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maio 22, 2018

Só nos resta girar. A vertigem pode nos dar a direção por Ricardo Resende

Só nos resta girar. A vertigem pode nos dar a direção.

RICARDO RESENDE

A fala da fala da fala: Marinaldo Santos, artista paraense de alma cigana, um dia disse a outro artista: “o caboclo só quer duas coisas na vida: uma porta para entrar e uma janela para enxergar”. “Como suportar tanto rigor em tanta simplicidade”, pensou o outro artista. [1]

A exposição de André Parente na Galeria Jaqueline Martins é essa janela aberta na fala do caboclo. Janela de dentro de um lugar seguro. É também um desatar do nó na garganta daqueles que hoje se sentem amordaçados. Desate que pode ajudar a liberar toda a angústia causada pelo atual momento político brasileiro. Através dessa janela Parente nos faz pensar, e pensar hoje pode ser tanto solução como problema. Só nos resta sair da fossa xingando e girando em Nagô. Um tremendo de um desabafo. Vai pra songa da mironga do kabuletê!. [2]

Pensar – ainda mais quando se expõem os pensamentos, que é o caso de André Parente – pode ser considerado uma forma de manifestar-se e se posicionar politicamente contra a normatividade brasileira. A arte pode ser até inútil, sem sentido algum. Algo atemporal e incompreensível, pois pode não caber na vida cotidiana. No entanto, há também a arte que toca, transforma, retira do lugar comum, provoca, que é subjetiva, que mexe com os sentidos e, portanto, é subversiva. Os vídeos de André Parente não perdem a relação da linguagem com o homem ao estenderem-se para a política. Não perdem na poética. Ele sabe arriscar-se na política sem perder a poesia da imagem, do gestual e da fala dentro de um trabalho de arte engajado.

É aqui que se coloca a pergunta: pode um artista se dizer apolítico? Pode um artista não se interessar por política e criar uma bolha na forma de um paraíso irreal, onde cria sem nenhuma repercussão na vida cotidiana? Arte inofensiva? Pois bem, diante do quadro social e político que se agrava dia após dia no mundo, um descalabro que parece não ter fim, é comum ouvir de artistas em posição confortável um retumbante “não sou político”! Por lidar com o humano, com a criação, por ter – o mais das vezes – percepção aguçada, por ser criativo e com isso ver mais claramente as coisas, o artista teria por obrigação simplesmente fechar os olhos e continuar a criar sem consequências.

Pois bem, não é esse o caso de André Parente. O artista é ousado ao trazer tal mostra para a Galeria Jaqueline Martins em momento tão complexo do ponto de vista social-político quanto este. Em alguns trabalhos que trouxe para a exposição Kabuletê: na tonga da mironga, as mensagens são tão pouco sutis quanto título da canção que inspira o nome dessa exposição. Os compositores Vinicius de Morais e Toquinho usaram a língua Nagô para dizer, xingar e extravasar a raiva que sentiam no período de nossa última ditadura imposta pelos militares. Já o atual sistema de repressão se dá por diferentes “braços” institucionais de forma “branda”, branca e sufocante. Não se tem a quem recorrer em instâncias superiores.

Parente impôs um vácuo no meio do que expõe, intencionalmente. Desta maneira nos dá mostras de uma coerência investigativa que norteia uma trajetória que beira quatro décadas. Tanto em seu começo como nos trabalhos mais recentes, Parente está olhando para as questões do visível, aquilo que se vê e o que não se vê, o que está por detrás da planaridade da imagem cinematográfica.

O artista explora em sua obra a poética da imagem e os limites da linguagem cinematográfica transitando pelo desenho, fotografia, performance, vídeo, filme e instalações interativas.

Historicamente, mostras são lugares onde artistas expressam e denunciam, segundo suas poéticas, a conjuntura das coisas nos campos artístico, social e político. A presente exposição – também uma apresentação da trajetória do artista – é arriscada na medida em que mostra trabalhos em que a mensagem é clara, direta e inadjetivável, caso de Bandalha, de 2017-2018.

São quatro versões da bandeira do Brasil, nas cores amarela, verde, azul, e mais uma na cor preta. Essa última, de contumaz engajamento político, simboliza no negro o luto.

O contorno das formas nessas bandeiras – que desempenham esteticamente um papel político – é desenhado com a escrita, remetendo à potência de outros trabalhos emblemáticos realizados nos anos 1960 como os de Claudio Tozzi, Gilberto Salvador, Anna Maria Maiolino, Antônio Dias, Rubens Gerchman e Anna Bella Geiger. As bandeiras de Parente parecem datar daquela época, ou, posto melhor, atualizar aquele mesmo contexto político.

Parente desenha com o formato da bandeira brasileira os diálogos telefônicos ao longo dos quais, em linguajar vulgar, são dadas todas as estratégias que estavam por detrás do afastamento da presidente do Brasil. Em maio de 2016, um mês depois do impedimento no Congresso, os jornais divulgavam os áudios dos diálogos entre políticos e empresários.

Irreal – trabalho de 2016 que consiste numa moeda de metal dourada e prateada de diminutos 3,6 cm de diâmetro – expressa a irrealidade da política brasileira ao trazer cunhada a imagem de dois dos principais conspiradores que promoveram a ação perpetrada contra a presidenta: Eduardo Cunha, presidente do Congresso Nacional e o vice-presidente da República Michel Temer, ambos do (agora antigo) Partido do Movimento Democrático Brasileiro. Os dois lados de uma mesma moeda, “farinha do mesmo saco”. O 1 irreal de André Parente pode também ser pensado em relação com o Zero Cruzeiro de Cildo Meireles, originado, como no caso dos artistas citados acima, nos anos 1960. Enquanto Meireles substituiu os valores da cédula de CR$ 1 pela imagem de um índio e de um interno de uma instituição psiquiátrica, retratados como os heróis brasileiros sem valor na sociedade, Parente substitui as imagens oficiais da moeda de R$ 1 pela dos anti-heróis nacionais.

“Foi criada uma moeda que não é deste mundo”, nas palavras da artista Katia Maciel, fruto da irrealidade que vivemos.

Resvalamos nos últimos anos para o poço sem fundo do kabuletê. Na tonga da mironga, você é o outro que não ouve e não fala, você é o que olha e não vê. Aí só lhe resta tomar uma pala e aí sim você vai ter que aprender. Na marra. Mas se você não fuma, não traga e não paga para ver, só resta lhe rogar uma praga pra te mandar pra tonga da mironga do kabuletê. Foi o que disseram os dois músicos ao criarem esse clássico da música popular brasileira diante da depressão sem fim, diante de um país que se esvaía pelo ralo de uma história mal contada, que não começa nem propriamente termina. É a lógica do tempo. É circular como a história nesse tempo que vai e vem. Como na fita de Möbius. Rodamos e rodamos, damos voltas, nos contorcemos, trespassamos, mas não chegamos a lugar nenhum fisicamente. Porém, dançar ou girar sobre si mesmo pode ser uma forma de alcançar o conhecimento intuitivo.

Conta-nos certa passagem histórica que São Francisco de Assis atravessava a pé a Toscana em companhia de um discípulo, o frei Masseo, quando chegaram a uma encruzilhada que apontava para três lugares: Florença, Arezzo e Siena. Masseo perguntou que caminho tomariam. São Francisco respondeu, “o caminho que Deus quiser”. Surpreendido, Masseo perguntou que caminho seria esse. “Saberemos através de um sinal enviado por ele”, respondeu Francisco. E ordenou que o frade, que lhe tinha prometido obediência, desse voltas sobre si mesmo, como fazem as crianças, até que o mandasse parar. O homem girou, girou, girou sobre si mesmo até cair no chão. Ainda tonto levantou-se e, diante do silêncio do santo, voltou a rodopiar. Com a vertigem caiu novamente, mas agora com a sensação de ter rodado a vida toda. De improviso, escutou as palavras: “Pare! E diga qual é a direção para a qual tem o rosto voltado?”. “Para Siena!”, disse, ainda sentindo a terra girando ao seu redor e sem o chão debaixo dos seus pés. “Pois então para Siena seguimos!” E assim, para Siena foram. [3]

Era uma vez e o agora. O presente já é passado. O agora também é o futuro que nunca chega, pois vivemos sempre no era uma vez. Como uma fábula contada por fadas. Fica a sensação de que os problemas que nos assolam nada têm que ver com a gente. Estamos sempre em processo regressivo. O agora é sempre o mesmo, o que insiste, o insistente, a repetição, a insistência. É como andar em círculos. É a circularidade, é rodar no mesmo lugar, como um pião. É rodopiar sobre si mesmo. É não ter saída para ir adiante. A vertigem pode nos dar a direção.

Vivemos em um país surreal, que não sai do lugar, roda há séculos no berço colonial em que nasceu, berço de ganância, ignorância e mesquinhez. Os adjetivos seriam sem conta. Um país que se autodestrói diariamente, para orgulho de seu povo.

É esta a tônica de outro trabalho, o livro-objeto escola sem partido, de 2018. Um livro aberto sobre uma mesa, livro em que a pauta, as linhas que dividem as páginas para suportar a escrita, vão se multiplicando até que a folha inteira se cubra de negro. Aqui temos novamente o preto simbolizando luto abissal, um buraco sem fundo para o qual estamos nos dirigindo com essa proposta que tramita no Congresso Nacional e que não visa outra coisa senão censurar o desenvolvimento crítico do aluno e do jovem em formação ao eliminar disciplinas humanistas da grade curricular escolar. É o obscurantismo como proposta.

André Parente abre esse caderno sobre uma mesa feita de cavaletes. De certo modo precária na sua sustentação, como o que é proposto pelos políticos para essa nova categoria da sociedade, a dos alienados que viverão na escuridão.

Diante do quadro sombrio “pintado” por Parente nesses três trabalhos – Bandalha, Irreal e Escola sem partido –, que alternativa nos resta afora sair xingando em Nagô? Agora, mais uma vez, diante de todo este sem-sentido, nos resta rodar e rodar e rodar, para levar o corpo a um transe que nos tire do lugar-comum.

Levar o mundo ao transe. Transe por rodopio. Sair xingando em Nagô.

O vídeo Circuladô, de 2007, nada mais é que esse rodopiar sem fim. Circular é, no limite, e girar e girar e girar. São os homens que rodam, rodopiam ou que circundam. É o circular na imagem que se repete. Que recomeça, começa, termina e recomeça no mesmo lugar, no mesmo eixo. É insistir no mesmo movimento. Na repetição do giro, o deslocamento circular que conduz ao transe. É fazer a cabeça e os pensamentos entrarem em transe como uma forma de adquirir conhecimento em outra dimensão. O transe é a repetição circular do pensamento. Um mesmo pensamento que não sai da cabeça. Mesmo querendo, não sai, não te deixa. É esse pensamento insistente que leva à loucura.

É o que se pode apreender dessa instalação videográfica, feita com imagens de arquivo, que retrata o movimento de rodopiar, bem como de outros trabalhos de Parente nos quais a repetição do gesto, da fala e da imagem parecem conduzir a um estado hipnótico: trata-se de uma imagem do desejo de fincar-se no tempo. Ficar no mesmo lugar. Não sair do lugar. Como um parafuso a observar-se no desenho resultante do rodopio dos dervixes, religiosos turcos que, para meditarem e orarem, giram por horas num movimento contínuo, harmoniosamente coreografado no espaço. Também no rodopiar de Édipo, de Corisco, do músico Thelonious Monk e dos franciscanos de Pasolini. Giram e giram em situação-limite com destino à morte, ao transe na busca da leveza do espirito e do conhecimento.

É o estágio elevado da loucura: circular, circular e circular. No vídeo, tem ao fundo ao fundo uma música continua, uma sonoridade que se repete, transcendência pela audição, sons guturais, ocos, estridentes e apocalípticos. É quando surge Corisco, baleado e enfurecido, dando rodopios diante de seu inimigo com arma em punho, como um animal que com gestos bruscos tenta confundir seu predador. Rodopia como que para exorcizar o demônio que nos habita no instante mesmo em que enfrenta a morte iminente. Não chega a tombar, fica rodopiando infinitamente no filme sem fim.

Para a exposição na Galeria Jaqueline Martins, Parente veio xingar também, como fizeram os poetas Kabuletê. na tonga da mironga! É o desejo de “chutar o pau da barraca”.

Em Curto-circuito, de 1979, filme em 35 mm, a circularidade se dá de outro modo. Não há diálogos nem enredo, portanto, não há começo nem fim. É apenas cinema, imagem em movimento que narra uma suposta perseguição infinita. As situações se repetem, têm semelhança, a fuga continua nas cenas pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro de um homem correndo. Apenas no final ele dá as pistas de que tem um perseguidor que nunca se aproxima, dá a pista ao olhar para trás e para os lados como que à procura de quem o persegue, até entrar por uma porta e desaparecer em um bairro residencial carioca. Da mesma maneira que surgiu em uma rua nas docas da região portuária, aparece, desaparece, por detrás da imagem. Fuga contínua, fuga sem que se saiba quem é que o persegue pelas ruas da cidade. A imagem da fuga se repete no filme todo, em cenas contendo ruas, carros, ônibus, galpões, portões, muros, portas, calçadas, asfalto. Em determinado momento, retoma-se a cena inicial; o homem deixa de correr e passa a dirigir um carro, no mesmo sentido da fuga. O que se vê é pela janela do fundo do carro. Depois volta a correr nas ruas, cruza com pessoas que estranham o homem correndo a esmo, sem saber do que foge. É também uma forma circular. O fim pode ser também o começo. As imagens em preto e branco mostram o tempo que passou. É o tempo o que parece perseguir o homem.

Outro trabalho, A Cachaça Decisão, de 2018, que é feita e engarrafada na sua cidade de nascença, Sabinópolis, no interior do estado de Minas Gerais, tem nome sugestivo para se dar a um rótulo de bebida alcoólica. Segundo o próprio artista, as garrafas dispostas circularmente também funcionam como um despacho onde se oferece aguardente para os santos do Candomblé e da Umbanda. São 12 garrafas de cachaça que formam um despacho – novamente – em círculo. Parente conta que tinha como costume uma brincadeira: beber um gole da bebida toda vez que tinha que tomar uma grande decisão. Nada mais simbólico.

Kabuletês é uma roda de homens e mulheres em trajes típicos portugueses [4] sobre uma bandeja de bolo de mesa. Todos olham para o mesmo lugar, para o centro, sem expressão alguma no semblante. O único exercício retratado nessas pequenas esculturas de louça, arranjadas nessa bandeja de cristal, é o ajeitar das roupas em gesto de arriá-las para defecar. E cagam coletivamente. Sendo miniaturas, exigem que o espectador se aproxime para que apreenda toda a cena montada. Os “troços” são enormes e desproporcionais às figurinhas. Uma tremenda cagada coletiva. É defecar para aliviar. É defecar para purificar. Com o ato, vão todas as impurezas. Expelidas, deixam um vazio bom no corpo. Não à toa o gesto é também conhecido como purgar.

A pequena instalação de homenzinhos e mulherezinhas é uma rede de mentalização. Como um suicídio coletivo às avessas. Não se morre, se purifica. São cagões portugueses em suas vestimentas típicas. Múltiplas leituras: pode ser também uma reunião para um despacho. O espaço se faz em círculo novamente. O mesmo que se viu na disposição das garrafas da aguardente Decisão.

Dona Raimunda, de 1977 – 2015, era uma grande contadora de histórias, que se transformou em uma narrativa alegórica de si própria. No final dos anos 70, em Canoa Quebrada, Dona Raimunda, que contava então por volta de 82 anos, já estava cega de tanto sol refletido na areia enquanto cavava lutando contra a duna que invadia e cobria sua casa. Repetia o mesmo gesto diário, infinitamente, tentando retirar a areia movente do entorno da sua casa, que insistia dia após dia, em cobri-la. Vinha para cima com a força do vento Aracati que varre as dunas de areia tornando sua vida circular no tempo à beira de um estado de demência, dos pequenos gestos repetidos centenas, milhares e milhares de vezes ao longo do dia, sob o sol inclemente do Ceará.
Matapu – zunidor, de 2018, são os zunidores da tribo Mehinako, utilizados em performances e desenhos em pastel que exploram a forma da onda sonora gerada pelo som desses instrumentos e a gestualidade do giro. Quando girado, o pequeno instrumento produz um som grave e profundo de baixa frequência. A sonoridade percorre distâncias extremamente longas pelas florestas e campos, claramente audível como os sons estridentes e ritmados das cigarras. Os giros podem ser feitos na horizontal, sobre a cabeça ou na vertical, ao lado do corpo e são utilizados em atividades as mais primordiais para os indígenas, tais como a comunicação, a caça e a colheita ou em rituais religiosos, mágicos e orgiásticos.

A bela e a fera ou a ferida grande demais..., de 2014 (em parceria com Lucas Parente), é a documentação da vídeoinstalação em que um jovem negro maltrapilho dorme sobre um colchão com motivos estampados de imagens e cenas do artista alemão Rugendas, que veio retratar o Brasil Colônia no século 19.

Deslumbrado com o calor e a exuberância de sua paisagem, o alemão retratou um lugar fantástico e fantasioso misturando sonho e realidade. Vozes se misturam às imagens. Desconexas, surgem cenas de um filme pornográfico onde um homem é penetrado por um consolo eletrônico. Sonhos de um sonhador aturdido e jogado no meio de uma cidade que não cabe dentro da miríade de montanhas que a circundam, são como gigantescas sombras inertes dormindo na paisagem. Urubus voam nos sonhos do jovem. A fala vai e volta, as imagens se repetem. Somos um só. Intestino e esgoto são a mesma coisa. Dados, relatos históricos, gritos, gemidos, militares, multidão sinistra, homens com armas nas mãos, manifestações, bandeiras rasgadas, mortos, presos e deportados que vão para o Acre. História desconexa de um desastre que mistura a colônia portuguesa com o país atual. É como a roleta; roda e roda e o tempo – que não termina –, parece ficar no mesmo lugar. A instalação é composta de projeção e televisão. O som da respiração e do caos urbano. Juntos, eles produzem um clima de terror e de ironia, de erotismo e hipnose. É todo um caráter híbrido na multiplicação de sentidos. Daí surge o diálogo entre estes três suportes, os elementos a compor a instalação.

Em Reflexo, de 2018, a fotografia é o site specific. Uma imagem fotográfica do reflexo do espaço se funde com a imagem especular do espectador na galeria, em um jogo sem fim. A imagem em movimento do espectador funde-se à fotografia espelhada.

No vídeo Mulher Maravilha, de 2015, uma mulher gira, gira e gira. Como num passe de mágica, muda também de roupa. O gesto de rodar se repete inúmeras vezes até se transformar na mulher maravilha, o ícone da mulher idealizada da cultura de massas. A representação da pátria na mulher vestida com as cores, linhas e estrelas da bandeira norte-americana. A heroína boazinha é defensora da moral e ética daquele país.

Parente é desses artistas com histórico. Vem de uma linhagem de artistas e intelectuais. Por sua vez, desenvolveu-se como artista inicialmente em Fortaleza, depois veio para o Rio de Janeiro onde começou a estudar e a experimentar o cinema. Vai para a Paris, onde pesquisa e desenvolve um trabalho experimental e aprofundado da imagem fílmica ao desconstrui-la nas suas convenções cinematográficas.

Acompanho de longa data o trabalho de André Parente, embora à distância. Temos o Ceará em comum e lá, muitos amigos com quem dividimos histórias e experiências de arte. Mas nunca tivemos a oportunidade desse encontro que o texto e exposição permitem. Uma leitura poética do trabalho de Parente – modo de aproximação que me tem guiado até o presente momento no texto –, permite caminhos múltiplos e contraditórios, pois o próprio artista transita, deslizando, pelos limites da relação entre a compreensão poética com os da erudição.”

Uma leitura poética do trabalho de Parente – modo de aproximação que me tem guiado até o presente momento no texto – permite caminhos múltiplos e contraditórios, pois o próprio artista transita, deslizando, pelos limites da fotografia, do cinema e do vídeo com suas narrativas muito simples. É a imaginação além do que se vê. Sem a intenção de dissecar, mas de questionar os dispositivos do cinema e do vídeo e da imagem em movimento.

É circular e rodopiar sobre si mesmo. Repetir sem fim, na tonga da mironga. É com esses valores e na janela de André Parente que pensei esse texto para refletir o momento atual, visto nessa exposição.

Só nos resta girar.


Ricardo Resende
Curador

NOTAS

1 Armando Queiroz, artista de Belém do Pará.
2 Uma mistura dos dialetos Nagô e do Candomblé que traduzido é o xingamento “no pelo do cu da sua mãe!” ou na sua tradução literal que soaria algo como “na força do feitiço do vagabundo”. Título de canção criada por Vinícius de Morais e Toquinho, em 1971.
3 SHAH, Idries. The World Of the Sufi. Londres: ISF Publishing, 1979. Pag. 227.
4 Os Cagões são os nomes dos personagens tradicionais, masculinos e femininos, dos presépios das festas de São João em Portugal.

Posted by Patricia Canetti at 11:10 AM

maio 21, 2018

Escultura e movimento na obra recente de Analívia Cordeiro por Fernando Cocchiarale

Escultura e movimento na obra recente de Analívia Cordeiro

FERNANDO COCCHIARALE

O trabalho de Analívia Cordeiro combina princípios da espacialidade planar concretista (apreendida por meio da convivência cotidiana com seu pai, Waldemar Cordeiro, pioneiro da arte concreta brasileira nos anos 50) com a sistematização da teoria de Laban (aprendida com Maria Duschenes).

A esses princípios conceituais soma-se sua disponibilidade experimental permanente para a investigação poética demeios visuais eletrônicos (vídeos) e computacionais dos quais lançou mão, desde o início de seu processo criativo em 1973. São dessa época as coreografias especificamente concebidas para apresentação em vídeo, situando a produção da artista num território em que dançae artes visuais se entrelaçavam.

A antiga divisão da produção artística em artes do espaço (pintura, escultura, desenho e arquitetura) e artes do tempo (música, teatro e dança) considerava a oposição entre a efemeridade destas últimas e a permanência objetual das artes plásticas.

Romper com a sequência dos atos de uma peça teatral, com a sucessão temporal de sons da música ou com movimentos corporais, tornou-se um critério experimental que despertou crescente interesse tanto de artistas, quanto de teóricos e pesquisadores da contemporaneidade.

Seus trabalhos mais recentes foram feitos com base no software Nota-Anna – criado por ela e por Nilton Lobo −, que é capaz de condensar num único espaço vetores essenciais de sequências do movimento corporal humano.

Três chutes (dois de Pelé e um de Bruce Lee) estão na origem dessas esculturas e desenhos de Analívia Cordeiro. São trabalhos cujo sentido, portanto, ultrapassa a contemplação das qualidades formais quase abstratas das obras para alcançar um campo experimental resultante da objetivação de fluxos do movimento em esculturas e desenhos inesquecíveis.

Analívia Cordeiro - Chutes Inesquecíveis, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - 27/05/2018 a 22/07/2018

Posted by Patricia Canetti at 1:02 PM

maio 16, 2018

André Parente: Figuras na paisagem por Patrícia Mourão

Começamos por uma ausência: “Figuras na paisagem” é o título de uma obra de André Parente ausente nesta exposição. Nela, um dispositivo imersivo simulando um binóculo estereoscópico permite ao espectador a navegação por dois espaços distintos – uma biblioteca e uma praia –, cada qual contendo micro histórias sussurradas por um narrador que se põe a ler livros e paisagens. Mas se a obra falta, o convite à leitura permanece, assim como permanece, como força estruturante das obras aqui apresentadas, um certo sentido de separação e distância entre quem vê e o que é visto implícito na ideia de observar “figuras na paisagem”.

No conjunto de obras aqui apresentadas, o convite à leitura e à reflexão começa com a imersão em uma paisagem de imagens. Nas duas instalações interativas, Circuladô e O vento sopra onde quer, somos lançados entre duas experiências: uma imersiva e sensória e outra reflexiva e meditativa. De um lado, somos rodeados pelas imagens, como quem, mergulhado em um mundo outro, não se diferencia mais daquilo que vê. De outro, somos convidados a refletir sobre o nosso próprio modo de percepção e interação com essas imagens, tal como alguém que, enquanto dorme, reflete sobre a própria vigília e o sonho que está a ter, ou ainda, como alguém que, em transe, separa-se do próprio corpo e se vê de fora, como a um outro.

Assim como se infiltra no centro da imersão para provocar a reflexão, a distância também insinua-se no contraste entre, de um lado, estruturas instalativas tecnicamente complexas, que muitas vezes exigem um saber especializado e a colaboração de técnicos e cientistas e, de outro, um universo de referência visual, temático e conceitual que se reporta aos séculos XIX e XX. Projeções múltiplas, controles interativos e arquiteturas digitais concorrem com evocações a dispositivos óticos do século XIX, à pintura de Rugendas e Debret, e ao cinema moderno de Pier Paolo Pasolini, Glauber Rocha e Robert Bresson. Não são escolhas arbitrárias, muito menos nostálgicas; todas elas apontam para momentos de reconfiguração na relação entre os modos de representação do mundo e os de apreensão dessas representações por sujeitos observadores. Nessa junção trans-histórica entre o século XIX e o XXI, a pintura acadêmica e a manipulação digital, o cinema moderno do Pós-guerra e o de exposição, Parente promove uma dobra entre passado e presente, apontando para permanências e continuidades discursivas, históricas, políticas e perceptivas. Nem nostalgia de um tempo perdido, nem celebração eufórica das possibilidades das novas mídias, trata-se aqui de pensar, ao lado do espectador, sobre o modo como percebemos e nos engajamos com as imagens em movimento.

André Parente - Figuras na Paisagem, Sesc Sorocaba, Sorocaba, SP - 05/05/2018 a 29/07/2018

Posted by Patricia Canetti at 1:43 PM

maio 14, 2018

O que se insinua sob a aparência das coisas por Francisco Dalcol

O que se insinua sob a aparência das coisas

FRANCISCO DALCOL

Uma coisa é sempre algo em condições de ser e existir. Não só enquanto evidência de um fato consumado ou de um ato praticado, como daquilo que ainda pode vir-a-ser. É algo assim a sugestão que encontramos ao revisitar as reflexões de Martin Heidegger em suas conferências de 1936 reunidas no livro “A origem da obra de arte”. Ao teorizar o que chama de “aspecto coisal da obra de arte”, afirma o filósofo alemão:

“Todas as obras têm este caráter de coisa. (…) A obra de arte é, com efeito, uma coisa, uma coisa fabricada, mas ela diz ainda algo de diferente do que a simples coisa é. A obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-nos outra coisa”.

Essa dimensão enigmática, capaz de desestabilizar a aparência do óbvio que repousa sobre as coisas, é tomada neste projeto curatorial como uma noção especulativa com a qual se procura aprofundar uma meditação sobre a experiência com a arte em seus modos de instauração no contexto e na circunstância expositiva. Assim, “O tempo das coisas” é uma investigação interessada nos atravessamentos, nas contaminações e nos atritos entre processos artísticos, estratégias expositivas e procedimentos curatoriais.

Inicialmente, partindo de Heidegger, a ideia de que uma obra sempre se endereça a alguma coisa para logo a seguir dar lugar a outra coisa. Algo que se dá não apenas por meio da materialidade com que afirma sua presença no mundo das coisas todas, como também pela potencialidade de fundar o seu próprio tempo de acontecimento entre as demais coisas.

Se a obra é “uma coisa à qual adere ainda algo de outro”, como argumenta o nosso evocado filósofo, ela o é porque remete ao que está para além do que parece dar a ver. Assim, tende a ser coisa ao mesmo tempo em que se revela e esconde, em que se apresenta e desvia. Esse jogo engendrado pela noção de coisa conforme aqui convocada contém em si a probabilidade de um acontecimento a se desvelar como um devenir incerto, impreciso e indeterminado, ao qual diversificadas práticas artísticas contemporâneas parecem confluir em seus distintos processos e estratégias.

Para tentar sondar o invisível e o indizível que se encondem sob a aparência das obras enquanto coisas, tomemos novamente as palavras de Heidegger, para quem “tudo o que se queira entrepor entre nós e a coisa como concepção e enunciado deve ser afastado”, pois somente assim “poderemos abandonar-nos à presença não mascarada da coisa”.

Francisco Dalcol
Crítico de arte, jornalista e pesquisador. Curador do projeto “O tempo das coisas”

O tempo das coisas - módulo 2, Pinacoteca Ruben Berta, Porto Alegre, RS - 18/05/2018 a 27/07/2018
O tempo das coisas - módulo 1, Paço Municipal de Porto Alegre, Porto Alegre, RS - 20/03/2018 a 01/06/2018

Posted by Patricia Canetti at 11:53 AM

maio 10, 2018

Caetano de Almeida: brincando com fogo por Tadeu Chiarelli

Caetano de Almeida: brincando com fogo

TADEU CHIARELLI

Caetano de Almeida, Cassia Bomeny Galeria, Rio de Janeiro, RJ - 16/05/2018 a 30/06/2018

Até há pouco tempo a produção de Caetano de Almeida trazia uma espécie de contradição entre o modo como ele executava a pintura e a maneira como a pensava de fato.

Por um lado, sua produção enfatizava ao máximo os valores mais convencionais da pintura ocidental, sobretudo aqueles ainda hoje muito apreciados pelo senso comum: elas explicitavam a fatura artesanal, a prática do pintar, registrando o tempo de sua fatura, a paciência do artista em desenvolver um tipo de trabalho meticuloso que, em alguma medida, fazia valer cada centavo pago por ele. E isso porque, afinal, Caetano de Almeida deixava claro que, para a realização de cada uma de suas obras, ele trabalhava duro, dispondo o seu tempo que podia ser medido por cada traço ou voluta presa às telas. E como se isso não bastasse, o resultado final daquelas pinturas, além de ser o registro do tempo ali dispendido, era também uma feliz reunião de cores entrecruzadas, uma pintura digna de ser colocada em uma parede.

No entanto, o que poucos notavam é que, apesar do caráter trabalhoso daquelas obras, das evidências do tempo ali dispendido até que o pintor desse por concluída suas produções, em todas aquelas pinturas não havia sinais da “mão” do artista.

É certo que alguns olhos mais ingênuos conseguiam perceber certa “expressividade” em uma ou outra tela, porém tal sensação era causada mais pelo uso calculado de cores e/ou ritmos cromáticos, do que propriamente por uma expressividade vinda do seu “interior” ou do “eu profundo” do artista. E isso porque, há anos, a razão da pintura de Caetano de Almeida eram cálculos bem programados de apropriações de esquemas visuais retirados, quer da produção de artistas fundamentais para a arte brasileira ou internacional (Alfredo Volpi ou Piet Mondrian, por exemplo), quer de padrões retirados de tecidos os mais diversos ou de outros objetos utilitários.

Portanto, esse era o nó do trabalho de Caetano: dispender o máximo de tempo de artesania para produzir um tipo de pintura que, apesar do apelo de sua visualidade, não passava de uma imagem esvaziada de qualquer outro sentido, a não ser aquele de se posicionar ali, entre o trabalho manual e a ironia típica da maneira como os conceitualismos refletem sobre as modalidades artísticas convencionais, sobretudo a pintura [1].

Não que o distanciamento irônico, que sempre caracterizou a produção de Caetano, vez ou outra não fosse atropelado por alguma necessidade de romper com o esquema. Uma pintura em que, de repente, a imagem da trama apropriada das cadeiras de palhinha como que explode, não deixa de ser um sinal de desejo – mesmo que momentâneo – de abandono daquela dualidade constituinte de suas pinturas. Desejo esse rapidamente absorvido pela ironia e pela lógica racional que rege a poética do artista, que se transformava em mais um exemplo da maestria do pintor, de sua capacidade de tudo controlar e transformar em índice de seu talento incensurável. O mesmo pode ser dito de suas “pinturas com buracos”. Nelas também a possibilidade de rompimento, de interferência no plano, para apresenta-lo como objeto real – e não como espaço virtual –, era controlado pelo artista. Controlado de tal maneira que aqueles buracos (muito reais) pareciam – e parecem – mais um índice do virtuosismo do artista.

Porém, no meio dessa produção que parecia apenas investir na fatura da pintura, em sua superfície sempre submissa àquele paradoxo mencionado no início do texto, alguns indícios de transformação começam a aparecer recentemente. São como outros sinais de desejo de abandonar aquele território onde sempre imperou a ironia, às vezes mais, às vezes menos dissimulada pela capacidade técnica do artista.

Nessa nova safra de obras chamam a atenção uma determinada tela – Behavior – e algumas aquarelas, aquelas da série “Física”.

Em Behavior’’ é notável como, ao lado do micro relevo vertical produzido por Caetano – e que cobre toda a superfície da tela, subvertendo-a –, o artista deixa se expandir, de leve, uma tinta em tom de vermelho. Lógico que Caetano até tenta controlar o discreto transbordamento de cor, mas, a tinta, insidiosa, acaba percorrendo seu curto trajeto até esvair-se, sem deixar-se brecar pela ação do artista. Como resultado, temos uma tela que é um relevo que sangra. O que significa que, de repente, a pura virtualidade das pinturas de Caetano fica comprometida por uma pintura que se nega como pintura (é um relevo), que parece jogar-se na realidade tridimensional, sangrando.

Tão surpreendentes quanto Behavior, são as aquarelas repletas de furos que conferem às mesma uma corporeidade mais de objeto do que propriamente de pinturas. Os furos são conseguidos por meio do contato de cigarros acesos pressionados levemente sobre o papel. Por mais que Caetano tente controlar cada interferência do cigarro no caráter bidimensional do suporte, atravessando-o com a brasa, o artista está brincando com fogo, um elemento avesso a qualquer tipo de controle.

É claro que Caetano buscaria neutralizar ao máximo o efeito da brasa, que transforma o espaço bidimensional em “coisa” atravessada pelo real. Para isso cola o papel queimado sobre outro papel, retirando ao máximo a potência transformadora do resultado de suas ações sobre o suporte inicial. Mas a desenvoltura do fogo que sempre vai mais um pouco além do gosto do artista está lá. Está ali como que registrando o início de uma transformação no trabalho do artista quando, então, aquela contradição inicial poderá ganhar novos e inesperados rumos.

Tadeu Chiarelli 2018

Nota
1 Se for nosso desejo, podemos requerer uma certa genealogia para essas pinturas de Caetano. Se as pinturas de início de carreira de artistas como Mônica Nador, Iran do Espírito Santo e Edgard de Souza não devem ser pensadas como matrizes da produção do artista (afinal, todos eles começaram mais ou menos ao mesmo tempo), isso não quer dizer que não existam pontos de contato entre a produção de todos. Afinal, Regina Silveira e Nelson Leirner foram professores de todos eles em São Paulo, e se encarregaram de passar para esses artistas uma atitude frente à arte contagiada pelos questionamentos da arte conceitual.
No entanto, penso que essa frieza, esse cinismo, mesmo, que constituiu a pintura de Caetano até há pouco tempo, tem contato apenas com a produção de poucos artistas. No Brasil, aquela de Emmanuel Nassar, não por analogias formais, ou pelo tipo de fatura (se é que podemos pensar em fatura, quando se fala na produção de Nassar), mas pela atitude de ambos em relação à pintura. Em suas produções, a crítica àquela linguagem vem travestida de índices de “artisticidade”, concebidos para subverter o senso comum. Já na cena internacional todo o paradoxo da pintura de Caetano de Almeida me remete direto a Damien Hirst e, indo mais distante, às pinturas de Francis Picabia dos anos 1930/40. Em todas elas, o mesmo comentário cáustico sobre o que foi e o que tem sido a pintura nas últimas décadas.

Posted by Patricia Canetti at 3:28 PM

maio 9, 2018

Rodrigo Bivar: É Umas por Rodrigo Naves

É Umas

RODRIGO NAVES

Quem diz “é umas” diz o quê? Difícil saber. A frase tem um ar folgazão e uma falta de urgência que põem de lado a vontade e sua ansiedade. Esse arremedo de afirmação – que em geral funciona como uma quase-resposta a uma quase-pergunta – tem também uma displicência democrática, uma disponibilidade que deixa as alternativas em aberto, pois é justamente dessa ambiguidade que pode nascer o encanto do que virá a seguir.

O que as recentes pinturas de Rodrigo Bivar expostas este ano na Galeria Millan têm a ver com esse nome, que de resto nasceu despretensiosamente durante uma conversa sobre possíveis títulos para exposições de outro amigo artista? Quando o nome surgiu na conversa, de pronto fechamos com ele.

Há na arte desse jovem pintor – Rodrigo Bivar tem 36 anos – um flerte produtivo com vertentes da pintura moderna e traços bem-humorados indisfarçáveis, muito provavelmente advindos do interesse por Philip Guston e Claes Oldenburg. É umas... Em sua terceira individual na Galeria Millan, em 2015, “Lapa”, Bivar abria mão de um figurativismo meio intimista, com forte marca do uso de fotografias, e parte para um trabalho em que sua aposta na pintura vai se revelar quase didaticamente – até pela trama geométrica, que ajudava a discriminar cores e faturas – na homenagem a artistas importantes para sua formação.

Günther Förg, ecos do veterano Eduardo Sued, Cássio Michalany, Paulo Pasta, Fábio Miguez, Fernanda Gomes, Richard Diebenkorn, Agnes Martin e tantos outros não eram propriamente citados, como ocorria com frequência na arte pós-moderna. Foram incorporados a sua pintura pela maneira de as cores empregadas por eles entrarem em formações e estruturas diferentes. Tratava-se de entendê-las produtivamente, e incorporá-las de forma experimental. Havia aí ao mesmo tempo a intenção de prestar uma homenagem e de estar à altura dos artistas admirados.

Arrisco uma hipótese sobre os quadros dessa mostra. Num momento de quase dissolução da pintura por uma série de sofismas contemporâneos – uns mais politicamente narrativos, outros mais cifradamente conceituais --, Bivar faz um recuo meio clássico, uma pausa, para conseguir continuar trabalhando. Mas não era umas!

A solução provisória era compreensível, mas séria demais. Agora, acredito que Rodrigo Bivar voltou a uma maior disponibilidade, sem a qual não se faz boa arte. Penso também que essa seja sua primeira exposição madura e autônoma. Todos os sete quadros expostos na sala da galeria são divididos ao meio por cores contrastantes e razoavelmente aleatórias, muito mais contemporâneas – por terem um descompromisso pop – do que modernas. O choque ou a justaposição entre as duas áreas de cor vai produzir fragmentos meio orgânicos – um recurso que Bivar tomou em parte dos relevos de Hans Arp, em parte de aspectos da pintura mais recente de Paulo Monteiro –, que ora espirram para cima, ora para baixo.

Esses retângulos figuram algo? Pode ser. Campos de futebol de botão, bolos de aniversário, cartazes, placas tectônicas, estandartes populares, páginas de jornal, a série dificilmente teria fim. Seja como for, eles não foram postos juntas à toa. Bivar procura uma unidade entre eles? Penso que aqui está o grande interesse dessa mostra. Sim e não.

O artista não abre mão de tentar encontrar uma unidade no Grande Bazar Contemporâneo. Contudo não quer atribuir à arte um papel estruturante e unificador que ela dificilmente poderia vir a ter novamente, porque por ora sequer sabemos o que mantém mais ou menos unidas tantas práticas econômicas heterogêneas, tantas desigualdades nacionais e internacionais, tanta violência e indiferença.

Os respingos ou estilhaços que passam de uma parte do quadro para a outra podem lembrar vagamente o resultado malsucedido da tentativa de fusão de elementos que pouco têm em comum. É possível ver uma dimensão trágica nestes quadros de Rodrigo Bivar? Já não sei.... Por vezes tenho a impressão de que essas pequenas figuras que pontuam as áreas de cor têm mais a ver com uma contaminação progressiva de uma superfície saudável, como uma doença que se espalha incontroladamente, como ocorre com o sarampo, a catapora, mas também com a peste bubônica, a terrível Peste Negra que dizimou milhões de vidas no século XIV.

O olhar de Rodrigo Bivar tem humor e crueza. Melhor dizendo. É a apreensão das ambiguidades de nossa época (o humor) que possibilita uma visada realista sobre o mundo. A vertiginosa mobilidade dos processos tecnológicos, com a crescente dificuldade de mapearmos as relações sociais que daí derivam, abrem ao mesmo tempo um vasto horizonte de perspectivas e uma volatilidade econômica que até agora não se conseguiu compreender e torná-la uma força política.

Nessa situação confusa continuam a existir posições políticas diferentes ou mesmo opostas? As pinturas de Bivar parecem sugerir que sim, embora fundamentalmente sua preocupação se concentre em explicitar a grande diferença entre os dois campos de cor dominantes e os eventos que ocorrem neles. Direita e esquerda ainda podem ter realidade. Em todo caso, resta saber o que permanece como oposição neste mundo feito de cacos à deriva.

Essas telas têm campos opostos bem demarcados. Neles pequenas figuras irregulares impedem que uma geometria rigorosa organize o plano dos quadros. Como fungos ou bactérias elas sugerem uma expansão meio ameaçadora, justamente porque não podemos prever seus movimentos. Pode ser meio ingênuo aproximá-las dos novos movimentos políticos menos ansiosos pelo poder (feministas, homossexuais, ecologistas etc.). A afirmação da diversidade em princípio vai numa direção mais democrática. Há, porém, como mantê-la sem levar em conta o poder?

Aquilo que na pintura de Paulo Monteiro ainda parecia ser fenômenos episódicos, manchas que indicam a possibilidade de uma disfunção em nosso organismo, tornou-se na pintura de Bivar uma interrogação sistemática. E por isso essas pequenas áreas são estruturais em suas telas.

É umas? A arte não tem respostas. A pintura de Rodrigo Bivar satisfaz-se em continuar a interrogar uma realidade que reluta em mostrar sua face.

Posted by Patricia Canetti at 9:14 AM

maio 3, 2018

Patricia Gouvêa: Sobrevida por Luiz Alberto Oliveira

Patricia Gouvêa: Sobrevida

LUIZ ALBERTO OLIVEIRA

Há um momento singular, quando se veleja rumo ao alto oceano, em que a presença da terra firme se esmaece, deixa de predominar, e então o mar, o céu e os ventos envolvem por completo o navegante, e tudo se torna diferente. Algo de similar se passa com os alpinistas quando avistam o cume, e com os astronautas quando o ronco dos foguetes silencia. E, é claro, quando se adentra a floresta.

A floresta condensa toda o viver, toda a vida. Inumeráveis dimensões, possibilidades de ação, movimento e desvio, simultâneas e redobradas, encarnam-se na profusão de seres, em perene mescla, em disparatada harmonia. A floresta é linguagem, mil línguas murmurando-se, mil sombras lampejando-se. Poucos infinitos nos são dados de modo tão inteiro, tão múltiplo, tão intimamente estrangeiro. A floresta tudo toma, pois está no mais de tudo fundo. Estar ali é tornar-se algo, outro; o inconsciente se estrutura como uma floresta. A Amazônia é o inconsciente do Brasil.

Sobretudo, a floresta é complexa. Muitos componentes, em muitas relações mútuas, escalonadas em muitos níveis de ordenação. Ser complexo é dobrar-se sobre si e sobre o fora. O oceano americano de clorofila se conecta com o oceano africano de silício atravessando as águas do Atlântico. Grãos de poeira são trazidos do Saara pelos ventos alíseos e nucleiam chuva na Amazônia. A evaporação da floresta recicla esta umidade, formando rios aéreos que irão se despejar nas nascentes e bacias do Sudeste. As cataratas do Iguaçu advém assim do deserto - evidência da interconexão global do sistema complexo Terra - mas ainda mais notável é compreender que a transpiração da floresta é sua respiração: a floresta gera a chuva que a gera.

Este é o contexto em que podemos situar as ações humanas na e sobre a floresta. Durante milênios os povos originais ocuparam e transformaram a floresta, fertilizando-a com a terra preta de índio, semeando com castanheiras uma faixa diagonal sudoeste-nordeste de milhares de quilômetros, incorporando-se a seu corpo. Desde que o Antropoceno - a época em que o conjunto da atividade humana tornou-se uma força de alcance planetário - se instalou, porém, há pouco mais de seis décadas, um terço da extensão da mata foi destruído ou alterado. A suavidade da presença milenar indígena contrasta brutalmente com o impacto da voragem capitalista. E é aqui que a questão da sobrevida - da floresta, dos índios, do Brasil - se coloca, indesviável.

A poesia meticulosa das imagens de Patricia Gouvêa designa precisamente este horizonte de deslimites. A floresta reassimila a casa arruinada, como convém, espalha suas marcas refazendo sua pele de musgos, assoma miraculosa no bocal imóvel do encanamento perdido. O homem dá-lhe o que não carece - um nome, um centro. O tempo humano dos artefatos se afoga no ciclo imenso das terras raízes troncos e folhas, mas cautela: se a floresta vive de si, deslinear como os meandros de um igarapé, sem si se extinguirá. Como nós.

Sobrevida é sobre nós.

Posted by Patricia Canetti at 12:33 PM