Dezembro de 2001.

 LUIZ CAMILLO OSORIO
 

À primeira vista, pode parecer que tomar o gosto como algo indiscutível - que cada um fique com o seu e pronto -, seja sintoma de grande tolerância em relação à diferença. Mas creio que o oposto seja o caso. Somente quando queremos discutir e enfrentar a opinião alheia é que pomos à prova nossa capacidade de lidar com a diferença. O importante é o fazer-se e o mostrar-se da discussão. Nela nós dizemos quem somos e a que viemos. De algum modo, o gosto busca o consenso mas ele prefere, ou melhor, ele habita o dissenso.

Ao dizer que gostamos de tal coisa, apenas constatamos um sentimento que se dá diretamente na experiência. O gosto não se constrói mas se constata. É algo que eu sinto subjetivamente, sem mediação conceitual. Por outro lado, podemos dizer que criamos, individual e culturalmente, disponibilidades para gostar. Nós constatamos o nosso gosto mas fazemos com que ele possa acontecer de determinadas maneiras. Deve também ser dito que o gosto, o ter gosto, não apenas o gostar disto ou daquilo, é no fundo uma vontade de compartilhamento, de sair de si e ir ao encontro do outro. Este é o movimento que motiva e qualifica a discussão, não importando, a princípio, a correspondência final do outro.

Neste aspecto, tanto faz se estamos falando de um Rembrandt ou de um pôr do sol. Nós queremos o consentimento do outro. É claro que há graus de enfrentamento e que ninguém pressupõe que haja unanimidade absoluta; mas isto não implica que não queiramos fazer com que nosso gosto seja universal - que é o horizonte máximo de compartilhamento. Há uma questão política que me diz que eu devo respeitar e tolerar quem gosta diferente de mim, e há uma outra, propriamente filosófica, que me faz desconsiderar esta recomendação e assumir a  universalidade do meu gosto, exercitá-lo na contenda, torná-lo público.

Nada disto existiria se o homem fosse um ser solitário. Nem mesmo o pôr do sol! O que não existiria, na verdade, é o olhar que o faz aparecer e nos tocar, ou seja, o fato de nós gostarmos de ver o pôr do sol. Olhamos o mundo esteticamente conscientes de que o nós é anterior ao eu. Não quero dizer com isto que não tenho gosto próprio, que os outros gostam por mim, mas sim que o fato de eu gostar significa que eu quero compartilhar com os outros. Como diz Kant, há duas máximas importantes no juízo que falam desta passagem, ou melhor, de um lugar, entre eu e os outros: ele diz que devemos sempre julgar por conta própria, mas nos colocando sempre no lugar dos outros.

É bom deixar claro que não importa se o consenso se efetiva, isto seria ridículo, mas que julgamos em prol dele. Na verdade, o tempo é bastante amigo da disposição e dos hábitos estéticos. A formação dos cânones - que nada mais são que consensos adquiridos - é algo que se dá sem que haja uma intencionalidade operando este processo. Alguém tem alguma dúvida quanto a importância de Shakespeare, Michelangelo, Cézanne, e mesmo Duchamp? Não são eles nossos contemporâneos de um modo muito mais forte do que os cientistas das suas respectivas épocas? Não é engraçado que a temporalidade da arte seja tão mais generosa que a da ciência, que é exatamente o discurso que produz a verdade objetiva?

Uma passagem de Baudelaire relativa à Exposição Universal de 1855 é reveladora de um novo estado de coisas em torno ao processo de julgar arte. Diante de toda a variedade presente naquele salão - de culturas, de época, de qualidade etc. - ele vai tomar o sentimento como fundamento da relação com a arte; diante de tantas poéticas diferentes ele observa: “contentei-me com o sentir, voltei a buscar um refúgio na impecável ingenuidade”. Agora, nos cabe perguntar para qualificar esta observação: será que esta ingenuidade é desinformada? Será que este sentir acontece sem reflexão e pensamento? Vejamos uma outra passagem do mesmo Baudelaire, que acrescenta, logo em seguida que o belo é sempre extravagante, e pondera: “Quero dizer que o belo sempre contém um pouco de extravagância ingênua não deliberada e inconsciente e que essa extravagância é que o leva particularmente a ser o belo. É sua marca, sua característica. Invertam a proposição e tentem conceber um belo banal! Ora, como essa extravagância - necessária, incompreensível, infinitamente variada, dependente dos meios, climas, costumes, raça, religião, e personalidade do artista - poderá algum dia ser governada, emendada, endireitada pelas regras utópicas concebidas num pequeno templo científico qualquer do planeta, sem perigo de morte para a própria arte? Essa dose de extravagância que constitui e define a individualidade, sem a qual não existe belo, desempenha na arte (que a exatidão dessa comparação perdoe sua trivialidade) o papel do gosto e do condimento nos pratos, já que estes só diferem um dos outros - abstração feita de sua utilidade ou da quantidade de substâncias nutritivas que contêm - pela idéia que apresentam à língua”. O importante aí é a idéia que se revela à lingua, à parte do corpo que qualifica sensorialmente o que agrada e o que desagrada. Será que ainda estamos dispostos a sentir a presença das idéias? Não se revela aí uma relação nova entre sensibilidade e idéias que não cabe em nossas divisões pré-concebidas de teoria e prática? Baudelaire busca um novo método crítico que consiga conjugar a ingenuidade do mero sentir e a reflexividade do puro pensar. Os termos faltam, as palavras escorregam, mas o sentimento, sua atenção e significado, por variados que sejam, querem ser compartilhados.

Estamos assim aptos a lidar com a aparente desordem da arte contemporânea. Não me interessa a impressão, que é real, de vale-tudo, que surge sempre que vamos, por exemplo, a uma bienal. E daí? Não poderia ser diferente. A desorientação é que me faz querer tornar público meu juízo, tanto do ponto de vista profissional quanto amador. Tornar público o juízo é o modo de encontar limites e fazer distinções.

O desvio causado pela obra de Duchamp, onde “tudo parece poder ser arte”, é um desvio em direção à origem, onde as formas de arte são indiferenciadas e o que importa é a possibilidade de invenção de novos sentidos. A sua aposta não é que tudo, indiferentemente, seja arte, mas que tudo, na sua diferença, possa ser arte. E esta diferença deve ser entendida como afirmação da liberdade e criatividade humanas.

Feitas estas ressalvas, creio que posso afirmar que a arte moderna, ao assumir positivamente a crise de uma tradição deixada sem testamento, em outras palavras, aceitando o fato de que tudo pode ser arte, sublinhou que só julgando cada obra na sua particularidade podemos decidir por sua validade; e que esta decisão é muito mais um processo coletivo, que se dá no interior de uma cultura e de uma geração de juízes, do que um ato deliberado por um único indivíduo ou crítico. Deste modo, é exatamente por tudo aparentemente poder ser arte que temos mais do que nunca que por à prova o nosso gosto, acreditando que ele traz consigo não um horizonte consensual, mas uma aposta renovada na possibilidade de encontrar novos significados para o que sentimos e não temos ainda um vocabulário formado. Para terminar eu citaria uma frase do sociólogo polonês Zigmunt Bauman, que diz o seguinte: “Só se pode acreditar no futuro dotando o passado da autoridade que o presente é obrigado a obedecer. Não sendo isso verdade, só resta aos artistas uma possibilidade: a de experimentar” , e a nós,  julgar, apostando na liberdade e na criatividade como fundamentos de nosso ser no mundo.

Luiz Camillo Osorio
Julho 2000

Isto é Arte?
Estruturado a partir de onze perguntas freqüentes sobre arte, apresenta os conceitos e critérios que permitem entender e apreciar as proposições dos artistas contemporâneos.
Itaú Cultural

envio de conteúdo_    cadastre-se_    contato_    sobre o canal_