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Marcus
André começou a pintar ainda criança, estimulado por uma tia, e
freqüentou os famosos Domingos de Criação que agitavam o Museu de
Arte Moderna no final dos anos 1960 e início dos 1970. Revelado
junto com a turma de artistas que recebeu o nome da Geração 80 e
que foi formada no Parque Lage, ele atribui uma importância ao movimento
para o amadurecimento de seu trabalho que, ao longo dos anos, sofreu
uma influência decisiva de sua experiência como gravador. Ao mergulhar
na gravura durante os três anos em que residiu nos Estados Unidos,
Marcus André encontrou a chave para depurar o universo figurativo
das histórias em quadrinhos, marca registrada de seus primeiros
passos como pintor. Naquela época, personagens e objetos revelavam
um fascínio pelo apuro gráfico não só dos gibis, mas também de cartazes
e peças publicitárias. A qualidade de impressão que era perseguida
e retratada nos anos 1980 acabou sendo incorporada como técnica.
Hoje, a pintura do artista - que sobrepõe diversas camadas de tinta
- se apropria do universo da gravura em seu processo criativo. E,
ao se aproximar da abstração, lança um curioso olhar sobre a tradição
paisagística da arte brasileira.
O
livro seleciona obras que vão do início dos anos 1990 até 2000.
Por que você optou por este recorte na sua carreira, que na verdade
começou bem antes, nos anos 1980? Foi no início dos anos 1990
que minha pintura começou a ganhar autonomia e se apresentar como
alguma coisa que funcionava independente da gravura. Mas, na verdade,
tudo que é visto no livro é uma decorrência do que vinha acontecendo
com meu trabalho desde os anos 1980. Quando mergulhei nas questões
formais das artes gráficas, a pintura e a gravura foram se separando
gradualmente.
Esta
paixão pelo universo gráfico tem a ver com sua formação como gravador,
não? Em que medida ela influenciou e ainda influencia seu trabalho?
Toda a estratégia que eu uso até hoje na minha pintura vem da minha
formação de gravador, que começou no Museu do Ingá, em Niterói.
Aprendi muito do que sei hoje com a gravura brasileira da década
de 1950, principalmente a partir do modo como ela resolve as questões
de espaço. Estas características estão agora na pintura, principalmente
esta questão espacial. Tive também influência das gravuras orientais
e da simplicidade com que essas paisagens se resolvem. No final
dos anos 1980, imprimi muitas gravuras com uma abordagem pictórica
sobre tecidos de algodão.
Foi
justamente por causa da gravura que você passou três anos nos Estados
Unidos, trabalhando com Roberto DeLamonica. Como foi esta experiência
e em que medida ela se reflete em sua obra? Mergulhar de cabeça
na gravura teve relação com uma certa dúvida em relação à pintura?
Cheguei a duvidar da eficiência da pintura e de sua força. Vivia
uma espécie de descrença, não conseguia acreditar que pintar era
uma possibilidade artística real. Antes mesmo de viajar, um ano
depois da exposição no Parque Lage, já punha em xeque esta autonomia
da pintura, porque não conseguia vê-la como uma situação em que
eu pudesse elaborar o resultado gráfico que eu desejava. No meu
percurso, o nascimento de uma pintura com uma certa autonomia, amparada
em recursos de sua própria linguagem, só surge na virada dos anos
1980 para os 1990. Os anos 1980 tinham sido muito desgastantes;
nessa época foram criados alguns preceitos imutáveis sobre o que
era o fazer na arte contemporânea, e quem caminhava fora disso não
tinha muita chance no mercado. Bastava você lidar com vidro, chumbo
ou óxido de ferro para criar uma obra contemporânea; existia uma
eleição de materiais a partir de um mau entendimento da produção
de Joseph Beuys. O artista que nascia dentro deste ambiente acabava
acreditando que o contemporâneo era uma entidade que ele podia tocar,
que estava lá para ampará-lo.
Você
participou da exposição Como Vai Você, Geração 80?, que foi aberta
no dia 14 de julho de 1984, no Parque Lage, no Rio de Janeiro. Em
que medida o movimento conhecido como Geração 80 se reflete em seu
trabalho? A exposição teve para mim uma importância relativa,
porque eu enxerguei muito cedo que precisava criar um caminho diferente.
Éramos muito jovens naquela época e quem lidava com o comércio,
de arte ou de qualquer outra coisa, acreditava que podia surgir
uma geração de profissionais liberais muito bem pagos que formariam
um mercado. Criou-se um momento vulnerável, em que o trabalho de
artistas com uma carreira sólida passou a valer pratica- mente o
mesmo que o de novas apostas. A inflação era muito alta, o dinheiro
se perdia rapidamente e era preciso pôr o lucro em algum lugar,
o que gerava um consumo absurdo de tudo. Na mídia se criava uma
idéia meio apavorante, de pós-Guerra Fria e de fim do mundo que
estimulava o niilismo e um certo cinismo. O mercado foi rápido e
inventou que a pintura jovem precisava ser grande e ter muito gesto.
Três anos depois, a situação fica mais crítica e esses valores se
tornam questionáveis. E é aí que entra o meu trabalho.
Como
você vê a exposição hoje, mais de 15 anos depois? O Parque Lage
veio suprir uma carência de ponto de encontro da classe artística,
que ficou órfã depois do incêndio do Museu de Arte Moderna, em 1978.
Havia uma deterioração do Centro do Rio, a Cinelândia tinha morrido
como pólo cultural e o MAM já estava meio ilhado. Houve então uma
migração para a Zona Sul e para as aulas noturnas do Parque Lage,
que acabou sediando a exposição. Como Vai Você… incluiu uma série
de artistas jovens que estavam começando naquela hora, com poucas
participações em salões. Naquela época, o Salão Nacional, por exemplo,
ainda era uma instituição com relativa importância. Éramos uma geração
que se deu meio por combustão espontânea, porque a ditadura militar,
junto com uma série de outros fatores socioeconômicos, tinha criado
um abismo entre os artistas que estavam começando e a tradição que
havia antes deles, a produção dos anos 1950, 1960. Havia um hiato,
começamos a partir de um ponto onde não tínhamos contato com o passado
recente da arte brasileira, descontando algumas exceções. Nos EUA
e Europa, ao contrário do que ocorreu no Brasil nos anos 1970, a
pintura não tinha sido interrompida. Havia um interesse pela pintura
no mundo inteiro, e a proposta da exposição era mostrar um pouco
isso. Mas hoje vejo que, ao propor uma ocupação do prédio do Parque
Lage, a curadoria foi meio receosa. Ela talvez tenha duvidado um
pouco da força que esta pintura poderia ter.
Você
apresentou uma instalação nesta exposição. Depois, acabou desenvolvendo
uma pintura figurativa, muito ligada ao universo das histórias em
quadrinhos. Que motivações o levaram a mergulhar na cultura pop?
Nunca busquei uma proximidade com a estratégia ideológica da Pop
Art americana na utilização da linguagem da história em quadrinhos.
Tenho formação em desenho industrial e sempre fui fascinado por
cartazes e peças de propaganda. O que sempre me interessou no trabalho
daqueles tempos era o tratamento gráfico, o acabamento que se aproximava
da impressão. A cons-trução deste universo figurativo veio de muitas
direções, dos desenhos que eu fazia quando era criança até os cartazes
que eu não cansava de admirar. Tinha também um pouco de resíduo
dos inícios dos anos 1970, da Nova Figuração. Esta pintura figurativa
que fiz no início dos anos 1980 é fruto deste repertório ainda um
pouco juvenil, que mistura filmes, desenhos e até obras de alguns
artistas que eu tinha visto. Mas nunca repeti personagens para explorá-los
como tema, eles nunca tiveram uma sobrevida fora da pintura. Eu
também não levava a cultura de massa até o território da chamada
alta cultura, como fazia, ironicamente, a Pop americana; minhas
questões sempre foram estéticas e gráficas.
Você
falou da virada dos anos 1980 para os 1990 e da mudança que seu
trabalho sofreu naquela época. Em 1992, você fez uma exposição individual
na galeria Casa Triângulo, em São Paulo, em que essas transformações
apareciam de forma clara, com uma pintura mais limpa, em que elementos
figurativos como cálices apareciam apenas insinuados. Havia uma
certa fusão das técnicas de pintura e gravura, como isso ocorreu?
A fusão se deu muito pela manipulação do material. Antes, eu não
me satisfazia plenamente nem com a pintura - que me incomodava ao
escorrer e ao não ser concisa -, nem com a gravura -com sua obrigatoriedade
de multiplicação. Iniciei levando para a gravura elementos que eram
externos a ela. E aí parece que a pintura começou a ficar independente,
menos preocupada com o espaço gráfico. Não era mais algo que precisava
ser resolvido com preciosismo técnico, como eu fazia na época dos
quadrinhos, porque o espaço gráfico já tinha sido incorporado pelo
próprio processo. Eu pinto sobrepondo várias camadas de tinta, e
esta práxis pictórica traduz um pouco a impressão, como se apresenta
na gravura, criando um ambiente bidimensional que lhe é próprio.
A gravura foi ficando mais gravura, a pintura foi ficando mais "pintada".
As telas passaram a mostrar esse diálogo entre uma coisa e outra.
Não digo que minha pintura ficou mais gestual, porque esta é uma
característica atribuída à Geração 80, ligada a um tipo de trabalho
de figura e fundo que não me agrada e não tem nada a ver com o que
faço.
Como
este diálogo entre gravura e pintura se reflete no que você faz
hoje? Como é seu método de trabalho no ateliê que você mantém em
Teresópolis? Hoje mantenho um ateliê de gravura em metal separado
do ateliê de pintura, e antes os dois funcionavam conjuntamente.
Na pintura, trabalho o tempo inteiro só com tinta a óleo e encáustica,
porque não me interessa inserir na tela nenhum tipo de material
que sofra uma ação química com o passar do tempo. Imagino uma cor
e começo uma superfície, pintando sempre de duas formas: com a tela
na parede e com a tela no chão. No chão, consigo o apuro técnico.
Na parede, tenho mais liberdade para sobrepor as camadas com pinceladas
maiores, mais abrangentes. Muitas vezes trabalho em várias telas
ao mesmo tempo. Dificilmente destruo um trabalho. E já aconteceu
de eu não dar nada por uma tela e ela revelar sua força tempos depois.
Ao responder à segunda questão, você falou em paisagem oriental.
Mas de que modo o seu trabalho, hoje bastante abstrato, também se
insere numa produção paisagística da pintura brasileira? Quando
eu trabalhava no ateliê de gravura do Ingá, sempre que podia, visitava
o Museu Antônio Parreiras, conhecido paisagista romântico brasileiro.
Mais tarde, também tive acesso à produção do grupo Grimm, abrigada
no Museu Nacional de Belas Artes. A paisagem, em todas as épocas,
sempre foi um agente da pintura, mas, em meu trabalho, ela não se
dá a partir de um embate com o real. Ela se reflete nos planos,
nas infinitas camadas de tinta que vou compondo. Começo a pintar
imaginando uma cor, e o trabalho surge deste embate do material
na tela. Minha pintura não é feita por áreas delimitadas, não atribuo
cores e valores determinados a partes específicas da tela. Sempre
fiz uma pintura que apresentava matéria na totalidade da superfície.
Tanto a mistura de pigmentos como o tamanho da tela surgem a partir
de uma necessidade intrínseca àquela pintura, que identifico somente
no momento que começo a pintar. Este tipo de paisagem se revela
no contato com a tela. Trabalho com pouca tinta industrial, com
pouca tinta pronta. Preparo a maior parte do material com que pinto,
não por artesania, mas por necessidade. Não há tinta encáustica
industrializada disponível no mercado.
Na
série de pinturas de 1993, intitulada "Paisagens interiores", ainda
parece haver muito do estilo de gravura japonesa. Você concorda
com isso? Concordo, também vejo assim. Há em meu trabalho uma
simplificação do espaço que vem deste tipo de gravura. O estilo
oriental influenciou boa parte dos pintores europeus modernos. Em
1993, fiz telas muito pequenas e outras muito grandes, que se auxiliavam
umas às outras ao discutir a questão do espaço na pintura. Também
converso com a tradição pictórica, mas, diferentemente do Impressionismo,
que buscava uma pincelada que virava luz, começo a desenvolver nesta
época um trabalho que não tem ligação direta com o que está sendo
visto do lado de fora, com a mudança de uma paisagem real que se
altera a partir de efeitos ópticos. Minhas telas também contêm muita
matéria, mas elas são lisas, planas, criam uma superfície única.
Quando se pensa em paisagem pura e simples, minhas questões não
são as mesmas do Impressionismo, mas, no caso destes pintores, a
pintura se dá a partir de um embate com o real; no meu caso tudo
vem de um espaço interior. Até hoje, a paisagem é muito presente
na arte contemporânea.
Logo
depois das "Paisagens interiores", você vai se dedicar à série "Cosmogônica",
em que apresenta trabalhos nos quais a monocromia é quase sempre
quebrada por uma espécie de aparição ou explosão de outra cor. Como
aconteceu essa transição de uma série para a outra? Uma cor
pede outra. Como disse antes, não trabalho com separação de áreas,
e não existe nenhum esquema ou rascunho pré-estabelecido. As cores
sempre entram invadindo o espaço da outra, geralmente criando uma
terceira. Não trabalho com uma palheta muito grande: basicamente
alguns violetas, o alumínio em pó e vários amarelos. A série "Cosmogônica"
apresenta trabalhos mais homogêneos e refletem uma espécie de saturação
da figuração. É como se cada um destes trabalhos contivesse em si
o máximo de figuração possível, mesmo não possuindo qualquer forma
ou figura como as entendemos. Por mais que as telas pareçam abstratas,
há toda uma tradição figurativa ali. A cor entra por inteiro e é
interrompida por uma espécie de explosão de outro tom que vem de
dentro da tela para a superfície. A luz não está vindo pela adição
do branco, pela parte externa do quadro, e sim através da superfície
branca anterior à própria pintura. Consigo isto a partir da retirada
de tinta, revelando o que estava por trás das muitas camadas da
outra cor. O que aparece é a superfície inicial da pintura.
Depois
disso vem a "Série 56", em que você agrupou 56 pequenas caixas de
cedro pintadas, formando um painel único. Qual foi sua motivação
para realizá-lo? De início, estas pequenas caixas nos remetem às
pinturas de Castagnetto, pintor que produziu principalmente pequenas
paisagens marinhas na virada para o século XX. Como esta escala
reduzida poderia conter, paradoxalmente, tanto espaço? Na pintura
contemporânea, nem sempre o grande formato significa grandes espaços.
Com a "Série 56", quis voltar a uma questão do micro e do macro,
que já estava um pouco presente na série "Cosmogônica". Existe em
cada uma das pequenas pinturas uma autonomia, mas também há relações
entre elas, formando um conjunto. Ou seja, há um universo que abrange
todos os trabalhos como um todo e outro onde cada parte é vista
isoladamente. Todas foram feitas ao mesmo tempo e nenhuma foi rejeitada.
A "Série 56" é curiosamente sucedida por uma série com telas grandes.
Você
enxerga a escala como uma das questões do seu trabalho? Nestas telas
grandes, há uma acentuação da horizontalidade, com formatos quase
panorâmicos. Isso ocorre para estabelecer, mais uma vez, um diálogo
com a tradição paisagística? Estas pinturas recentes, feitas
entre 1999 e o primeiro semestre de 2000, ainda não estão concluídas
e não têm título. Dá para notar que a escala realmente é importante
e há sempre uma alternância entre trabalhos pequenos e grandes no
meu percurso. Neste momento, o trabalho está ganhando corpo, onde
essa horizontalidade fica mais evidente. Este formato, que é meio
panorâmico, afirma a contemplação e sugere a sensação de que é preciso
um certo convívio com aquele espaço que a pintura forma, exigindo
do espectador uma complacência que não se dá de imediato. Tudo caminha
entre a figuração e a abstração.
O
livro termina mostrando estas abstrações que são paisagens ou vice-versa.
O que é abstração depois da Pop, do Minimalismo e de Pollock?
É curioso falar de paisagem quando nos perguntamos em que parte
do homem ainda habita essa natureza. Aceito, como diz o texto do
Paulo Sergio Duarte, o peso de todos os paradigmas da arte contemporânea
e faço perguntas como: se existe uma arte abstrata hoje, que natureza
é esta que ela abstrai? Minhas respostas são as pinturas e, quando
estou trabalhando, não existe um ancoramento teórico prévio, mas
sim uma dialética entre essa possível paisagem e sua impalpável
abstração.
Marcus
André nasceu no Rio de Janeiro em 1961. Trabalha há 20 anos com
pintura, tendo frequentado escolas de arte e ateliês no Brasil e
nos EUA. Marcus André tem participado de diversas exposições, pelas
capitais brasileiras e por diversos países, e suas obras fazem parte
dos principais acervos do Brasil.
Daniela
Name nasceu em 1973 e é formada em jornalismo pela Escola de Comunicação
da UFRJ. Trabalha no Segundo Caderno do jornal O Globo como repórter
especializada em artes plásticas. Atualmente, também prepara um
livro sobre a Geração 80 a partir de uma bolsa de pesquisa cedida
pelo Programa de Bolsas da RioArte.
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