Entrevista
Daniela Name

 

"Fogo sem matéria"
Sônia Salzstein


 
sem título, 2000 – encaústica e óleo s/ tela – 150 x 250 cm – Coleção do Artista, Rio de Janeiro
 
sem título “ série cosmogônica", 1997 – encaústica e óleo s/ tela – 1160 x 210cm – Coleção do Artista, Rio de Janeiro
 
 
Lutacontraoverde - sem título “série cosmogônica”, 1998 – encaústica e óleo s/ tela – 1160 x 210cm – Coleção do Artista, Rio de Janeiro
 

 
ESSAS TELAS SÓ SE ENTREGAM POR INTEIRO

Paulo Sergio Duarte
 
   

Abandono e permanência *

A pintura contemporânea lembra uma arena da luta entre o abandono e a permanência. Mesmo nas telas onde reina o excesso, mais do que esquecer, o pintor deixa de lado, reduz, elimina, abandona partes significativas de seu trabalho, à procura do que deve permanecer. O que permanece e encontra-se presente, antes mesmo de ele enfrentar a tela em branco, é a história da pintura. Todo pintor, hoje, querendo ou não, confronta-se com esse superego obstinado que o vigia com seus paradigmas. A história infiltra-se no trabalho como memória, método e, até mesmo, tema. Às vezes surge o paradoxo. A história parece ter o poder de inverter a negação: torna-se tanto mais presente quanto mais o autor insiste na sua ausência. O talento do pintor contemporâneo encontra-se na capacidade de neutralizar a força dessa presença sem recalcá-la.

A pintura de Marcus André manifesta essa capacidade incomum de pagar o inevitável tributo à história e, ao mesmo tempo, de impedir que ela domine a cena, eclipsando a presença do trabalho atual. Desde a técnica escolhida, a encáustica, até a atividade operária do fazer e refazer cada superfície que se acumula por subtração dos excessos, a tradição se condensa, está presente, mas não atua com a mesma força do pensamento pictórico que se materializa aos nossos olhos. Não há traços miméticos; o gesto é trabalho, por isso é apagado em favor do elemento pensado. O corpo não é condutor de impulsos que reagem à ordem de uma determinada cultura; ao contrário, materializa e torna visível a ação refletida. Mas nem por isso censura os momentos de indecisão, a forma vacila porque não é conseqüência de um programa ditado a priori. A forma encontra-se na troca permanente entre o fazer e o pensar; parece vacilar porque exibe essa troca e solicita este mesmo movimento do olho que a descobre. O elogio do trabalho pictórico como experiência refletida produz qualidades inesperadas, como essa paleta cujas cores não são encontradas em nenhum pigmento puro e onde a opacidade realiza-se, muitas vezes, pelo acúmulo de transparências. As telas abrem-se como horizontes que se superpõem à saturada paisagem real e parecem desafiá-la. Abandonam a nitidez das figuras, as referências explícitas ao corpo e ao gesto, e permanecem como imagens possíveis de uma paisagem que seria habitada por essa pintura e pelo seu pensamento.

(extrato do texto "Essas telas só se entregam por inteiro", Rio de Janeiro, julho de 2000)

 

* A primeira parte deste texto - "Abandono e permanência" - foi publicada no folder da exposição de Marcus André, no Centro Cultural São Paulo, exibida de 16 de agosto a 12 de setembro de 1999.

 

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