Entrevista
Daniela Name

 
 
sem título, 1999 – encaústica e óleo s/ tela – 120 x 220 cm – Coleção do Artista, Rio de Janeiro
 
 
sem título, 1999 – encaústica e óleo s/ tela – 130 x 280 cm – Coleção do Artista, Rio de Janeiro
 


 
FOGO SEM MATÉRIA*

Sônia Salzstein
 
   

Dois elementos são marcantes nas telas de Marcus André: os formatos retangulares pronunciados e a organização das superfícies em camadas horizontais. Esses elementos apareceram cedo na pintura do artista, em meados dos anos 1980, e acabaram por constituir, no curso da década subseqüente, o núcleo mais interno de seu trabalho, indicando, evidentemente, a inclinação primeira e decisiva do artista por uma poética da paisagem. Mas é preciso acrescentar que esta, desde o princípio, foi experimentada com certa circunspecção intelectual e contida numa expressividade rarefeita, uma eloqüência rebaixada a quase nada, "oriental", sugerindo já o rumo posterior do trabalho: a paisagem vista através de uma espécie de apagamento progressivo da visão e sob a ondulação incerta de um ponto de vista do qual se teria arrebatado a linha de horizonte.

Em todo caso, importa sublinhar que ao longo dos anos 1990 a paisagem foi ressecando a atmosfera lírica que havia marcado o período anterior e assomando para o pintor como um esquema fixo e penetrante da visão, o lugar mais propício para se indagar, enfim, o esvaziamento contemporâneo da forma, carcaça de um espaço destituído que cabia interrogar. Se no momento inicial ela ainda serviu de nicho a uma iconografia sucinta, esta não se manifestou senão de maneira residual, limada num processo de abrasão do espaço ou - o que dá no mesmo - furtiva e incompreensível ao crivo ofuscante da visão. A partir de meados da última década, a paisagem foi se impondo ao trabalho como uma experiência de "distância", um campo visual obscuro e inextricável - apesar das freqüentes eclosões de luz que de fato vinham dissolvê-lo e desorganizá-lo ainda mais.

Não obstante o sentido radical de privação e risco, que está na raiz do interesse do artista por essa forma oca que para ele sempre foi a paisagem, não deixa de ser inquietante um trabalho contemporâneo pretender recolocar na ordem do dia paradigma tão célebre da tradição e da história da arte. De fato, salvo se essa pintura estiver às voltas com a paródia ou o comentário de um gênero (e não parece ser esse o caso de Marcus André), o que pode hoje significar uma pintura de paisagem? Aliás, o que pode ainda significar "Natureza", modelo secular da pintura (e especialmente da pintura de paisagem), depois da aventura de sua desconstrução empreendida por Cézanne e pelo Monet meio cego dos anos finais - indivíduos, lembremos, premidos pela solidão e pela dúvida angustiante quanto às possibilidades da expressão, da comunicação das "sensações naturais", afinal? Na pintura de Marcus André, de que natureza se trata, levando-se em conta que a partir daqueles dois pintores a arte moderna não cessou de desvelar a sombria complexidade lingüística de uma "natureza" interior, natureza que hoje, de resto, vemos geneticamente miscigenada a um mundo ultra-artificial?

(extrato do texto Fogo sem matéria, São Paulo, junho de 2000)

* A expressão "fogo sem matéria" aparece no poema "Cimetière marin", de Paul Valéry. Fermé, sacré, plein d'un feu sans matière…

 

Sônia Salzstein é crítica de arte, tendo inúmeros textos publicados sobre arte moderna e contemporânea brasileira, entre eles ensaios sobre Tarsila do Amaral, Mira Schendel, Waltercio Caldas e Iole de Freitas. Estudou na Escola de Comunicações e Artes da USP e no Departamento de Filosofia Letras e Ciências Humanas da mesma universidade, onde realizou mestrado e doutorado abordando temas da arte brasileira. Ao lado do trabalho como crítica, Sônia atuou como curadora em diversas exposições, sendo a mais recente delas a grande mostra dedicada à artista Iole de Freitas no Centro de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro

 
 
         
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