"Fogo sem matéria"
Sônia Salzstein


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
ENTREVISTA COM MARCUS ANDRÉ

Daniela Name
 
   

Marcus André começou a pintar ainda criança, estimulado por uma tia, e freqüentou os famosos Domingos de Criação que agitavam o Museu de Arte Moderna no final dos anos 1960 e início dos 1970. Revelado junto com a turma de artistas que recebeu o nome da Geração 80 e que foi formada no Parque Lage, ele atribui uma importância ao movimento para o amadurecimento de seu trabalho que, ao longo dos anos, sofreu uma influência decisiva de sua experiência como gravador. Ao mergulhar na gravura durante os três anos em que residiu nos Estados Unidos, Marcus André encontrou a chave para depurar o universo figurativo das histórias em quadrinhos, marca registrada de seus primeiros passos como pintor. Naquela época, personagens e objetos revelavam um fascínio pelo apuro gráfico não só dos gibis, mas também de cartazes e peças publicitárias. A qualidade de impressão que era perseguida e retratada nos anos 1980 acabou sendo incorporada como técnica. Hoje, a pintura do artista - que sobrepõe diversas camadas de tinta - se apropria do universo da gravura em seu processo criativo. E, ao se aproximar da abstração, lança um curioso olhar sobre a tradição paisagística da arte brasileira.

 

O livro seleciona obras que vão do início dos anos 1990 até 2000. Por que você optou por este recorte na sua carreira, que na verdade começou bem antes, nos anos 1980? Foi no início dos anos 1990 que minha pintura começou a ganhar autonomia e se apresentar como alguma coisa que funcionava independente da gravura. Mas, na verdade, tudo que é visto no livro é uma decorrência do que vinha acontecendo com meu trabalho desde os anos 1980. Quando mergulhei nas questões formais das artes gráficas, a pintura e a gravura foram se separando gradualmente.

Esta paixão pelo universo gráfico tem a ver com sua formação como gravador, não? Em que medida ela influenciou e ainda influencia seu trabalho? Toda a estratégia que eu uso até hoje na minha pintura vem da minha formação de gravador, que começou no Museu do Ingá, em Niterói. Aprendi muito do que sei hoje com a gravura brasileira da década de 1950, principalmente a partir do modo como ela resolve as questões de espaço. Estas características estão agora na pintura, principalmente esta questão espacial. Tive também influência das gravuras orientais e da simplicidade com que essas paisagens se resolvem. No final dos anos 1980, imprimi muitas gravuras com uma abordagem pictórica sobre tecidos de algodão.

Foi justamente por causa da gravura que você passou três anos nos Estados Unidos, trabalhando com Roberto DeLamonica. Como foi esta experiência e em que medida ela se reflete em sua obra? Mergulhar de cabeça na gravura teve relação com uma certa dúvida em relação à pintura? Cheguei a duvidar da eficiência da pintura e de sua força. Vivia uma espécie de descrença, não conseguia acreditar que pintar era uma possibilidade artística real. Antes mesmo de viajar, um ano depois da exposição no Parque Lage, já punha em xeque esta autonomia da pintura, porque não conseguia vê-la como uma situação em que eu pudesse elaborar o resultado gráfico que eu desejava. No meu percurso, o nascimento de uma pintura com uma certa autonomia, amparada em recursos de sua própria linguagem, só surge na virada dos anos 1980 para os 1990. Os anos 1980 tinham sido muito desgastantes; nessa época foram criados alguns preceitos imutáveis sobre o que era o fazer na arte contemporânea, e quem caminhava fora disso não tinha muita chance no mercado. Bastava você lidar com vidro, chumbo ou óxido de ferro para criar uma obra contemporânea; existia uma eleição de materiais a partir de um mau entendimento da produção de Joseph Beuys. O artista que nascia dentro deste ambiente acabava acreditando que o contemporâneo era uma entidade que ele podia tocar, que estava lá para ampará-lo.

Você participou da exposição Como Vai Você, Geração 80?, que foi aberta no dia 14 de julho de 1984, no Parque Lage, no Rio de Janeiro. Em que medida o movimento conhecido como Geração 80 se reflete em seu trabalho? A exposição teve para mim uma importância relativa, porque eu enxerguei muito cedo que precisava criar um caminho diferente. Éramos muito jovens naquela época e quem lidava com o comércio, de arte ou de qualquer outra coisa, acreditava que podia surgir uma geração de profissionais liberais muito bem pagos que formariam um mercado. Criou-se um momento vulnerável, em que o trabalho de artistas com uma carreira sólida passou a valer pratica- mente o mesmo que o de novas apostas. A inflação era muito alta, o dinheiro se perdia rapidamente e era preciso pôr o lucro em algum lugar, o que gerava um consumo absurdo de tudo. Na mídia se criava uma idéia meio apavorante, de pós-Guerra Fria e de fim do mundo que estimulava o niilismo e um certo cinismo. O mercado foi rápido e inventou que a pintura jovem precisava ser grande e ter muito gesto. Três anos depois, a situação fica mais crítica e esses valores se tornam questionáveis. E é aí que entra o meu trabalho.

Como você vê a exposição hoje, mais de 15 anos depois? O Parque Lage veio suprir uma carência de ponto de encontro da classe artística, que ficou órfã depois do incêndio do Museu de Arte Moderna, em 1978. Havia uma deterioração do Centro do Rio, a Cinelândia tinha morrido como pólo cultural e o MAM já estava meio ilhado. Houve então uma migração para a Zona Sul e para as aulas noturnas do Parque Lage, que acabou sediando a exposição. Como Vai Você… incluiu uma série de artistas jovens que estavam começando naquela hora, com poucas participações em salões. Naquela época, o Salão Nacional, por exemplo, ainda era uma instituição com relativa importância. Éramos uma geração que se deu meio por combustão espontânea, porque a ditadura militar, junto com uma série de outros fatores socioeconômicos, tinha criado um abismo entre os artistas que estavam começando e a tradição que havia antes deles, a produção dos anos 1950, 1960. Havia um hiato, começamos a partir de um ponto onde não tínhamos contato com o passado recente da arte brasileira, descontando algumas exceções. Nos EUA e Europa, ao contrário do que ocorreu no Brasil nos anos 1970, a pintura não tinha sido interrompida. Havia um interesse pela pintura no mundo inteiro, e a proposta da exposição era mostrar um pouco isso. Mas hoje vejo que, ao propor uma ocupação do prédio do Parque Lage, a curadoria foi meio receosa. Ela talvez tenha duvidado um pouco da força que esta pintura poderia ter.

Você apresentou uma instalação nesta exposição. Depois, acabou desenvolvendo uma pintura figurativa, muito ligada ao universo das histórias em quadrinhos. Que motivações o levaram a mergulhar na cultura pop? Nunca busquei uma proximidade com a estratégia ideológica da Pop Art americana na utilização da linguagem da história em quadrinhos. Tenho formação em desenho industrial e sempre fui fascinado por cartazes e peças de propaganda. O que sempre me interessou no trabalho daqueles tempos era o tratamento gráfico, o acabamento que se aproximava da impressão. A cons-trução deste universo figurativo veio de muitas direções, dos desenhos que eu fazia quando era criança até os cartazes que eu não cansava de admirar. Tinha também um pouco de resíduo dos inícios dos anos 1970, da Nova Figuração. Esta pintura figurativa que fiz no início dos anos 1980 é fruto deste repertório ainda um pouco juvenil, que mistura filmes, desenhos e até obras de alguns artistas que eu tinha visto. Mas nunca repeti personagens para explorá-los como tema, eles nunca tiveram uma sobrevida fora da pintura. Eu também não levava a cultura de massa até o território da chamada alta cultura, como fazia, ironicamente, a Pop americana; minhas questões sempre foram estéticas e gráficas.

Você falou da virada dos anos 1980 para os 1990 e da mudança que seu trabalho sofreu naquela época. Em 1992, você fez uma exposição individual na galeria Casa Triângulo, em São Paulo, em que essas transformações apareciam de forma clara, com uma pintura mais limpa, em que elementos figurativos como cálices apareciam apenas insinuados. Havia uma certa fusão das técnicas de pintura e gravura, como isso ocorreu? A fusão se deu muito pela manipulação do material. Antes, eu não me satisfazia plenamente nem com a pintura - que me incomodava ao escorrer e ao não ser concisa -, nem com a gravura -com sua obrigatoriedade de multiplicação. Iniciei levando para a gravura elementos que eram externos a ela. E aí parece que a pintura começou a ficar independente, menos preocupada com o espaço gráfico. Não era mais algo que precisava ser resolvido com preciosismo técnico, como eu fazia na época dos quadrinhos, porque o espaço gráfico já tinha sido incorporado pelo próprio processo. Eu pinto sobrepondo várias camadas de tinta, e esta práxis pictórica traduz um pouco a impressão, como se apresenta na gravura, criando um ambiente bidimensional que lhe é próprio. A gravura foi ficando mais gravura, a pintura foi ficando mais "pintada". As telas passaram a mostrar esse diálogo entre uma coisa e outra. Não digo que minha pintura ficou mais gestual, porque esta é uma característica atribuída à Geração 80, ligada a um tipo de trabalho de figura e fundo que não me agrada e não tem nada a ver com o que faço.

Como este diálogo entre gravura e pintura se reflete no que você faz hoje? Como é seu método de trabalho no ateliê que você mantém em Teresópolis? Hoje mantenho um ateliê de gravura em metal separado do ateliê de pintura, e antes os dois funcionavam conjuntamente. Na pintura, trabalho o tempo inteiro só com tinta a óleo e encáustica, porque não me interessa inserir na tela nenhum tipo de material que sofra uma ação química com o passar do tempo. Imagino uma cor e começo uma superfície, pintando sempre de duas formas: com a tela na parede e com a tela no chão. No chão, consigo o apuro técnico. Na parede, tenho mais liberdade para sobrepor as camadas com pinceladas maiores, mais abrangentes. Muitas vezes trabalho em várias telas ao mesmo tempo. Dificilmente destruo um trabalho. E já aconteceu de eu não dar nada por uma tela e ela revelar sua força tempos depois. Ao responder à segunda questão, você falou em paisagem oriental. Mas de que modo o seu trabalho, hoje bastante abstrato, também se insere numa produção paisagística da pintura brasileira? Quando eu trabalhava no ateliê de gravura do Ingá, sempre que podia, visitava o Museu Antônio Parreiras, conhecido paisagista romântico brasileiro. Mais tarde, também tive acesso à produção do grupo Grimm, abrigada no Museu Nacional de Belas Artes. A paisagem, em todas as épocas, sempre foi um agente da pintura, mas, em meu trabalho, ela não se dá a partir de um embate com o real. Ela se reflete nos planos, nas infinitas camadas de tinta que vou compondo. Começo a pintar imaginando uma cor, e o trabalho surge deste embate do material na tela. Minha pintura não é feita por áreas delimitadas, não atribuo cores e valores determinados a partes específicas da tela. Sempre fiz uma pintura que apresentava matéria na totalidade da superfície. Tanto a mistura de pigmentos como o tamanho da tela surgem a partir de uma necessidade intrínseca àquela pintura, que identifico somente no momento que começo a pintar. Este tipo de paisagem se revela no contato com a tela. Trabalho com pouca tinta industrial, com pouca tinta pronta. Preparo a maior parte do material com que pinto, não por artesania, mas por necessidade. Não há tinta encáustica industrializada disponível no mercado.

Na série de pinturas de 1993, intitulada "Paisagens interiores", ainda parece haver muito do estilo de gravura japonesa. Você concorda com isso? Concordo, também vejo assim. Há em meu trabalho uma simplificação do espaço que vem deste tipo de gravura. O estilo oriental influenciou boa parte dos pintores europeus modernos. Em 1993, fiz telas muito pequenas e outras muito grandes, que se auxiliavam umas às outras ao discutir a questão do espaço na pintura. Também converso com a tradição pictórica, mas, diferentemente do Impressionismo, que buscava uma pincelada que virava luz, começo a desenvolver nesta época um trabalho que não tem ligação direta com o que está sendo visto do lado de fora, com a mudança de uma paisagem real que se altera a partir de efeitos ópticos. Minhas telas também contêm muita matéria, mas elas são lisas, planas, criam uma superfície única. Quando se pensa em paisagem pura e simples, minhas questões não são as mesmas do Impressionismo, mas, no caso destes pintores, a pintura se dá a partir de um embate com o real; no meu caso tudo vem de um espaço interior. Até hoje, a paisagem é muito presente na arte contemporânea.

Logo depois das "Paisagens interiores", você vai se dedicar à série "Cosmogônica", em que apresenta trabalhos nos quais a monocromia é quase sempre quebrada por uma espécie de aparição ou explosão de outra cor. Como aconteceu essa transição de uma série para a outra? Uma cor pede outra. Como disse antes, não trabalho com separação de áreas, e não existe nenhum esquema ou rascunho pré-estabelecido. As cores sempre entram invadindo o espaço da outra, geralmente criando uma terceira. Não trabalho com uma palheta muito grande: basicamente alguns violetas, o alumínio em pó e vários amarelos. A série "Cosmogônica" apresenta trabalhos mais homogêneos e refletem uma espécie de saturação da figuração. É como se cada um destes trabalhos contivesse em si o máximo de figuração possível, mesmo não possuindo qualquer forma ou figura como as entendemos. Por mais que as telas pareçam abstratas, há toda uma tradição figurativa ali. A cor entra por inteiro e é interrompida por uma espécie de explosão de outro tom que vem de dentro da tela para a superfície. A luz não está vindo pela adição do branco, pela parte externa do quadro, e sim através da superfície branca anterior à própria pintura. Consigo isto a partir da retirada de tinta, revelando o que estava por trás das muitas camadas da outra cor. O que aparece é a superfície inicial da pintura.

Depois disso vem a "Série 56", em que você agrupou 56 pequenas caixas de cedro pintadas, formando um painel único. Qual foi sua motivação para realizá-lo? De início, estas pequenas caixas nos remetem às pinturas de Castagnetto, pintor que produziu principalmente pequenas paisagens marinhas na virada para o século XX. Como esta escala reduzida poderia conter, paradoxalmente, tanto espaço? Na pintura contemporânea, nem sempre o grande formato significa grandes espaços. Com a "Série 56", quis voltar a uma questão do micro e do macro, que já estava um pouco presente na série "Cosmogônica". Existe em cada uma das pequenas pinturas uma autonomia, mas também há relações entre elas, formando um conjunto. Ou seja, há um universo que abrange todos os trabalhos como um todo e outro onde cada parte é vista isoladamente. Todas foram feitas ao mesmo tempo e nenhuma foi rejeitada. A "Série 56" é curiosamente sucedida por uma série com telas grandes.

Você enxerga a escala como uma das questões do seu trabalho? Nestas telas grandes, há uma acentuação da horizontalidade, com formatos quase panorâmicos. Isso ocorre para estabelecer, mais uma vez, um diálogo com a tradição paisagística? Estas pinturas recentes, feitas entre 1999 e o primeiro semestre de 2000, ainda não estão concluídas e não têm título. Dá para notar que a escala realmente é importante e há sempre uma alternância entre trabalhos pequenos e grandes no meu percurso. Neste momento, o trabalho está ganhando corpo, onde essa horizontalidade fica mais evidente. Este formato, que é meio panorâmico, afirma a contemplação e sugere a sensação de que é preciso um certo convívio com aquele espaço que a pintura forma, exigindo do espectador uma complacência que não se dá de imediato. Tudo caminha entre a figuração e a abstração.

O livro termina mostrando estas abstrações que são paisagens ou vice-versa. O que é abstração depois da Pop, do Minimalismo e de Pollock? É curioso falar de paisagem quando nos perguntamos em que parte do homem ainda habita essa natureza. Aceito, como diz o texto do Paulo Sergio Duarte, o peso de todos os paradigmas da arte contemporânea e faço perguntas como: se existe uma arte abstrata hoje, que natureza é esta que ela abstrai? Minhas respostas são as pinturas e, quando estou trabalhando, não existe um ancoramento teórico prévio, mas sim uma dialética entre essa possível paisagem e sua impalpável abstração.

 

Marcus André nasceu no Rio de Janeiro em 1961. Trabalha há 20 anos com pintura, tendo frequentado escolas de arte e ateliês no Brasil e nos EUA. Marcus André tem participado de diversas exposições, pelas capitais brasileiras e por diversos países, e suas obras fazem parte dos principais acervos do Brasil.

Daniela Name nasceu em 1973 e é formada em jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Trabalha no Segundo Caderno do jornal O Globo como repórter especializada em artes plásticas. Atualmente, também prepara um livro sobre a Geração 80 a partir de uma bolsa de pesquisa cedida pelo Programa de Bolsas da RioArte.

 
 
   
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