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Abandono
e permanência *
A pintura
contemporânea lembra uma arena da luta entre o abandono e a permanência.
Mesmo nas telas onde reina o excesso, mais do que esquecer, o pintor
deixa de lado, reduz, elimina, abandona partes significativas de
seu trabalho, à procura do que deve permanecer. O que permanece
e encontra-se presente, antes mesmo de ele enfrentar a tela em branco,
é a história da pintura. Todo pintor, hoje, querendo ou não, confronta-se
com esse superego obstinado que o vigia com seus paradigmas. A história
infiltra-se no trabalho como memória, método e, até mesmo, tema.
Às vezes surge o paradoxo. A história parece ter o poder de inverter
a negação: torna-se tanto mais presente quanto mais o autor insiste
na sua ausência. O talento do pintor contemporâneo encontra-se na
capacidade de neutralizar a força dessa presença sem recalcá-la.
A pintura
de Marcus André manifesta essa capacidade incomum de pagar o inevitável
tributo à história e, ao mesmo tempo, de impedir que ela domine
a cena, eclipsando a presença do trabalho atual. Desde a técnica
escolhida, a encáustica, até a atividade operária do fazer e refazer
cada superfície que se acumula por subtração dos excessos, a tradição
se condensa, está presente, mas não atua com a mesma força do pensamento
pictórico que se materializa aos nossos olhos. Não há traços miméticos;
o gesto é trabalho, por isso é apagado em favor do elemento pensado.
O corpo não é condutor de impulsos que reagem à ordem de uma determinada
cultura; ao contrário, materializa e torna visível a ação refletida.
Mas nem por isso censura os momentos de indecisão, a forma vacila
porque não é conseqüência de um programa ditado a priori. A forma
encontra-se na troca permanente entre o fazer e o pensar; parece
vacilar porque exibe essa troca e solicita este mesmo movimento
do olho que a descobre. O elogio do trabalho pictórico como experiência
refletida produz qualidades inesperadas, como essa paleta cujas
cores não são encontradas em nenhum pigmento puro e onde a opacidade
realiza-se, muitas vezes, pelo acúmulo de transparências. As telas
abrem-se como horizontes que se superpõem à saturada paisagem real
e parecem desafiá-la. Abandonam a nitidez das figuras, as referências
explícitas ao corpo e ao gesto, e permanecem como imagens possíveis
de uma paisagem que seria habitada por essa pintura e pelo seu pensamento.
(extrato
do texto "Essas telas só se entregam por inteiro", Rio
de Janeiro, julho de 2000)
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A
primeira parte deste texto - "Abandono e permanência" - foi publicada
no folder da exposição de Marcus André, no Centro Cultural São Paulo,
exibida de 16 de agosto a 12 de setembro de 1999.
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