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Dois
elementos são marcantes nas telas de Marcus André: os formatos retangulares
pronunciados e a organização das superfícies em camadas horizontais.
Esses elementos apareceram cedo na pintura do artista, em meados
dos anos 1980, e acabaram por constituir, no curso da década subseqüente,
o núcleo mais interno de seu trabalho, indicando, evidentemente,
a inclinação primeira e decisiva do artista por uma poética da paisagem.
Mas é preciso acrescentar que esta, desde o princípio, foi experimentada
com certa circunspecção intelectual e contida numa expressividade
rarefeita, uma eloqüência rebaixada a quase nada, "oriental", sugerindo
já o rumo posterior do trabalho: a paisagem vista através de uma
espécie de apagamento progressivo da visão e sob a ondulação incerta
de um ponto de vista do qual se teria arrebatado a linha de horizonte.
Em
todo caso, importa sublinhar que ao longo dos anos 1990 a paisagem
foi ressecando a atmosfera lírica que havia marcado o período anterior
e assomando para o pintor como um esquema fixo e penetrante da visão,
o lugar mais propício para se indagar, enfim, o esvaziamento contemporâneo
da forma, carcaça de um espaço destituído que cabia interrogar.
Se no momento inicial ela ainda serviu de nicho a uma iconografia
sucinta, esta não se manifestou senão de maneira residual, limada
num processo de abrasão do espaço ou - o que dá no mesmo - furtiva
e incompreensível ao crivo ofuscante da visão. A partir de meados
da última década, a paisagem foi se impondo ao trabalho como uma
experiência de "distância", um campo visual obscuro e inextricável
- apesar das freqüentes eclosões de luz que de fato vinham dissolvê-lo
e desorganizá-lo ainda mais.
Não
obstante o sentido radical de privação e risco, que está na raiz
do interesse do artista por essa forma oca que para ele sempre foi
a paisagem, não deixa de ser inquietante um trabalho contemporâneo
pretender recolocar na ordem do dia paradigma tão célebre da tradição
e da história da arte. De fato, salvo se essa pintura estiver às
voltas com a paródia ou o comentário de um gênero (e não parece
ser esse o caso de Marcus André), o que pode hoje significar uma
pintura de paisagem? Aliás, o que pode ainda significar "Natureza",
modelo secular da pintura (e especialmente da pintura de paisagem),
depois da aventura de sua desconstrução empreendida por Cézanne
e pelo Monet meio cego dos anos finais - indivíduos, lembremos,
premidos pela solidão e pela dúvida angustiante quanto às possibilidades
da expressão, da comunicação das "sensações naturais", afinal? Na
pintura de Marcus André, de que natureza se trata, levando-se em
conta que a partir daqueles dois pintores a arte moderna não cessou
de desvelar a sombria complexidade lingüística de uma "natureza"
interior, natureza que hoje, de resto, vemos geneticamente miscigenada
a um mundo ultra-artificial?
(extrato
do texto Fogo sem matéria, São Paulo, junho
de 2000)
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A expressão "fogo sem matéria" aparece no poema "Cimetière
marin", de Paul Valéry. Fermé, sacré, plein d'un feu sans matière…
Sônia
Salzstein é crítica de arte, tendo inúmeros textos publicados sobre
arte moderna e contemporânea brasileira, entre eles ensaios sobre
Tarsila do Amaral, Mira Schendel, Waltercio Caldas e Iole de Freitas.
Estudou na Escola de Comunicações e Artes da USP e no Departamento
de Filosofia Letras e Ciências Humanas da mesma universidade, onde
realizou mestrado e doutorado abordando temas da arte brasileira.
Ao lado do trabalho como crítica, Sônia atuou como curadora em diversas
exposições, sendo a mais recente delas a grande mostra dedicada
à artista Iole de Freitas no Centro de Arte Hélio Oiticica, no Rio
de Janeiro
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